Leite e protetor solar 2

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Ele é solto de súbito. O que teria acontecido?! A cabeça bate em um pedaço fofo de calçada rachada. Enfim, alguém. E digo, por sinal, alguém grande.

De longe, instantes antecedentes, Zói vê seu companheiro, franzino, conselheiro, que lhe trazia tanta sabedoria, sendo trucidado à luz do dia pelo bombado. Antes de pensar, faz: seu corpo se lança sem o consentimento cerebral. O tronco desprovido de rim, o peito, viscerais, o puxam para a salvação do seu amigo, como se um imã o tivesse atraindo e ele não tivesse outra alternativa senão ir, sem o mínimo raciocínio lógico, em direção à salvação do amigo. Negro, alto, troncudo, dava passadas largas em direção à cena, voando, os olhos eram chorosos e ele não conseguia conter em si a gana por justiça. Cada segundo, cada soco dado, cada gota de sangue lhe doía profundo. E aconteceu que, ao passo das passadas surdas, enquanto um inicial nó em sua garganta se transformava em um grunhido, que se transformou em lágrima, que se transformou em rosno, que se transformou em mais velocidade, que se transformou em um rugido inicialmente enrustido e posteriormente num urro de urso pardo, culminou em um chute na cabeça do agressor. Arghh!

E como diria João Bosco, "Tá lá o corpo estendido no chão." – neste caso, os corpos. Seu amigo desacordado, morto, talvez. Já o outro agressor, com o chute, caiu, batendo forte a têmpora no poste: Morreu.

Neste momento, se agachando de forma fraterna, em desespero estabanado, depois de caminhar desconsoladamente arquejado e com as mãos à cabeça, em curvas e bufando lamentações, segurou Jon como mãe segura bebê. Em seu braço escorria sangue e o rosto dele estava completamente desfigurado.

- Não... Nãooo... Nãooooo... – ele se negava a crer no acontecido.

Não, não esta morto ainda. Jon, tendo a vida se esvaindo rapidamente, ouve, distante, os gritos de seu colega de trabalho. Nisto tudo, apesar da hegemônica falta de consciência, sua alma chora, pois alguém se importa.

- Vai ficar tudo bem, camarada. Aguente firme! – dizia Zói, babando, com olhos encharcados e a ensanguentada cabeça de Jon no braço esquerdo. Este, por sua vez, agora já não ouve buzinas, não sente o sol lhe molestando, o vapor causticante da cidade já não lhe é perceptível. O que sente, neste momento, é o conforto dos braços do amigo. Estes lhe servem como travesseiros, que estão sobre uma confortável cama de lençóis brancos.

O que está acontecendo? Ele pensa, enquanto, deitado naquela cama aprazível, sente a mesma briza que sentira mais cedo quando clamou a Deus. Este frescor, cada vez com mais frequência, tocava o corpo do rapaz.

- Ahh... que delícia! – pensava. Foi quando conseguiu se levantar, corpo leve; percebeu que estava em sua casa, foi caminhando até a cozinha e sentou-se à mesa. Sua filha, 6 anos, ali estava e dava uma golada no copo de leite. Ali estava o resultado das queimaduras de sol em sua pele, ali estava a razão de ele, por vezes, deixar o orgulho de lado e abandonar sua honra, recebendo insultos não rebatidos, ali estava o motivo pelo qual vivia, em suma, ali estava sua fofinha infância cheiro de talco pijamas azul e rosa filha. Ao acabar, com o busso branco e olhar agradecido, ela deixa o copo cair ao chão e o leite se espalha por todo o lugar.

De súbito, ele se vê deitado de novo. Cadê a filha? Cadê a cozinha? A mesa, as cadeiras? Tudo havia sumido e o que existia era ele no quarto, a cama e o leite, que ia tomando todo o lugar. Seus olhos se arregalam em apavoro de inércia deitada e incapaz. O que está acontecendo? Que sonho louco é este? Tenta se levantar, mas as pernas e os braços estão dormentes. O leite avança e toma os pés da cama, tornando-os alvos e posteriormente invisíveis, naquele quarto de extrema brancura.

Tenta novamente, mas não se mexe; o que consegue, agora, é sentir aquela plasta branca lhe tocar a sola dos pés, refrescante. E isto, por incrível que pareça, lhe traz uma paz nunca antes sentida. A plasta, que ele julgava ser leite, ia lhe subindo pelas canelas e ele percebia um cheiro gostoso. Mas seria possível? Ele não acredita. Ao chegar aos joelhos, ele tem certeza, era protetor solar. E, ao passo que o tempo se passava, agora leve, o protetor ia lhe subindo o corpo, trazendo-lhe refrescancia que, por vezes, ele confundia com dormência dos órgãos. Logo passa e ele sente o produto, tão almejado em vida, lhe tomando as costas, a barriga, os braços. Ele vai sendo envolvido naquele abraço e se compraz na paz resultante.

O peito adormece. O pescoço dorme, as pálpebras queimadas cerram na brancura refrigerante.

- Adeus, filha!

Zói, por sua vez, já não chora. Apenas abraça afetuosamente a cabeça ensanguentada contra o peito. O rapaz entende: seu amigo partiu e não se tem o que fazer.

- Vá com Deus, amigo – se despede, escora a cabeça do rapaz, com cuidado, em uma moita de grama em uma sombra próxima dali e corre. Corre mole, em choro, em prantos -nesta hora, tudo que queria era uma casa, uma mãe que lhe desse acalanto. 

Covarde? De início pode parecer ser o adjetivo mais aplicável, mas a atitude é bem pensada na cabeça do incompreendido, mesmo que subconscientemente: sem recursos linguísticos e capacidade vocabular para explicar a situação e se defender, além da aparência que possuía, certamente seria incriminado pelas duas mortes. 

Seguindo a linha filosófica de Cesare Lombroso, filósofo italiano que fez estudos e estereotipou o  arquétipo do homem mau com características físicas e comportamentais, a polícia certamente o veria como um cara "lombrado", atribuindo a ele a alcunha de principal suspeito. 

- Até quando vou fugir? – corria.

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Então, leitores amados, termina aqui a primeira parte de Zói. Espero que tenham gostado e que o realismo impresso no texto traga reflexões sobre a sociedade em que vivemos e suas incongruências sociais. 

Para finalizar:

"É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você, truta, é imbatível" - Racionais Mc's


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⏰ Última atualização: Dec 10, 2017 ⏰

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