Décima Terceira Sessão

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DÉCIMA TERCEIRA SESSÃO
ostaria de dizer que estou melhor. Principalmente porque adoro o modo como
você sorri quando lhe digo que algo deu certo ou que uma observação sua me
ajudou. Muito do que conversamos aqui de fato ajuda. Mas ultimamente tudo está
acontecendo de forma tão rápida e violenta que não tenho tempo de me recuperar
de uma coisa antes que outra aconteça.
Todos os dias digito o nome de Danielle no Google para ver se há uma nova
matéria sobre ela. A família criou um site em sua homenagem e não consigo parar
de olhar as fotos e de ler os pequenos fatos de sua vida colocados lá. Neste verão
ela seria madrinha de casamento de uma amiga e tinha acabado de buscar o
vestido. Chorei pensando na roupa pendurada em um armário em algum lugar.
Você me perguntou se eu poderia estar obcecada com as vítimas por estar
tentando encarar meus piores medos de perder minha ټlha, mas não acho que seja
isso. Não sei por que me ponho no lugar de Danielle, nem por que evoco imagens
comoventes, cada uma mais dolorosa que a outra, nem tampouco por que não
consigo parar de querer saber tudo sobre a vida dessa jovem.
Anos atrás você me ensinou que não podemos escolher como nos sentimos em
relação aos fatos: escolhemos apenas como lidar com os sentimentos que eles nos
despertam. Mas às vezes, mesmo quando se tem uma escolha, as opções são todas
tão terríveis, que parece que não há decisão a tomar.
v
Sábado de manhã, eu estava no supermercado com Ally quando o celular tocou.
Não reconheci o número, mas o código de área era da Colúmbia Britânica. Atendi
com cautela:
– Alô?
– Você não me contou que tinha uma filha.
Parei no meio do corredor, sentindo o medo apertar meu peito. Um pouco à
minha frente, Ally empurrava um carrinho, com sua bolsa vermelha pendurada no
ombro. Ela parou, examinou um saco de macarrão e franziu os lábios.
– Não, não contei – respondi.
– Por quê?
Pensei em Danielle. Se não dissesse a coisa certa, eu poderia ser a próxima. Senti
meu rosto ټcar quente e a visão embaçar. Forcei-me a tomar fôlego. Tinha de
parecer calma. Tinha de manter John calmo.
– Eu estava sendo cautelosa. Você machuca pessoas e...
– Ela é minha neta!
Ally empurrou seu carrinho na minha direção. Apertei o telefone contra o peito.
– Querida, por que você não vai até o final do corredor e escolhe um cereal?
Ela adora examinar todas as caixas e os preços. Escolhe uma caixa, que põe de
volta na prateleira, então escolhe outra. Costumo detestar que ela faça isso.
– Ela está com você agora? – perguntou John.
Droga. Ele tinha me ouvido.
– Estamos no supermercado.
– Qual é o nome dela?
Todas as ټbras de meu corpo quiseram mentir, mas era possível que ele já
soubesse.
– Ally.
Ela olhou para cima. Sorri e Ally voltou a examinar as opções de cereal.
– Quantos anos ela tem?
– Seis.
– Você deveria ter me contado sobre ela.
Desejei lhe dizer que ele não tinha nenhum direito de saber nada a respeito da
minha vida, mas não era momento para irritá-lo.
– Desculpe-me, você tem razão. Mas eu só estava protegendo minha ټlha.
Qualquer mãe teria feito o mesmo.
Ele ټcou em silêncio. Uma mulher passou pelo corredor. Afastei-me para o lado,
perguntando-me o que ela pensaria se soubesse com quem eu estava falando.
– Você não confia em mim – disse John.
– Tenho medo de você. Não entendo por que matou Danielle.
– Também não.
No início da conversa a voz de John estava zangada e tensa, mas agora ele parecia
quase derrotado. Meu coração se desacelerou um pouco.
– Você tem que parar de machucar as pessoas.
Aquilo saiu como uma súplica.
Prendi a respiração, esperando que ele ټcasse zangado, mas John apenas pareceu
estar na defensiva quando disse:
– Então você não pode mentir de novo. E tem de continuar a falar comigo
quando eu precisar.
– Não mentirei, está bem? E tentarei falar com você sempre que telefonar, mas às
vezes há pessoas ao meu redor. Se eu não puder atender à sua ligação você pode
apenas deixar uma mensagem, que eu telefonarei...
