Parte I

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Carlos dirigia há doze horas sem parada para descanso. Todos os seus ossos já clamavam por uma cama para repouso, os olhos ardiam, seu humor alternava constantemente entre o desânimo e o stress, mesmo assim, toda a exaustão da viagem desaparecia quando ele simplesmente olhava para o lado, onde Margareth, sua noiva, tranquilamente dormia. Seus cabelos louros, como cascata de ouro, caiam desordenados cobrindo-lhe parte do rosto. Aquela imagem tirava de si todo desconforto e dor que pudesse sentir naquele momento, e n'um ato involuntário, seus lábios sorriam.

Era tudo que precisava para renovar o ânimo e seguir mais alguns quilômetros estrada adentro, enquanto Margareth apenas dormia.

Ela tomou um remédio para dor de cabeça antes de sair de casa e disse que a estrada estava lhe dando sono e era algo fácil de compreender. O som do vento soprando contínuo pela janela, a paisagem monótona sempre repetitiva, árvores, asfalto, mais árvores, mais asfalto, vez ou outra uma cidade surgia pela janela e da mesma forma como surgia, ficava para trás, dando lugar a mais árvores, e mais asfalto que sorria sempre tristemente à frente para se despedir pelo retrovisor, e o vento soprando incessantemente a mesma cantiga. Quem não tem o volante para manter-se ocupado rende-se facilmente aos braços de Morpheus.

Carlos era um amante do misticismo. Um estudioso inveterado do ocultismo, de espiritismo, de magias brancas e negras. Todo tipo de religião, crença, doutrina, versões de uma mesma história, da nossa história, lhe despertavam o interesse. Acreditava conhecer todas as seitas e ritos, entretanto, nunca as praticava. Alimentava apenas uma curiosidade imensurável, uma ânsia pelo saber. Conhecia todos os caminhos e atalhos de uma estrada por poucos traçada, mas não ousava percorrê-la, pois sabia que uma vez dado o primeiro passo não haveria mais retorno. Luzes e sombras o espreitariam pelos cantos, Deuses e demônios seriam despertados dando início a um conflito de inimagináveis proporções... Seus deuses e seus demônios.

Por opção, Carlos era um mago da teoria, um devorador de livros e foi esse hobby quase obsessivo que o levou a conhecer sua amada Margareth.

Aconteceu n'um sábado tempestuoso.

Ele entrou na biblioteca com a roupa toda encharcada, molhando o piso e já se preparava para levar uma bronca da bibliotecária ranzinza, quando foi surpreendido por uma nova funcionária o recepcionando com um gentil sorriso de boas-vindas nos lábios cor cereja. Elza, a antiga bibliotecária, havia se aposentado e naquela semana Margareth começara no emprego.

Acanhou-se ao perceber que não conseguiu disfarçar seu encanto com a beleza da moça e corado, gaguejou ao pedir o livro Magick - Book Four de Aleister Crowley, atual escopo de seus estudos.

Sentou-se em um canto e enquanto folheava o famoso livro, pela primeira vez ele não conseguia se concentrar nas palavras ali impressas. Seus olhos teimavam em seguir a nova bibliotecária para onde quer que ela fosse, e ela, a todo momento lhe retribuía o olhar e sorria, e como sorria, um sorriso de menina, como se mais nada existisse além daquele momento.

Carlos sentia pela primeira vez uma forte magia sendo posta em prática, não aquelas dos livros que tanto estudara aos quais já havia dedicado vários anos afinco, mas a sutil magia descrita por poetas e seresteiros, Carlos conhecia naquele momento, a magia do amor.

Com o passar dos dias suas visitas à biblioteca se tornaram mais e mais frequentes, agora não mais movidas pelo estudo ao ocultismo. Carlos queria vê-la diariamente, mesmo que fosse apenas pelos poucos minutos de seu intervalo no serviço para o almoço, já era suficiente para deixá-lo feliz até o dia seguinte. E aos sábados sua satisfação era suprema, quando enfim ele podia passar a manhã toda na biblioteca. Conversavam, riam, e no fim do expediente, Margareth o agradecia por ter tornado mais agradável as outrora entediantes horas de serviço.

Não tardou para que se tornassem bons amigos, saíssem juntos, descobrissem afinidades prazerosas e diferenças encantadoras. E para a felicidade de Carlos, n'um beijo tímido roubado em uma tarde ensolarada, foi-lhe revelado também o amor de Margareth. E ela agora estava ali, adormecida ao seu lado, sua noiva. Ainda fazendo-o sentir a mesma paz de quando se conheceram meses atrás.

Carlos a amava como jamais imaginou ser capaz de amar alguém, e somente por isso, após meses relutando, ele cedeu aos pedidos de sua noiva e aceitou percorrer meio país no volante de seu velho Maverick para conhecer os futuros sogros.




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