Parte II

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Já nos limites da cidade destino, ele ainda precisava encontrar a casa onde a noiva foi criada. Uma estradinha de terra entre a mata, próximo ao trevo na entrada da cidade, foi tudo que ela disse antes de adormecer. Ele não queria acordá-la, então apenas dirigia.

Ele também precisava dormir. Não aguentava mais o peso das pálpebras e cada minúsculo músculo de seu corpo latejava e pedia por uma cama. Por diversas vezes pensou em parar o carro no estacionamento lateral e dormir ali no banco do carro mesmo, não muito, apenas o suficiente para repor as energias, mas como desconhecia a cidade, não seria tão imprudente a ponto de colocar sua noiva em perigo.

Ele apenas dirigia. Por todas as estradas que rodeavam a cidade, ele dirigia. E tudo que avistava eram árvores e mais árvores.De repente avistou uma estradinha de terra escondida pela vegetação, talvez a única que ainda não havia percorrido e seguiu por ela.

Negras árvores ladeavam a estrada. O vento gélido da madrugada soprando por entre suas folhagens sibilava uma canção sombria que faria tremer o mais valente dos homens. Mas, ainda assim, ele seguia em frente.

- Chegamos, meu amor! - As repentinas palavras de Margareth o assustaram.

Carlos dirigia tão concentrado que não notou que sua noiva já havia acordado. E, quando tornou a olhar para a estrada, atrás de um enorme eucalipto surgiu a tão falada Mansão dos Fazardo Ferreira.

Desceu do carro e ainda do portão, pôde contemplar cada rico detalhe antes traçado apenas com palavras em sua imaginação. O casarão já não ostentava mais a mesma suntuosidade de quando personagem nas histórias contadas por Margareth sobre o tempo de infância, mas as formas e o tamanho foram descritos com perfeição. Apesar de surrada pelo tempo, se tratava de uma magnifica arquitetura do século XVIII, um mini castelo de vidraças como olhos curiosos que a tudo viam. Até mesmo o poço artesiano, agora abandonado, era perfeitamente como descrito pela jovem quando palco de suas peripécias pueris.

Após forçarem um pouco o velho portão e perceberem que o mesmo se desmancharia em ferrugem se fosse aberto além do vão de trinta centímetros que já possuía, decidiram deixar o carro ali mesmo e seguiram a pé até o casarão.

Quando de um canto escuro uma estranha voz os repreendeu.

- Não há ninguém na casa. Vão embora...

Da origem da voz surgiu uma velha negra caminhando em direção ao casal. O peso da idade somava-lhe sacrifício a cada passo dado. Em sua boca murcha se pendurava um cachimbo exalando fétida fumaça e, mesmo com toda aquela densa névoa lhe cobrindo o rosto, via-se o brilho de seus olhos, algo malévolo, carregado de ódio e amargor.

- Vão embora. – ela repetia.

- Como assim não há ninguém? Teresa, sou eu, Margareth. Não está me reconhecendo? – respondia Margareth.

- Vão embora. Não há ninguém, já disse. Vocês devem ir embora... Vão.

A velha parecia não dar a mínima atenção para o que Margareth falava, repetindo insistentemente a mesma ordem em tom ameaçador.

- Vão embora...

Enquanto Margareth discutia com a senhora, Carlos percebeu movimentação nos cantos escuros que os cercavam. Muitas outras pessoas se movimentavam aos arredores da casa, escondidas e espalhadas por todos os lados. Dezenas de negros e mulatos, eram homens e mulheres, velhos e jovens, dezenas dele se espreitando na escuridão, cercavam sinuosamente o recém-chegado casal.