– Isso não vai funcionar.
Desejei saber se ele ainda suspeitava de que a polícia estivesse rastreando seus
telefonemas.
– Se você ligar um monte de vezes seguidas meus amigos e parentes começarão a
fazer perguntas.
– Então conte a eles.
– Eles não vão querer que eu fale com você e...
– Você quer dizer que a polícia não quer que eles saibam que conversamos.
John disse isso casualmente, mas por um minuto quase me enganou. Estava me
testando. Meus batimentos cardíacos ټcaram novamente acelerados. Ele tinha suas
suspeitas, mas desconټar e saber eram duas coisas diferentes. Tive de sustentar a
mentira.
– Não, quero dizer que minha família não entenderia. E eles contariam à polícia...
– Você já contou.
– Não contei. Já lhe disse isso. No início não acreditei que você fosse quem dizia
ser, depois ټquei com medo de que viesse atrás da minha família. Evan ټcaria
preocupado e...
– Então deixe Evan. Você não precisa dele.
Meu corpo se retesou. John parecia zangado de novo. Será que eu acabara de pôr
Evan em perigo? No ټnal do corredor, Ally já tinha escolhido uma caixa de cereal
e agora andava com seu carrinho apenas sobre as rodas de trás. Se eu não a
distraísse logo, ela poderia bater em uma das vitrines. Fiz um sinal para que Ally
me seguisse até a seção de verduras, tentando desesperadamente pensar em algo a
dizer para acalmar John.
– Tentarei falar com você sempre que quiser. Mas amo Evan e estamos noivos. Se
você quiser fazer parte da minha vida terá de entender isso.
Prendi a respiração diante de minha ousadia. Como ele encararia isso?
– Está bem, mas se ele ficar no...
– Não ficará.
Soltei o ar, apoiando-me no carrinho. Ally estava tentando chamar minha
atenção. Entreguei-lhe um saco plástico e ټz sinais pedindo-lhe que escolhesse algumas maçãs.
– Quero falar com Ally.
Eu me empertiguei.
– Essa não é uma boa ideia, John.
– Ela é minha neta.
– Mas ela poderia falar algo a alguém e, como eu já disse, as pessoas fariam
perguntas e...
– Se não posso falar com ela, então quero me encontrar com você – disse John,
com uma voz que reveleva frustração.
O sangue pulsou forte em meus ouvidos. Nunca pensei que John fosse desejar se
encontrar comigo, nunca acreditei que poderia correr esse risco. Tinha de assustá-
lo, e rápido.
– Mas e se a polícia estiver me vigiando?
– Você disse que não contou sobre nós à polícia, e acredito em você. Eu saberia
se estivesse mentindo.
Por um momento me perguntei se era ele quem estava mentindo. Afastei o
pensamento. John não tinha como saber que eu estava trabalhando com a polícia.
– Mas essa coisa de você ser meu pai saiu nos jornais e na tevê. E se eles estiverem
me seguindo?
– Você viu alguém seguindo você?
– Não, mas isso não significa que eles...
– Telefonarei amanhã.
v
Billy ligou imediatamente para meu celular, mas Ally estava batendo com o
carrinho na parte de trás das minhas pernas e eu soube que ela estava no seu
limite. Eu também chegara ao meu.
– Preciso de um tempo, Billy. Telefonarei para você quando estiver em casa.
Apressei-me com o restante das compras e, quando voltamos para casa, preparei
um lanche rápido para Ally. Depois a deixei assistindo a um ټlme e liguei para
Billy da minha linha fixa.
– Você o localizou?
– Ele estava usando um telefone público em um acampamento perto de Bridge
Lake, a oeste de Clearwater. – Billy suspirou. – Quando chegamos lá, já tinha ido
embora. Provavelmente estava com o veículo estacionado adiante e cortou
caminho pela floresta. Os cães farejadores perderam seu rastro.
– O que vamos fazer? Não quero que ele fale com Ally e, obviamente, não posso
me encontrar com ele.
– Não queremos que você faça nada que a ponha em perigo, mas...
– Não tenho a mínima intenção de me encontrar com ele.
– Não posso culpá-la.
– Então, o que eu deveria fazer?
– Ele vai continuar a fazer mais exigências e queremos que você esteja pronta
para isso. – A voz de Billy foi casual, mas alguma coisa não estava se encaixando.
Então entendi. A polícia queria que eu me encontrasse com ele, mas não podia
me pedir que fizesse isso.
