ningum e de ninguém cap 4

690 13 0
                                    

Georgina tocou a campainha várias vezes. Roberto teria saído? Ela
resolveu visitar o filho na terça-feira à tarde porque sabia que tanto Gabriela
quanto Nicete não estariam em casa. Roberto deveria estar, porqüanto a janela
do quarto da frente estava aberta. Insistiu, até que finalmente ele apareceu na
porta.
- Pensei que tivesse saído e esquecido a janela aberta. Aliás, mesmo
durante o dia você não deveria deixá-la assim. É um convite ao ladrão.
— Entre, mãe respondeu ele.
Uma vez na sala, porta fechada, ela o abraçou com tristeza, dizendo:
Pelo jeito, ainda não arranjou nada. Em casa a esta hora...
Ele sentiu vontade de não responder. Já tinha problemas demais para ter
de agüentar os comentários dela. Conteve-se. Afinal, ela era sua mãe e não
tinha culpa pelo que ele estava passando.
— Tenho algumas coisas em vista — mentiu ele. — Tenho certeza de que
algum deles vai dar certo. É só questão de tempo.
Georgina meneou a cabeça, fitando-o triste.
— Dói vê-lo nessa situação! Você, que sempre conseguiu tudo que quis.
Fico de coração apertado, pensando em como andará sua cabeça.
— Não se preocupe tanto, mãe. Eu estou muito bem. Já disse que essa
situação é temporária. Vai passar.
— Não sei, não. Nessa maré de má sorte em que você anda, tudo pode
acontecer.
Aproximando-se mais dele, baixando a voz, ela continuou: — Acho que
Dalva está certa.
Você tem trabalho feito. Sabe como é, você estava muito bem e de
repente tudo mudou. A inveja e a maldade têm meios de derrubar uma pessoa.
— Não creio nessas coisas, mãe.
— Você devia procurar um centro espírita para desmanchar esse mal.
Dalva freqüenta um e entende dessas coisas. Ela me contou alguns casos
impressionantes. Garantiu que sozinho você não vai conseguir melhorar. Sua
vida irá de mal a pior. Eu pedi, e ela fez uma consulta lá e disse que, se você
não fizer nada, até sua mulher vai largá-lo.
Roberto sobressaltou-se. Com exceção do médico, ele não contara a
ninguém de suas desconfianças sobre Gabriela.
Georgina continuou:
— Vim aqui especialmente para dar esse recado. Quero levar você lá para
resolver isso. Não posso mais vê-lo desse jeito. Precisamos fazer alguma
coisa.
Ele respirou fundo e decidiu:
— Eu não vou. Não gosto da sua amiga Dalva, nem dessa idéia de me
meter com bruxarias.
Largue de se preocupar comigo. Posso cuidar de minha vida.
— Pode tanto que está desse jeito! Não vê que nada tem dado certo? Até
quando pretende ficar vivendo à custa de sua mulher? Até que ela se canse e
lhe diga adeus?
Roberto não se conteve mais.
— Chega, mãe! Não estou com disposição para conversar. Aliás, preciso
sair agora, tenho uma entrevista importante.
— Bem que Dalva me avisou que você não ia aceitar. Ela garantiu que a
macumba foi muito bem-feita, que quando eu o convidasse você se voltaria
contra mim. Aconteceu mesmo. Você está me mandando embora. Nunca fez
isso antes. Mas saiba, meu filho, que está sendo muito ingrato. O que eu quero
é ajudá-lo. Peço-lhe: vamos ao centro.
— Não acredito no que está dizendo. Não quero ir. Entenda. Não estou
mandando-a embora.
Tenho um compromisso, já disse. Sei que deseja me ajudar.
— Você não vai arranjar nada se não desmanchar essa macumba. Por que
é tão teimoso?
— Deixe que meus problemas eu resolvo. Não se preocupe.
— Eu vou embora, mas, se mudar de idéia, procure-me. Para desmanchar
o trabalho, vamos precisar de algum dinheiro. Você não tem, mas eu posso dar
um jeito. Eles aceitam uma parte agora e o resto quando tudo estiver resolvido.
Eu tenho algumas economias, acho que dará para as primeiras despesas.
Roberto impacientou-se:
— Mãe, quantas vezes preciso lhe dizer que não irei a esse lugar? Guarde
seu dinheiro, pode precisar dele. Não o entregue a esses oportunistas.
— Não diga isso, meu filho. São pessoas que fazem isso de coração. Mas
eles precisam comprar o material. É justo pagar por isso.
— Espero que você não dê dinheiro a eles. O que recebe mal dá para suas
despesas.
— Para salvar meu filho, farei qualquer negócio.
— Não esse, por favor. Chega já minhas preocupações. Não posso
também agora cuidar de você. Seja razoável.
— Eles já mexeram no caso! O que direi a Dalva?