Apavorado, ele segurou a mão de Margareth e puxou fazendo-a entender que ele queria obedecer a velha e cair fora dali o mais rápido possível, mas ela o deteve, segurando firmemente em sua mão. Olhou-o nos olhos e entre um beijo e um sorriso, pediu que ele mantivesse a calma. Em seguida explicou que Teresa, a velha senhora, era apenas um pouco ranzinza, mas se tratava de uma boa pessoa. Ela e a família estavam há décadas a serviço de seus pais, auxiliando inclusive em sua própria criação. Carlos controlou o temor em suas pernas e concordou em ficar, e Margareth voltou a falar com a velha.

- Quer parar com isso, Teresa. Está assustando meu noivo. Não sei onde meus pais foram, mas eu avisei que chegaria hoje, então não devem tardar a retornarem. Além disso, não viemos de tão longe para irmos embora assim, sem que ao menos conheçam meu futuro marido. Iremos entrar para descansarmos um pouco da longa viagem até que eles retornem.

E em seguida deu as costas à Teresa e seguiu em direção à entrada da casa, apanhou uma chave escondida debaixo de um dos vasos que a ladeavam e após abri-la parou no umbral e se virou para Carlos como um pedido silente para que ele a seguisse. Oqueprontamente ele obedeceu, mas antes de entrar na casa ouviu uma nova e mais horripilante sentença proferida pela boca murcha da velha Teresa.

- Antes que esta noite termine, sangue inocente será derramado...

Imediatamente Carlos se virou, mas não havia mais ninguém ali.

Todos os negros haviam desaparecido e da velha senhora só restava a fumaça de seu cachimbo.

- Venha, meu amor. Você precisa descansar um pouco - Margareth o chamou novamente.

Ela o esperava já no quarto que fora seu quando criança.

Carlos, seguindo o som de sua voz, subiu as escadas e a encontrou em um dos quartos, o único com a porta aberta, já deitada sobre uma enorme cama de madeira. Seu corpo nu coberto por um fino lençol de seda branco delineando as curvas de simetria perfeita. Carlos deitou ao seu lado, acariciou lhe o rosto e a olhou com ternura e fragilidade.

- O que foi, querido? Aconteceu alguma coisa? – Ela notou a preocupação em seu rosto.

“Antes que esta noite termine, sangue inocente será derramado”

As palavras se repetiam incessantemente em sua cabeça.

- Não é nada. Talvez seja apenas cansaço – ele respondeu

- Meu amor – disse Margareth - Se você está preocupado com a Teresa, esqueça isso. Eu sei o quão assustadora ela pode parecer às vezes, acredite em mim, eu sei... Quando era criança, ela vivia me cercando com amuletos, e velas, e todo tipo de badulaques estranhos de sua religião. Meus pais enlouqueceram quando descobriram, brigaram com ela e ameaçaram despedi-la. A coitadinha dizia apenas que era para a minha proteção. Não lembro o porquê, mas eles acabaram mudando de ideia, talvez perceberam que no fundo Teresa só queria o meu bem... O que eu realmente estou estranhando é meus pais não estarem em casa essa hora da noite. Eles não são de passar a noite fora, e sabiam que estávamos vindo. Sei que você está exausto agora, então durma um pouco e assim que amanhecer, se eles ainda não estiverem em casa, nós iremos até à cidade procurar por eles, está bem?

Carlos assentiu com a cabeça, porem mal ouviu o que sua noiva havia lhe falado. As palavras da velha Teresa atormentavam seus pensamentos, e por mais que Margareth a defendesse, uma sensação ruim afligia seu coração...

Aquela mulher era perigosa, ele pensava. E pobre Margareth, tão doce, tão meiga, que é incapaz de enxergar o mal nas pessoas, mas ele a protegeria, ele pensava, sentia angústia olhar para o rosto de sua amada e imaginar algum mal acontecendo a ela.

“Antes que esta noite termine, sangue inocente será derramado”

Ele a abraçou forte e ficaram deitados em silêncio. Carlos estava assustado e determinado a passar a noite em claro a protegendo de Teresa. Mas fora vencido pelo cansaço e em poucos minutos seus olhos o traíram...

InocênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora