Capítulo 1 - A Ceifa

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Acordo às três da manhã. Não, não é costume acordar tão cedo. Isto, isto que me fez acordar, é um nó apertado na minha mente, que não me deixa, que não parte. Isto é medo.

A verdade é que não costumo acordar muito mais tarde. Levantamo-nos cedo, para trabalhar nos pomares e nos campos de cereais. Pergunto-me se as outras raparigas estarão acordadas, a pensar no mesmo que eu. A pensar na Ceifa. Olho para o chão. Distingo cada veio da madeira, cada ruga, cada nó. Olho-o tão frequentemente à noite, antes de adormecer. Observo-o por longos minutos para decorar todos os seus pormenores, para me relembrar dele e conseguir adormecer quando um dia não estiver mais em casa. Todos os anos, antes da Ceifa, realizo este ritual de memorização. Para levar cada detalhe da minha vida comigo, para onde quer que vá. 

 Odeio a época de colheitas; poderia ser uma época agradável se colhêssemos para nos alimentar; mas colhemos para enriquecer o Capitólio. Mas o dia da Ceifa constitui uma excepção; Na Ceifa fazemos uma pausa. Não que seja um dia de descanso. 

O meu nome, este ano repete-se cinco vezes na tômbola de vidro. Três vezes pela minha idade, duas vezes pelas trocas que realizámos por tésseras. Levanto-me. Olho para os pequenos vultos das minhas irmãs. Dormem profundamente; agradeço a Deus que elas não tenham de participar na Ceifa. E quando penso nisto, conto os anos de tranquilidade que lhes restam. Cinco anos para a Hollie. Apenas dois anos para a Grace. 

 Afasto as cortinas de pano e olhos através da janela. O que observo? A casa de Nicole Scarlett. A ideia de sair e bater-lhe à porta assalta a minha mente. Provavelmente estará do outro lado da rua a pensar fazer o mesmo. Troco a camisa de dormir pelo vestido mais antigo que tenho. Espero que a minha mãe não me veja a sair de casa com ele; afinal de contas hoje é o dia da Ceifa. Calço as minhas botas de trabalho. Prometo a mim própria que voltarei suficientemente rápido para que todos continuem a dormir e eu tenha oportunidade de trocar de roupa. Abro a porta de casa com cautela, para não emitir qualquer som. Sinto as pernas a arrepiarem-se com o fresco da rua. Corro a pequena distância até à casa de Nicole e bato freneticamente na janela do seu quarto, para não acordar os seus pais. Observo a escuridão pintada no céu.

 Ela demora bastante a abrir a janela. Tem um aspecto ensonado, de certo não estaria acordada, como eu estava. Ajuda-me a subir. Lembro-me como fizemos exatamente o mesmo no ano passado. E no anterior. Lembro-me como tudo acabou: connosco a chorar compulsivamente depois de longas horas de conversa sobre a Ceifa. 

 -Estavas a dormir? – Pergunto desconfiada após termos fechado as cortinas. O lençol ainda está amachucado. O espaço reflecte silêncio e calma. 

 -Estava… A sonhar - Parece até um pouco incomodada pela interrupção do seu sono, que por esta altura deveria ser profundo. Sento-me no extremo da cama, a jeito de conversar apesar de ela não estar com aparência de quem quer passar algum tempo a desesperar sobre a Ceifa e os Jogos, sobre a vida e a morte.

 -Então… Cá estamos nós como todos os anos… - Tento fazer uma conversa introdutória, de circunstância mas descubro-me incapaz. Respiro fundo e passo à questão que realmente me intriga – Como és capaz de dormir hoje?! Todos os outros anos estavas acordada e…

 Nicole parece não estar com paciência, senta-se e responde, num tom agressivo:

 -Em todos os outros anos sentámo-nos aqui e chorámos por algo que não aconteceu. Admite, a sério… As probabilidades de calhar o nosso nome são praticamente nenhumas. Talvez devesses ir para casa descansada, tentasses dormir um pouco, sei lá. Afinal de contas, o nosso nome só está inscrito três vezes…

 Claro, ela não trocou o seu nome por tésseras; também não lhe contei que o fiz. Nicole continua a falar, palavras sem sentido, para mim. Como pode ela dormir? Penso em contar-lhe que o meu nome tem mais hipóteses de ser o escolhido do que o dela. É isso que as amigas fazem, não é? Mas será que quero partilhar a minha angústia com ela? Talvez não. Não conto nada e ela continua a falar. Após ela tentar algumas palavras reconfortantes que aparentemente não surtiram efeito, salto novamente pela janela e dirijo-me a casa. Passou muito tempo, claramente. Já se distingue a luz da madrugada, a ligeira claridade no fundo negro.