— Fez isso sem me consultar. Viu no que deu? Agradeça a ajuda e trate
de não arranjar mais confusão. Diga que eu já consegui trabalho, que estou
viajando, invente alguma história, mas saia dessa e não me envolva. Se
continuar com isso, ficarei muito zangado com você. Entendeu?
Ela suspirou desanimada. Depois disse:
— Estou desolada, mas farei o que me pede. Contudo, se mudar de idéia,
poderemos ir.
Ela se despediu, e Roberto respirou aliviado quando a viu sair. Fechou a
porta e deixou-se cair em uma cadeira. Era só o que lhe faltava! Pensou em
Gabriela naquele carro. E se fosse mesmo verdade? E se ele estivesse sendo
vítima de alguma macumba para fazer com que perdesse tudo, até a mulher?
Ela andava calada, diferente, não se chegava como antigamente. Ele tinha até
receio de abraçá-la. E se ela o recusasse? Andava sempre cansada, dormia
logo, não o beijava nem abraçava na cama, como antes.
Passou a mão nos cabelos num gesto de impotência. Se isso fosse
verdade, ele estava vencido. Como lutar contra coisas que ele não via nem
sabia como funcionavam? Lembrou-se de alguns casos de conhecidos que os
amigos diziam terem sido vítimas de feitiçaria. Eles não tinham conseguido
sair.
Não havia nenhuma lógica. Ele não podia acreditar que isso existisse.
Contudo, uma sensação de medo o invadiu, O sobrenatural, os rituais que vira
em filmes de magia estariam destruindo sua vida? Como se defender? Ele não
acreditava que Dalva e seus amigos tivessem poder para resolver seu caso, se
ele estivesse mesmo sendo uma vítima dos seres do mal.
E se procurasse um padre? Não, ele não se sentia com coragem de falar
com ele sobre esses assuntos sempre tão combatidos pela igreja. E o pastor?
A esposa de um conhecido garantira-lhe que ele precisava ir para uma igreja
evangélica, que tudo seria resolvido. Se ele fosse la contar suas suspeitas, eles
diriam que estava sendo envolvido pelo diabo. Só que ele não acreditava nele.
Esses pensamentos angustiados não o deixaram até a hora de ir ao
consultório de Aurélio.
Logo que entrou, o médico notou sua preocupação. Assim que o viu
acomodado na poltrona, foi dizendo:
— Conte o que aconteceu.
— Nada que mereça atenção — disse ele com receio de parecer
ignorante.
— Talvez não mereça, mas você deu importância. Prefere não falar no
assunto?
— Não foi nada sério. Minha mãe esta tarde veio com uma conversa louca.
Disse que tenho um trabalho feito.
— Uma macumba?
— É.
— Pode ser mesmo.
Roberto surpreendeu-se:
— Você acredita nisso?
— Por que não? O magnetismo, a manipulação de energias, a força
mental podem criar e alimentar situações muito penosas.
— Isso seria o cúmulo do azar. Só me faltava essa! Deus está mesmo
contra mim, permitindo que eu seja castigado dessa forma sem que possa me
defender.
— Não fale assim sobre coisas que desconhece.
— Como quer que eu me sinta? Depois de haver sido roubado, ter perdido
tudo, estar desempregado, a mulher pensar em abandonar-me, ainda as forças
do mal estão contra mim. Isso me desespera. Lutar contra seres invisíveis que
desejam acabar comigo é demais para um homem como eu.
— Do jeito como você está olhando a situação, parece que não tem como
sair dela.
— Não tenho mesmo. Tudo quanto fiz até agora não valeu nada. Minha
vida está cada vez pior.
— Acalme-se. Vamos fazer um exercício de relaxamento. Deite-se na
maca.
Roberto obedeceu. Aurélio apagou a luz, deixando acesa apenas pequena
lâmpada azul.
Depois, colocou uma música suave, aproximou-se de Roberto e, colocando
a mão direita espalmada sobre sua testa, disse.
— Relaxe, deixe seu corpo bem à vontade. Imagine que você está em um
parque, as árvores muito viçosas e os canteiros cheios de flores exalando
agradável perfume. Há pássaros cantando, o ruído de água caindo do morro,
lavando as pedras do caminho, formando uma espuma branca que se
desmancha ao chegar ao lago. Você está descansando. Agora é o seu
momento. Não tem que fazer nada a não ser se integrar na harmonia da
natureza. Respire fundo, aproveite esse ambiente calmo, tranqüilo e vitalizante.
Vamos, respire.
