Parte III

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Uma confusão de vozes fez com que Carlos despertasse de sobressalto. Brados e lamúrias romperam o silêncio da madrugada mesclando-se ao batucar de tambores. Algumas vozes gritavam, outras choramingavam, outras cantavam em aterrorizante coral, cânticos e orações em um idioma desconhecido.

Desesperou-se ao não ver Margareth deitada ao seu lado. Angustiado olhou por todo o cômodo e não a encontrou em lugar nenhum. Então viu que a porta que havia deixado encostada, estava entreaberta e na pontada fria em seu coração pressentiu que sua noiva corria perigo.

Ele saiu do quarto desgovernado, desceu a longa escadaria em saltos e tropeços.

Com todas as forças Carlos puxou a maçaneta da porta principal, estava trancada. Ele não podia perder tempo, correu em direção a uma das enormes janelas da sala e tentou abri-la, também estava trancada. Sem condições de raciocinar direito, pegou uma grande poltrona de madeira de um canto da sala e a arremessou contra o vidro.

Suas pernas estremeceram.

O móvel de madeira maciça se partiu em pedaços ao chocar-se contra a janela, porem vidro de aparência frágil não sofrera um mínimo arranhão.

Através do vidro transparente ele pôde enxergar fora da casa a imagem da velha Teresa o perscrutando com o olhar enquanto seus lábios se moviam ligeiros, ela recitava palavras inaudíveis àquela distância, mas menos aterrorizante do que o olhar da velha lhe penetrando a alma.

Os outros negros, homens e mulheres de todas as idades, rodeavam a casa carregando e rodopiando tochas de fogo no ar. Cantavam e dançavam. Os corpos suados gingavam, uns desmaiavam, outros repetiam incessantemente mantras e rezas. Alguns choravam, outros bradavam com fúria insana. Carlos tremia de medo, desespero, angústia.

Margareth estava em algum lugar lá fora.

Descontrolado, ele começou a atirar os móveis na direção das janelas, e em todas elas o resultado se repetia. Os móveis se espedaçavam sem causar qualquer dano aos vidros finos.

Os gritos e cânticos se tornavam ensurdecedores. As labaredas das tochas faiscavam próximas às janelas. Os homens estavam por todos os lados dançando como demônios encarnados. Carlos que até então se julgava extremo conhecedor de todos os ritos e cultos, se via aprisionado por uma força estranha, cantada n’um idioma irreconhecível, nunca visto nas páginas dos livros que tanto estudara.

Lembrou-se da janela do quarto no andar superior e correu para lá, mas também estava trancada.

Medo, angústia, impotência... Carlos não suportou e como uma criança perdida, ele chorou.

Recostando a cabeça sobre o vidro da janela, observando incrédulo o estranho rito lá embaixo, ao redor da casa, sem saber o paradeiro da amada e completamente incapaz de fazer algo por si, algo por ela, a dor verteu em seus olhos...

- Margareth... – Os lábios lamuriaram seu nome.

Percebeu que além dos negros quase desnudos próximos a casa, havia outros homens mais ao longe, cobertos com mantos e capuzes brancos. Vinham da floresta e caminhavam em direção ao poço abandonado, um deles carregando um grande fardo em seu ombro. Carlos novamente se desesperou pois a carga se assemelhava em forma a um corpo humano.

- Margareth... – Os lábios prantearam seu nome.

O homem atirou o fardo dentro do poço e continuou com seu grupo em direção a casa para se juntarem aos primeiros que dançavam e cantavam de forma ensandecida, como se possuídos por deuses ou demônios de uma fé incógnita.

Com o medo entorpecendo o raciocínio, Carlos decidiu quebrar a promessa feita a si mesmo...

Olho por olho, dente por dente. Contra magia, ele resolveu usar magia.

Puxou de sua memória, exclamou, bradou, com uma mescla de fúria insana e intensa dor, todas as palavras e mantras que recordava ter lido durante décadas de pesquisas místicas.

Desceu a escadaria correndo e gritando como um pastor pregando aos fieis. Carlos combatia com palavras aqueles que o aprisionavam. Percebeu a força da arma que possuía, da magia que tanto estudara e até então não havia posto em prática, quando subitamente os gritos oriundos da noite lá fora mudaram da cólera para a dor, da euforia religiosa para a histeria e a suplica. Os que antes dançavam ao redor da casa, pareciam agora fugir apavorados.

O terror se espalhou pela madrugada. O vento soprava forte espalhando os gritos de dor e clamor dos homens atingidos pela magia de Carlos. Jactos de sangue manchavam as janelas donde antes o fogo faiscava.

Do interior da casa, entregue aos ritos e gritos Carlos nada via além dos vidros sendo cobertos de vermelho vida. O som aterrorizante que ecoava por todos os lados do velho casarão desenhava em sua imaginação cenas horrendas de corpos caindo sem vida, de outros fugindo desesperados, alguns de joelhos clamando por misericórdia e Carlos ensandecia de prazer ao provar do poder negro. Ele gargalhava e urrava se satisfazendo com a dor daqueles que raptaram sua noiva.

De repente os gritos cessaram. Lá fora fez-se silêncio e Carlos caiu de joelhos. Sentiu o corpo cansado e, mesmo com o coração ainda sofrendo pelo desaparecimento de Margareth, ele não conteve o riso extasiado com o sádico sabor da vingança.

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