Graças por Lucy

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O dia já não tinha começado bem com a nevasca repentina paralisando o trânsito por quilômetros, e o que era pra ser uma viagem rápida e descomplicada, estava se tornando um dos piores voos da minha vida.
Como se não bastasse a demora para o táxi me trazer ao aeroporto, a maldita nevasca imprevista causou um atraso no horário de saída do meu voo, o que queria dizer que eu não chegaria a tempo para o jantar de ação de graças na casa do meu maior amor.
Ao menos se fosse só isso, mas como uma desgraça nunca vem desacompanhada, eu tive que suportar as investidas de um homem de terno que provavelmente não pode ver um par de pernas. Não importava que eu tivesse dito que era comprometida, o homem era muito insistente, pedindo para que eu me acalmasse e dizendo que não era o que eu estava pensando. Esse tormento só passou quando, enfim, ouvi a chamada de embarque e o deixei falando sozinho.
— Talvez ainda consiga chegar a tempo para o jantar — falei para mim mesma.
Peguei meu celular e comecei a digitar uma mensagem, explicando ao meu amor que me atrasaria um pouco. Passei pelo portão de embarque e cheguei, enfim, ao meu assento, onde continuei a escrever meu texto de desculpas.
Não notei quando o mesmo infeliz de antes sentou ao meu lado, somente reparei quando ele falou comigo:
— Parece que o destino nos quer juntos, não é mesmo?
— Ah meu Deus, eu mereço — bufei de desgosto. — Será que você pode pelo menos tentar não dirigir a palavra a mim?
— Tudo bem, moça! Não quero que me entenda mal. Pensei em conversarmos para passar o tempo durante o que promete ser uma longa viagem.
O piloto avisou que a aeronave iria decolar e que devíamos apertar o cinto, manter os aparelhos eletrônicos desligados ou em modo avião e seguir as instruções das aeromoças no caso de acidente. Embora a nevasca estivesse controlada, não havia cessado por completo e isso significava que corríamos mais riscos do que em condições normais.
— Não acho que tenhamos algum assunto em comum — resolvi responder o homem.
Estava tão ansiosa para chegar ao meu destino, que não conseguiria me manter calada mesmo que ele não tivesse proposto uma conversa amigável.
— Ora, não seja assim! É verdade que nos desentendemos, mas agora temos a chance de reparar nossa relação. Me diga: vai à capital a trabalho?
— Por que eu iria para lá a trabalho no dia de ação de graças? — gostaria de ter sido menos áspera, devido à boa vontade dele, mas foi involuntário.
— Bom, é o meu caso.
— Vai trabalhar no feriado? Eu não o faria nem amarrada. Só de estar atrasada já estou desgostosa... Que tipo de trabalho pode ser tão importante para que alguém desperdice o dia de ação de graças?
— Salvar vidas — ele respondeu sereno. — Eu sou médico. Acabei de fazer uma cirurgia e já estou atrasado para a próxima, que é na capital. Mas e você? Por que não viajou antes dessa nevasca?
— A verdade é que ela não estava prevista, bem como minha ida à capital. Eu geralmente passo a ação de graças na casa de meus pais, mas esse ano vou passar com o meu grande amor. Só que as coisas nunca funcionam como eu planejo e com essa viagem não foi diferente.
— Então você tem mesmo alguém! O que acha de brindarmos a isso? — com um gesto gentil, ele chamou a aeromoça e pediu para que trouxesse duas taças de champanhe, o que ela fez com muita rapidez. — Ao seu grande amor!
Ele levantou a taça e, no exato momento em que eu levaria a minha ao encontro da dele, houve um tremor muito forte devido a uma turbulência inesperada. O piloto pediu para que todos se acalmassem e apertassem os cintos. Breves minutos depois, ele deu sinal para que nós sentíssemos à vontade novamente.
— Ah, droga! — notei o estrago que o champanhe havia feito ao derramar em meu vestido, o qual comprei somente para a ocasião. — Meu vestido novinho!
O tempo passou no avião e eu rejeitei cada nova tentativa que o sujeito fez de começar um diálogo. Estava por aqui com esse dia é a última coisa que queria era jogar conversa fora.
Ao chegar à capital, sinalizei para um táxi na entrada do aeroporto, mas vi que o homem que estava ao meu lado tentava conseguir um sem sucesso. Me lembrei que ele precisava fazer uma cirurgia e cedi o meu a ele. Nesse mesmo momento, meu celular vibrou e recebi a mensagem de que meus pais que dizia que meu grande amor havia sofrido um acidente.
— Maldição! Por quê eu fui ceder o táxi? — reclamei para mim mesma, já em lágrimas.
Mais de uma hora se passou até que eu consegui um táxi livre, porém, a nevasca tinha piorado novamente e fiquei presa por mais duas horas no trânsito.
Ao chegar ao hospital, perguntei pelo meu amor e tive a surpresa de saber que o médico que havia sentado ao meu lado era o médico responsável.
— Me diga, doutor! Está tudo bem? — pergunto aflita.
— Acalme-se. Já pode dar graças... — não permiti que ele terminasse.
— Como posso agradecer quando ocorreu tamanha desgraça?
— Você ainda não percebeu, não é? Eu tive um dia muito pior que o seu: minha primeira cirurgia foi um fracasso, tive que suportar suas grosserias mesmo que eu só quisesse me distrair, o voo atrasou quando tinha mais uma vida dependendo de mim, mas ao invés de ficar reclamando como você, eu fui positivo e me mantive calmo. Talvez não fosse por isso, sua amada Lucy nem estaria mais conosco.
Foi assim que percebi que meu egoísmo quase matou o amor da minha vida, e aprendi o verdadeiro significado de agradecer até pela menor das coisas.

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