Sandy pegou o telefone.
– Sara, por que você não vem à delegacia esta tarde para discutirmos o assunto?
– Está bem.
v
Deixei Ally na casa da Meghan de novo – grata que a mãe dela adorasse ټcar com
minha ټlha – e fui para a delegacia. Mais uma vez Sandy e Billy me levaram para a
sala com o sofá. Dessa vez, Billy se sentou ao meu lado e estudei seu perټl. Melanie
estava certa? Ele gostava de mim? Billy se virou e deu um sorriso rápido, mas não
vi nele nada além de amizade. Eu tinha coisas mais importantes com que me
preocupar agora. Sandy ficou andando de um lado para outro na frente do sofá.
– Vocês querem que eu faça isso, não é? – perguntei.
– Não podemos lhe pedir que ponha sua vida em risco – disse Sandy.
– E se eu quiser encontrá-lo?
Ela se apressou em falar:
– Você tem de escolher o local antes que ele o proponha, mas de forma casual,
para não levantar suspeitas. O local é o mais importante. Temos de pensar na
segurança pública.
– E quanto à minha segurança? Vocês não deveriam se preocupar com isso?
– É claro que sua segurança é nossa principal preocupação. Nós garantimos que...
– Ela se conteve. – Caso você decida fazer isso, estaremos lá o tempo todo.
– Ah, perfeito! Para que ele possa ver vocês e então me matar?
– Ele nunca saberá que estamos lá. Escolheremos um local em que não haja muita
gente, mas que também não seja remoto, e teremos policiais à paisana observando
você a cada instante.
– Usaremos um microfone plantado em você – explicou Billy –, mas nosso plano é prender John antes que ele tenha qualquer chance de se aproximar.
– Espere um minuto. Vocês já têm um plano? Quando concordei com isso?
Eles olharam para mim. Finalmente Billy disse:
– Ninguém planejou nada, só estamos conversando. Mas se você decidir se
encontrar com John para que possamos prendê-lo, faremos tudo o que estiver ao
nosso alcance para protegê-la. Como Sandy disse, sua segurança é nossa principal
preocupação.
Olhei para Sandy.
– Não tenho certeza disso – concluí.
Sandy puxou uma cadeira e se sentou à minha frente. Pegou um arquivo na mesa
ao lado, tirou uma foto de dentro e a estendeu diante de meu rosto.
– Quero que você dê uma boa olhada, Sara.
Era uma foto do cadáver de Danielle. Ela estava com o rosto pálido e o pescoço
machucado, os olhos arregalados e a língua escurecida para fora da boca. Dei um
pulo para trás na cadeira e fechei os olhos.
Billy tirou a foto da mãos de Sandy.
– Caramba, Sandy!
– Vou pegar um café – disse ela. Entregou o arquivo a Billy com um gesto brusco
e saiu da sala batendo a porta.
– Não posso acreditar que Sandy tenha feito isso. – Coloquei a mão em meu
coração. – Os olhos e a língua dela...
Billy se sentou no sofá perto de mim.
– Realmente sinto muito, Sara.
– Não há regras sobre esse tipo de coisa? Caramba, ela é uma sargenta!
– Falarei com ela. É só que Sandy não está tendo um bom dia. Perder Danielle
realmente foi difícil para ela. Sandy quer pegar John antes que ele mate
novamente. Todos queremos isso.
– Entendo, mas eu tenho uma ټlha. Se algo acontecesse comigo... – Minha voz
falhou.
Billy se recostou no sofá e deu um grande suspiro.
– Esse é outro motivo para o encontrarmos logo. Para que você pare de viver
com medo. Mas se isso faz com que se sinta melhor, você é provavelmente a única
pessoa que não corre perigo com John. Fez um ótimo trabalho ganhando a
confiança dele.
– Mas será que ele conټa mesmo em mim? Ainda faz questão de não demorar
muito em nossas ligações. Então por que está disposto a correr o risco de se encontrar comigo?
– É possível que ele esteja planejando um encontro para ver se descobre se você
está trabalhando com a polícia. Ele é um caçador, por isso espreita ou desentoca a
presa. Mas meu palpite é de que ele realmente conټa em você. John é arrogante o
suficiente para acreditar que você nunca o trairia.
Uma presa, era exatamente isso que eu era para John. Mas eu me sentia mais
como um alvo fácil, à espera do caçador. Meu estômago se contorceu.
