Estou nervoso, mal consegui dormir à noite. Os ruídos do teatro lotado invadem os bastidores e percorrem meus ossos, reverberando e me fazendo tiritar como se fizesse frio, ao mesmo tempo em que suo como se o sol houvesse caído na Terra.
Não consigo pronunciar palavras quando me perguntam se está tudo bem, apenas evito olhar nos olhos de qualquer um para não ser pego na mentira e aceno que sim com a cabeça, voltando ao aquecimento. Na verdade, saber que ela não está naquela plateia faz meu corpo querer desistir, mas a promessa que fiz a ela não permite que o faça.
— Cinco minutos, pessoal — avisa Luís.
Hoje minha vida pode mudar drasticamente e a única pessoa responsável por tudo isso não está aqui para dividir um momento assim comigo.
Sem que eu possa evitar, lembranças do passado invadem minha mente, tornando-se um empecilho para minha concentração:
— Ai! — gritei quando Júlia cutucou meu tornozelo.
— É, parece uma entorse. Eu avisei que você não estava preparado para aquele salto.
— Mas eu preciso dele pra completar minha coreografia e me qualificar para a competição nacional.
— Sinto muito, Bruno, mas você não pode competir mais com o tornozelo assim — Júlia disse, ficando de pé e estendendo a mão. — Vem! Te ajudo.
— Isso não é nada! Em dois dias eu me recupero e então posso terminar os ensaios a tempo do final de semana — estiquei o braço para alcançá-la.
— Vai por mim, você não vai querer arriscar reproduzir aquele salto com essa entorse.
— Relaxa Júlia! Não é por que você se ferrou tentando fazer aquela dança maluca no ano passado que eu também vou — só depois de dizer, percebi o quão rude fui.
Júlia soltou meu braço e eu caí de bunda no chão, enquanto ela saía do estúdio sem olhar para trás.
Volto ao presente e sigo os outros bailarinos até o palco para a apresentação em grupo. Um rápido passear de olhos pela plateia confirma o que eu já esperava. Júlia não está presente.
A música começa e eu fico em posição. A competição está fácil esse ano. Nenhum grupo tem uma coreografia tão moderna quanto a nossa. A falta de preocupação me leva de volta a uma nova recordação:
— Está vendo? Eu disse que conseguiria! — finalmente consegui reproduzir o salto.
— Eu nunca duvidei de sua capacidade, Bruno, mas acho que você não está pronto pra esse movimento. Ele é muito arriscado, ainda mais pra quem acaba de se recuperar de uma entorse — Júlia se preocupou.
— Eu já sei onde estava errando e já corrigi. A minha postura durante a queda estava comprometendo meu apoio na aterrissagem, e com a modificação que fiz, a coreografia ficou até mais bonita.
— Isso é verdade, mas fico preocupada por causa da sua lesão. Se tivesse pensado nisso antes...
— Olha Júlia! Se for pra ficar me agourando, é melhor você nem me ajudar mais! — eu achava estar certo no momento.
—Nesse caso, acho que o melhor é que eu nem vá assistir à sua apresentação, já que eu só incomodo.
— Ah, menos drama, por favor.
Repeti a parte complicada da coreografia uma vez mais, e desabei no chão ao tentar o salto novamente.
— Bruno! — ela veio correndo ao meu socorro. — Eu sabia que isso ia acontecer! E bem que te avisei, mas você...
— Já chega! — gritei quando ela tentou me ajudar. — Acho que você tem razão... É melhor nem ir assistir à apresentação. Se eu errei é por que você me desconcentrou com seu pessimismo e sua inveja.
Júlia não me retrucou, somente me olhou decepcionada e saiu, acelerando os passos até correr. Eu me descontrolei e gritei bem alto de raiva, não por causa dela, mas porque sabia que tinha caído por sentir dor no tornozelo, e não por ela ter me desconcentrado.
Tudo está embaçado quando retomo a visão do momento atual. Meus olhos estão marejados por lágrimas amargas carregadas de tristeza e arrependimento. A apresentação em grupo termina e volto aos bastidores, esperando que os duetos terminem. Não estou tão ansioso pelo meu solo, e meu nervosismo não é mais devido à ânsia de impressionar os scouters, mas por não ter certeza de que Júlia tenha reconsiderado me ver dançar.
Após a apresentação dos duetos, enfim chega o momento pelo qual me esforcei a ponto de estragar a mais pura e sincera amizade que já tive: meu solo. Essa é a minha chance de impressionar e conseguir a atenção dos melhores recrutadores do país.
Me posiciono no centro do palco escuro quando chamam meu nome. Olho para frente assim que a batida, uma mistura entre o clássico e o moderno, começa e as luzes se acendem. Meu corpo se move em sintonia com o ritmo da música. Essa é a minha melhor coreografia, sem sombra de dúvidas.
Durante a performance, me deparo com o que mais procurei durante a noite. Lá está ela. Júlia chegou a tempo para ver meu solo. Eu sorrio e ela retribui, o que me faz lembrar do meu ridículo pedido de desculpas via mensagem de texto: Oi... Foi mau o que aconteceu ontem. Quero muito que você vá me ver. Eu prometo que, se você estiver lá, eu vou fazer de tudo pra ganhar.
No mesmo instante, sinto uma pontada no tornozelo e estou a segundos de executar a sequência mais perigosa de minha coreografia. Júlia sabe disso e seu semblante mostra preocupação. De prestar atenção a ela, acabo me esquecendo do passos que antecedem o salto e perco a coragem. Ao longe, Júlia parece notar minha hesitação.
Rapidamente me lembro de como ela se atrapalhou durante sua apresentação no ano passado, para a qual eu a ajudei a ensaiar. Tenho uma ideia e não restam dúvidas. Insiro os passos de sua dança maluca que melhor se adequam à batida, ao invés de arriscar o salto.
Término minha dança ovacionado, mas o que realmente importa para mim é o sorriso de Júlia, que me diz que consegui me redimir e que vai ficar tudo bem.
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Contos que Conto
Short StoryColetânea de contos para a Copa dos Contos - Edição 2017. Direitos de imagem: http://br.freepik.com/fotos-gratis/engrenagens-bulbo_926652.htm