 Quando entro em casa, desloco-me o mais levemente possível. Tento detectar algum som. A minha mãe aparece num pranto, com a seu rosto enrugado, sussurrando todas aquelas palavras que me havia dito na noite anterior “ sabes, eu não gosto que saias à noite quando todos estão a dormir” e “ o dia da Ceifa exige que te vistas a rigor, nunca te esqueças”. Será que sussurrou porque sabe que o que estou a passar não tem preço a pagar nem regras por onde medir ou porque não quer acordar os outros? Tento acreditar que a primeira opção é a correcta. Entro na casa de banho. A minha mãe preparou a banheira. Hoje tenho direito a água quente e sais de banho. Não é nada que me anime ou descontraia, ao contrário do que seria de esperar. Lavo-me rapidamente. O que eu quero realmente é terminar todos estes rituais de beleza. Dirijo-me para o quarto e visto o mesmo vestido cinzento que visto todos os anos no dia da Ceifa. Verifico que Hollie e Grace não se encontram na cama – já acordaram. Calço os sapatos azuis que em tempos foram da minha tia. Penteio o meu cabelo e ato-o num rabo-de-cavalo; as outras raparigas costumam usar penteados mas rebuscados, no entanto eu não tenho qualquer habilidade para trabalhar cabelo; fui instruída para trabalhar terra.

 Depois de comer alguns cereais dirijo-me a pé para a Ceifa. A minha mãe e irmãs seguem-me. O meu pai não tem direito a interromper as tarefas pela Ceifa. Atravessamos algumas ruas escuras e observamos vastos campos de trigo e pomares, bem como a vedação do distrito 11.Quando chegamos, observo a quantidade de jovens presentes. Imensos. Coloco-me na fila para a recolha de sangue. Quanto acontece, é algo que não me provoca dor. Afinal de contas, já fiz isto noutros anos. Não é algo agradável, claro, mas temos de notar a nossa presença na Ceifa.

 A apresentadora mostra-nos o mesmo vídeo ao qual assistimos todos os anos, o filme do Capitólio. Todos parecem revoltados, como todos os anos, mas a verdade é que não têm espaço para revoltas com os soldados da paz a dois metros de nós.

 Ocupo o meu lugar. Estou tão nervosa que nem observo a aproximação de Nicole. Não falamos. A apresentadora Maryline começa o seu discurso sobre toda a beleza dos Jogos da Fome. Nada faz sentido. “-E que a sorte esteja sempre convosco!” – Termina. O seu volumoso cabelo vermelho reluz ao sol. Maryline é alta, com um pescoço comprido. As roupas extravagantes assentam-lhe na perfeição, vermelhas como o seu cabelo. Os seus sapatos azuis parecem ser altos de mais… Os seus olhos adquirem um tom invulgar, talvez seja devido à maquilhagem excessiva que lhe transforma todo o rosto.

Observo os rostos de todos os jovens expectantes. Quando Maryline retira um papel, eu sustenho a respiração. Tenho esperança que não seja o meu nome. Sinto a mão de Nicole no meu braço.

 -Emma Pe… - Não ouço o resto. Não preciso de ouvir mais nada para saber que as palavras são Emma Peterson, e esse é exactamente o meu nome. Avanço. Avanço até Maryline. Todos os rostos, todos os jovens demonstram respeito, e sobretudo, pena.

Observo as minhas irmãs após subir ao palco. Choram imenso. Após observar a multidão, Maryline dá as suas últimas palavras e eu entro no edifício da justiça. Este ano é uma edição especial, não haverá tributos masculinos. 

 A minha mãe entra rapidamente. Abraçamo-nos, enquanto ela me diz que as minhas irmãs não podem entrar. Ela aconselha-me a ficar sempre atenta nos jogos; observo uma lágrima a percorrer a sua face. Quando sai, Nicole entra. Ela parece bastante alarmada, tem os olhos vermelhos, e abraçamo-nos sem dizer nada. Ela acaba por partir pouco tempo depois; talvez se tenha arrependido do que dissera na noite anterior.

 Quando entro no comboio, em direcção ao Capitólio vejo aquela que será a minha mentora: Abby Montgomery. 

 É uma rapariga de 25 anos com rosto de menina; nunca ninguém percebeu realmente como ela venceu os jogos. Porque ela passou a maior parte do tempo em cima das árvores, era a minha conclusão. Apenas matou um tributo: O último da arena. Só restou ela. E saiu viva.

 Maryline aconselha-nos a discutir a minha sobrevivência nos jogos. Mas Abby parte para a sua cabina sem utilizar qualquer palavra. O que eu considero sobre este momento: Ela não será um grande auxílio. O que me deixa ainda mais alarmada. 

 Sento-me na minha cabina de descanso. Olho em volta, não observo pavimento de madeira. Choro como nunca chorei na minha vida. Sinto um desespero no fundo da minha alma, sinto a conclusão da minha estadia na Terra a aproximar-se. 

 Relembro os nós da madeira do chão da minha casa, e depois adormeço, com esta recordação.

Os Jogos da Fome - Apenas mais uns jogos, será?Onde histórias criam vida. Descubra agora