– Mas eu estou mentindo. E se ele perceber...
– Será algemado. Mas talvez você não devesse se encontrar com John, Sara. Se
está assim tão assustada, é melhor não fazer isso.
– É claro que estou assustada, mas não é isso. Só... só preciso pensar um pouco.
– Você deveria pensar.
– E tenho de falar com Evan.
– É claro. Se Evan estiver preocupado com alguma coisa, ټcarei feliz em
conversar com ele.
Isso adiantaria muito. Mas eu disse:
– Eu lhe darei uma resposta.
v
Billy me acompanhou até o lado de fora da delegacia. Não havia nenhum sinal de
Sandy, que eu esperava que estivesse sendo repreendida por um superior.
Enquanto eu entrava no carro, ele disse:
– Não vou mentir, Sara. Encontrar John é arriscado, e você sabe disso. Mas
também sei que acabará tomando a decisão certa.
Então ele fechou minha porta.
Busquei Ally e fui para casa, ainda tentando entender o que acabara de acontecer
na delegacia. Eu estava mesmo pensando em me encontrar com John? Será que
tinha perdido totalmente o juízo? Durante o resto da tarde, Ally e eu brincamos
no parque com Moose, porém somente parte de mim estava lá. O celular ټcou
misericordiosamente quieto, mas minha cabeça girava. Deveria fazer o que
queriam que eu ټzesse? Seria uma pessoa horrível se não concordasse? E se ele
matasse outra mulher? E se me matasse?
Minha mente evocou imagens de Ally e de Evan chorando em meu funeral, de
Lauren criando minha ټlha e de Evan levando-a para tomar um sorvete nos ټns de
semana em que estava em casa. Mas então me vi em pé em um parque, corajosa,
avistando John e falando enigmaticamente por um microfone. Uma equipe da SWAT chegava e imobilizava John no chão. Famílias das vítimas agradeciam com
olhos lacrimejantes, dizendo que finalmente tinham encontrado paz.
Não importava aonde meus pensamentos me levassem, eu não conseguia tirar da
mente a imagem do rosto de Danielle. Odiei que Sandy tivesse usado aquela foto
para me manipular. E odiei que tivesse conseguido.
v
Mais tarde, enquanto Ally tomava banho, Evan e eu conversamos ao telefone.
Quando lhe contei que John queria se encontrar comigo, sua primeira reação foi:
– De jeito nenhum, Sara! Você não pode fazer isso.
– Mas e se essa for a única chance de pegá-lo?
– Você não pode arriscar sua vida desse jeito. E quanto a Ally?
– Pensei nisso também, mas a polícia acha que não corro nenhum perigo real e...
– É claro que você corre perigo. Ele é um assassino em série e acabou de matar
uma mulher. Já não está quebrando seu padrão ou seja qual for o nome que eles
dão a isso?
– Eles disseram que poderiam me proteger e que o prenderiam antes mesmo de
nos falarmos e...
– Isso não é responsabilidade sua.
– Mas pense nisso, Evan. É a chance que temos de tirá-lo da nossa vida para
sempre. Pegá-lo me faria sentir que ټz algo certo. Estou em um limbo constante:
ټco me perguntando o que ele fará depois, quando telefonará, o que dirá. Você
sabe o que isso está fazendo comigo, com a gente. Se a polícia prender John, tudo
voltará ao normal e poderemos apenas nos divertir planejando nosso casamento.
– Quero você viva. Nada mais importará se ele a matar.
– E se a polícia usasse outra garota para atraí-lo ou...
– Ele viu suas fotos. Se perceber que não é você, pode ټcar louco de raiva e
machucar muitas pessoas, inclusive você e Ally. Eu já lhe disse que a polícia só a
está usando como isca. Não vou deixar que você se arrisque assim.
– Não vai deixar?
– Você sabe o que quero dizer. Você não vai fazer isso, Sara.
Parte de mim quis discutir, a parte que detestava receber ordens, mas a outra,
maior, ficou aliviada pelo fato de Evan ter tomado a decisão por mim.
– Eu lhe diria “vou falar com eles amanhã”, mas eles provavelmente estão
ouvindo essa nossa conversa.
– Ela não vai fazer isso – gritou Evan ao telefone.
v
Depois daquele telefonema, achei que teria notícias de Billy ou de Sandy, mas
felizmente o telefone ficou em silêncio. No dia seguinte, John ligou.