Roberto começou a respirar conforme ele mandava e aos poucos foi sentindo sonolência, bocejando seguidamente. Aurélio continuou:
— Vamos, continue respirando o ar puro do parque, usufruindo do gorjeio
dos pássaros e da brisa perfumada do lugar. Tudo é perfeito no universo. Você
é natureza, você é perfeito. A natureza cuida do seu corpo, do ar que você
precisa para respirar, do alimento que você deve ingerir. Ela provê tudo. Nada
lhe falta. Você tem tudo para melhorar sua qualidade de vida. Para isso só
precisa entender como a vida funciona, fazer sua parte e confiar que o invisível
fará o resto.
A vida é luz, beleza, harmonia, equilíbrio, paz.
De repente, Roberto começou a soluçar. As lágrimas desciam pelo seu
rosto e ele tentou contê-las, mas Aurélio tornou:
— Chore. Lave sua alma. Jogue fora todos os pensamentos dolorosos que
o incomodam.
Você é luz, vida, bondade, beleza, paz.
Roberto soluçou durante alguns minutos. Quando ele se calou, Aurélio
perguntou:
— Como se sente agora?
— Melhor.
— Agora, sente-se na poltrona, vamos conversar. Há algumas coisas que
desejo lhe explicar.
Ele obedeceu. Depois, olhando para o rosto do médico, que havia se
sentado à sua frente, tentou sorrir.
— Devo parecer-lhe um fraco.
- Ao contrário. Você é pessoa muito forte.
— Ainda agora, me queixei, chorei.
— É natural. Você está sofrendo.
— O que acaba comigo é sentir-me impotente. Por mais que eu tente
resolver minha vida, não consigo nada.
- Você está tentando sempre do mesmo jeito. Vai obter sempre o mesmo
resultado.
— Não estou entendendo.
— É preciso descobrir como você está atraindo essa situação em sua vida.
Cada um é responsável por tudo quanto lhe acontece.
— Eu não. Fui vítima da maldade de Neumes.
- Não creia nisso. Você colheu os resultados das suas atitudes.
Roberto ia interromper, mas Aurélio fez um gesto para que só ouvisse e
continuou:
— Sei o que vai dizer. Que o seu sócio era mau-caráter, ladrão, e que você
sempre foi honesto. Mas por que ele o procurou para propor o negócio? Por
que ele escolheu você e não outro para ludibriar?
— Eu era pessoa de boa-fé.
— Sim, mas sempre se julgou inferior a ele só porque ele tinha um diploma
e você não. Você acredita que, para ser importante, é preciso haver cursado
uma universidade. Nunca passou pela sua cabeça questionar os atos dele,
uma vez que o via como mais sábio, mais capaz.
— Eu nunca saberia construir um prédio daqueles.
— Concordo. Ele possuía conhecimentos técnicos que você não tinha. Mas
por outro lado, apesar de todo o conhecimento, ele não havia conseguido subir
na vida. Não possuía o seu capital, o dinheiro que você conseguiu ganhar
apesar de não ter o diploma dele. Entendeu?
Roberto coçou a cabeça admirado. Era verdade. Ele sempre fora capaz de
ganhar sua vida, conseguir o que queria.
— Eu queria que você percebesse que foi você quem se colocou abaixo
dele, considerando-o mais. Por causa disso, confiou cegamente nele, deixou
de lado seu talento comercial, sua sagacidade, envaidecido por ele haver se
associado a você. Em sua cabeça, ele era muito mais do que você. Não
usando o seu bom senso, sua intuição, como sempre havia feito em sua vida,
você pôde ser enganado. Você não foi uma vítima. Ao contrário, suas atitudes
atraíram e facilitaram o trabalho dele.
Roberto meneou a cabeça, pensativo.
— Lembra-se de como você era antes de fazer essa sociedade?
— Claro. Eu não ouvia ninguém. Fazia o que me parecia melhor.
— E assim você prosperou, casou com a mulher amada, tudo como
desejava.
— Até aparecer aquele sem-vergonha. Como pude ser tão burro?
— Não se culpe, para não piorar as coisas. Você precisa colocar sua força
em coisas boas, que melhorem sua vida. A culpa, além de dispersar suas
energias, ainda o empurra para o pessimismo. A condenação não ajuda em
nada, só atrapalha. O que aconteceu com você foi para o bem, reconheça.
— Isso não, doutor. Tem sido horrível.
— Mas o impulsiona a pensar, a procurar as causas de tudo e encontrar a
melhor solução.
Você está crescendo.
— Experiência eu ganhei, isso é verdade. Nunca mais entrarei noutra.
— As pessoas não são iguais. Se você estiver bem, vai atrair pessoas
boas, nutritivas, que vão concorrer para tornar sua vida melhor.
— Ainda vem minha mãe com essa história de macumba...
— Nós nunca conseguimos agradar todo mundo. Há pessoas que se
incomodam com o seu sucesso. Há as que vêem maldade em tudo quanto
você faz. Entre elas pode haver as que, a pretexto de “salvar” você, ou de
castigá-lo pelos seus erros, apelam para os espíritos desencarnados mais
primitivos, realizando trabalhos de macumba.