– Você pensou sobre se encontrar comigo?
– Sim, e continuo achando que não é uma boa ideia. É arriscado demais.
– Você disse que a polícia não sabe de nada.
– Mas eu também lhe disse que poderiam estar me seguindo.
– Eles não têm nenhuma prova de que você é minha ټlha e nenhuma ideia de que
temos conversado.
Deus, como ele era esperto! Eu estava ټcando sem argumentos para dizer não.
Voltei à desculpa da polícia. Era tudo o que eu tinha.
– Ainda assim eles poderiam estar me vigiando e...
– Você não quer se encontrar comigo?
– É claro que quero. Mas se a polícia estiver me seguindo, isso poderia se
transformar em um grande tiroteio.
– Posso protegê-la.
Quase ri da ironia. A polícia queria me proteger dele e ele queria me proteger da
polícia.
– Eu sei. Mas tenho uma filha. Não posso arriscar minha vida assim.
– O que Ally está fazendo agora?
– Está na cama.
– Você lê histórias para ela?
– O tempo todo.
– Qual é sua história favorita?
Hesitei. A polícia disse que eu não deveria mentir, mas não conseguia suportar a
ideia de ele saber detalhes íntimos sobre Ally.
– Ela adora Onde vivem os monstros.
Na verdade, ela odiava.
– E a cor preferida?
– Rosa.
Ally adora vermelho. Quanto mais brilhante, melhor.
– Preciso ir. Pensarei sobre nosso encontro.
– Não, John. Não vou me encontrar com você...
Mas eu estava falando sozinha.
v
John estava voltando para o sul – vinha na minha direção. Um caminhoneiro
pensou tê-lo visto perto de um telefone público por volta da hora do telefonema,
mas não conseguiu descrevê-lo nem ver o que ele estava dirigindo. Mal dormi
naquela noite: sentia John se aproximar, as estradas desertas enquanto ele viajava
na escuridão, e já ouvia seus pneus cantando na calçada.
No dia seguinte, uma segunda-feira, chegou outra caixa. Billy e Sandy vieram
meia hora depois do meu telefonema. Sandy e eu não havíamos nos falado desde
que ela me atacara de surpresa na delegacia, por isso quando abri a porta, só
cumprimentei Billy. Marchando para a cozinha com sua maleta na mão, Sandy
pareceu não notar.
Prendi a respiração enquanto, com as mãos enluvadas, ela abria cuidadosamente
a caixa e erguia outra, uma caixinha de joias branca. Um pequeno envelope
amarelo estava preso no topo. Sandy colocou a caixa sobre o balcão e soltou
suavemente o envelope. Então usou um canivete para abri-lo por cima, deixando a
parte com cola intocada. Usando pinças, retirou o cartão que estava dentro.
Em tinta azul, lia-se: Para Ally, com amor, do vovô.
Dei um passo para trás, horrorizada.
– Você está bem, Sara? – perguntou Billy.
– Isso é nojento.
Como ele ousava escrever para minha ټlha? Tive vontade de esquartejar John e
de picar o cartão em milhões de pedaços.
Billy me deu um olhar solidário.
Ele segurou um saco aberto e Sandy deslizou cuidadosamente o envelope e o
cartão para dentro dele. Depois Billy levantou devagar a tampa da caixa de joias.
Sandy e Billy estavam debruçados sobre ela, por isso não pude ver seu conteúdo.
– Que doente desgraçado! – exclamou Sandy, balançando a cabeça.
– Deixem-me ver o que tem aí – pedi.
Eles se afastaram para o lado enquanto eu me aproximava. Acomodada sobre
algodão branco estava uma boneca vestida com um suéter cor-de-rosa e jeans
azuis. Lembrei-me da irmã de Danielle soluçando na tevê enquanto descrevia o
que Danielle vestia na última vez em que foi vista viva. Mas foram os cabelos
castanho-avermelhados colados na cabeça sem rosto que mais me perturbaram.
Enquanto olhava para o metal liso, meu cérebro sobrepôs a ele a imagem do rosto
de Danielle na agonia da morte. Desviei o olhar.
– Você precisa dar uma boa olhada caso ele lhe pergunte alguma coisa – disse
Sandy.
– Apenas me dê um minuto. – Sentei-me à mesa e respirei fundo algumas vezes. –
Fico vendo o rosto dela naquela foto.
Ainda segurando a caixa de joias, Sandy se virou e perguntou:
– Você pensou melhor sobre se encontrar com ele?
– Evan não vai deixar. Está muito preocupado – respondi.
– Ele quer que você esteja segura – disse Billy, assentindo com a cabeça.
– Isso é arriscado demais. – Olhei para a caixa nas mãos de Sandy. – Mas se eu
fizesse...
– Nós o prenderíamos, e tudo isso terminaria – concluiu Billy. – Os presentes, os
telefonemas...
– Os assassinatos – completou Sandy.
– Sabe, Sandy, o lance da culpa não ajuda. O que você fez, ao me mostrar aquela
foto, foi horrível.
Sandy olhou de relance para Billy, que pigarreou. Os maxilares dela se
enrijeceram, mas ela disse:
– Tem razão, Sara. Passei dos limites.
Por um momento ټquei surpresa, mas quando a olhei nos olhos e ela desviou o
olhar, soube que Sandy não estava nem um pouco arrependida. Balancei a cabeça e
me voltei para Billy.
– Pensei exatamente as mesmas coisas que vocês, Billy, mas, se eu ټzer isso, Evan
ficará realmente chateado.
– Você quer que eu converse com ele?
– Não, seria pior se Evan pensasse que você está me pressionando. Ele acha que
eu não deveria estar ajudando em nada, que isso é muito perigoso. E tem razão.
Estou pondo Ally em perigo, ainda mais agora que John sabe sobre ela.
– Não acreditamos que sua família esteja em perigo, mas...
– Mas John quer algo de nós. Você mesmo disse isso algumas vezes, e também que
ele continuaria a exigir mais e mais. E o que fará depois? Exigirá um encontro com
Ally?
– Essa também é uma de nossas preocupações. Se não agirmos com rapidez, ele
nunca irá parar de fazer exigências.
– Mas se eu me encontrasse com ele muitas coisas poderiam dar errado.
– Sim, poderiam – respondeu Billy, concordando com a cabeça. – E é por esse
motivo que não estamos lhe pedindo que faça isso, embora essa talvez seja nossa única oportunidade de fazê-lo parar.
– E se John fugisse? Ele saberia que avisei vocês.
– Você já teria dado a ele uma boa explicação para isso: a cobertura da imprensa.
E o prevenira de que poderíamos estar seguindo você.
– Mas ele poderia não acreditar, e então desapareceria de novo ou decidiria me
punir. – Todos nós ficamos em silêncio. Após um momento, perguntei:
– Quais são as chances de vocês o pegarem de outra maneira?
– Estamos tentando tudo o que podemos, mas... – Billy balançou a cabeça.
– Talvez ele pare, está ficando mais velho.
Mas eu já sabia quanto isso era improvável antes mesmo que Billy abrisse a boca
para dizer:
– Os assassinos em série nunca param. São capturados, geralmente por outros
crimes, ou morrem.
– Espero que goste do presente, porque receberá muitos outros – disse Sandy,
estendendo-me a caixa de joias.
– Isso foi realmente gentil – respondi, olhando-a com raiva.
– É a realidade.
– Sandy, pare com isso – pediu Billy, com voz ټrme. Achei que Sandy fosse
censurá-lo, mas ela se limitou a examinar seu celular. Então ele se virou para mim.
– Está pronta para olhar a boneca mais de perto?
Respirei fundo e concordei com um gesto de cabeça. Sandy me entregou um par
de luvas. Depois que as coloquei, ela me passou a caixa.
– Apenas a segure pelas bordas e não toque em mais nada.
Enquanto examinava cuidadosamente a boneca, tentei não pensar em Danielle:
em como ela era bonita, em como seus cabelos eram da mesma cor que os meus e
em como morreu com as mãos de meu pai ao redor de seu pescoço.
v
John ligou mais tarde naquele mesmo dia, enquanto eu preparava uma xícara de
café.
– Ela a recebeu?
– A boneca chegou, sim. Obrigada.
Quase me engasguei ao dizer a última palavra.
– Você a entregou para Ally?
– Não, ela é apenas uma garotinha, John. Não entenderia...
– Você não quer me deixar falar com ela e agora não quer deixar que eu lhe dê presentes? Eu fiz a boneca para ela.
– Eu a guardarei para quando for mais velha. Ela é muito nova. Achei que
poderia perdê-la.
A respiração dele estava pesada.
– Você está bem? – perguntei.
Quando ele respondeu, parecia que estava falando com os dentes cerrados.
– Não. É o barulho. Está me incomodando agora.
Fiquei imóvel, com a mão ainda na cafeteira. Que barulho? Esforcei-me para
ouvir. Ele estava com outra garota? Ouvi algo. Risos? Depois sons de golpes. Um
machado cortando madeira? Forcei-me a respirar lenta e profundamente.
– John, onde você está?
O som parou.
– Pode por favor me dizer onde está, John?
– Estou em um acampamento.
Meu coração disparou.
– Por que está aí?
Ele sussurrou ao telefone:
– Eu já disse. O barulho.
– Está bem, está bem. Apenas fale comigo. O que está fazendo no acampamento?
– Eles estão rindo.
– Saia daí. Por favor, estou lhe implorando, só saia daí.
Ouvi o som de uma porta de caminhão se abrindo.
– Eles têm de parar...
– Espere! Vou me encontrar com você, está bem? Vou me encontrar com você.
Deus me ajude!
v
Agora você sabe por que tive de vê-la hoje, um dia antes de nossas sessões
habituais. Precisei de alguns minutos para fazer John voltar para o caminhão e se
afastar do acampamento. Fiquei lhe dizendo como seria bom quando nos
encontrássemos, basicamente fazendo com que ele se concentrasse em outra coisa.
No início foi difícil. Ele continuava a falar sobre o barulho e depois sobre as
pessoas que estavam rindo no acampamento. Então eu disse algo como: “Não
posso acreditar que ټnalmente vou conhecer meu pai.” Então John se acalmou e
disse que em breve telefonaria, para combinarmos nosso encontro. Tenho de me
encontrar com Billy e Sandy depois que sair daqui. Eles querem revisar tudo, caso John queira combinar algo imediatamente. Ele ligou do norte de Merrit, uma
cidadezinha a apenas quatro horas de Vancouver. Estava vindo nesta direção.
Quando conversei com Evan na noite passada, ele disse:
– Eles só estão manipulando você, Sara.
– Eles quem?
– Todos eles. A polícia e John.
– Não acha que consigo notar quando estou sendo manipulada?
– Encontrar John é uma atitude imprudente. Você tem uma ټlha. Ao menos
pensou nela? Não tem o direito de concordar com algo tão importante sem falar
comigo primeiro.
– Está brincando? Eu coloco Ally acima de tudo. Você sabe disso. E quem é você
para me dizer o que eu tenho ou não tenho o direito de fazer?
– Sara, pare de gritar ou eu...
– Você precisa parar de ser um idiota.
Ele levantou a voz.
– Não vou falar com você se continuar a gritar.
– Então pare de dizer coisas estúpidas como essa.
Ele ficou calado.
– Agora não vai mais falar? E eu é que sou imatura.
– Não vou discutir nada com você enquanto não baixar seu tom.
Cerrei os dentes e respirei fundo algumas vezes. Forcei-me a falar com calma e
disse:
– Evan, você não tem a menor ideia de como foi falar com John sabendo que ele
estava escolhendo sua próxima vítima. Se eu não dissesse a coisa certa, alguém iria
morrer. Não consegue entender como essa sensação foi horrível? Billy disse que
quanto mais rápido o pegarmos, mais rápido ele estará fora da nossa vida. E isso é
verdade. Ainda que a polícia esteja me manipulando, isso não muda os fatos.
Evan ficou em silêncio por um longo momento. Por fim, disse:
– Merda! Detesto isso, Sara!
– Eu também detesto. Mas por que você não consegue entender que não tive
outra escolha?
– Você teve. Só não a fez. Entendo por que sentiu que tinha que aceitar, mas
mesmo assim não gosto disso e não concordo com o que você está fazendo. Se for
acontecer, quero estar em casa. Se for preciso, fecharei a pousada, mas quero estar
com a polícia nesse momento.
– Acho que não haverá nenhum problema nisso.
Conversamos um pouco mais. Evan se desculpou por me acusar de ser
imprudente, eu me desculpei por xingá-lo, e então desejamos boa noite um ao
outro. Mas acho que nenhum de nós realmente teve uma noite boa. Passei horas
olhando para o teto. Só conseguia pensar nas pessoas que John estivera
observando no acampamento. Elas não sabiam quão perto da morte tinham
chegado. Então me perguntei quão perto eu estava.

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⏰ Última atualização: Nov 23, 2017 ⏰

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