— Então existe mesmo isso? Não é enganação para pegar dinheiro dos
incautos?
— Há espertalhões em todo lugar. Mas estou falando dos que realmente
estão envolvidos com espíritos e desejam interferir na vida das pessoas,
manipulando-as de acordo com seus interesses.
— Eles conseguem mesmo isso?
— Só com os que não tomam posse de si mesmos.
— Como assim?
— Acontece com as pessoas muito dependentes, que não têm opinião
própria, que vivem perguntando tudo aos outros. Essas pessoas são muito
vaidosas. Têm medo de errar, preferem não assumir responsabilidade por si
mesmas. Sempre desejam dividir com outros, querendo opinião para, depois,
se der errado, culpar o outro. Uma pessoa mais lúcida, que usa o bom senso,
não se deixa levar com facilidade, não pega macumba. Quem é positivo olha a
vida sempre pelo lado bom, nunca dá força nem teme o mal, fica imune a todas
essas investidas das trevas. Agora, conhecer a espiritualidade, saber como as
energias que estão ànossa volta funcionam, dá segurança. Deus habita dentro
de cada alma e, se você se habituar a buscar essa fonte espiritual, acreditar   
que ela está em você, agir de acordo com ela, nunca terá problemas com
espíritos maldosos. A força deles é muito pequena diante da essência divina.
— Então como eles conseguem derrubar as pessoas?
— Atacando os pontos fracos que elas possuem: seus complexos, suas
ilusões, crenças que você tem mas que mesmo não sendo verdadeiras criam
suas atitudes.
— Você disse que eu posso mesmo estar com macumba?
— Pode porque se deixou dominar pelo pessimismo, pela falta de
confiança em si próprio, pelo ciúme. De fato, é um prato cheio para qualquer
macumbeiro.
— Nesse caso, eu preciso ir a um centro para desmanchar tudo?
— Se descobrir as atitudes que o estão tornando vulnerável a eles e mudá-
las por outras melhores, seu padrão energético subirá e haverá uma
desconexão natural. Mas para isso você vai precisar aprender como essas
energias funcionam.
- Você entende dessas coisas.
— Tenho estudado em decorrência do meu trabalho. Atendendo meus
pacientes, acabei descobrindo muitas coisas, inclusive a mediunidade, a
continuidade da vida após a morte. Foram tantas as provas que obtive que hoje
não saberia trabalhar sem analisar essas variáveis. Digo mais, que meu
sucesso profissional decorre de cuidar dos doentes integrando corpo, mente e
espírito.
— Ouvindo você, fico pensando como minha vida está enrolada.
— Nada que você não possa mudar.
- De que forma? Estou me esforçando para encontrar trabalho e parece
que fica mais difícil a cada dia.
— É que você se deprime demais. Quanto mais deprimido, mais difícil.
Roberto impacientou-se.
— Como ficar mais otimista sem dinheiro, suportando os olhares de
comiseração da mãe, da esposa, dos vizinhos e até da empregada? Sinto-me
como se fosse um incapaz. Estou vivendo à custa de minha mulher.
— Você não é incapaz, nem vagabundo ou aproveitador, só por estar sem
emprego. Essa é uma situação temporária.
- Que já dura alguns meses e estou no limite de minhas forças.
— Enquanto ficar na queixa, não conseguirá nada. A depressão, a queixa,
a falta de confiança na vida, isso afasta todas as oportunidades boas. Se quer
vencer, tem que se esforçar para mudar essa postura.
Roberto fez um gesto de impotência. Ia falar, mas Aurélio continuou:
- Sei o que vai dizer. Justificar-se não adianta nada, O que precisa é sair
desse estado, enxergar as coisas boas que possui, valorizá-las, agradecer a
Deus pelo que já possui. Você tem uma bela família. Sua mulher tem sido boa
companheira nesses momentos de dificuldade por que vem passando. Não
acha que tem muito a agradecer?
— Visto assim...
— Tem mais. Apesar do que você diz ter visto, não acredito que sua
esposa o esteja traindo.
É bom valorizar tudo que ela tem feito pela família, para que ela não se
sinta desanimada e alguém venha a se aproveitar, tentando desviá-la. Aí, o que
você teme acontecerá realmente.
- Você acha mesmo que posso ter me enganado?
— Acho. Uma mulher só trai o marido quando se apaixona por outro. E
então ela faz tudo para se separar.
— Ela está diferente. Não me faz agrados como antes, está sempre
cansada. Tenho até receio de me aproximar.
— Será que não foi você quem mudou? Prestou atenção em como você
tem se comportado dentro de casa, e com ela?
— Bom, depois do que aconteceu, claro que eu mudei. Fiquei triste, sem
vontade de conversar, ressabiado. Parece que todos estão me criticando por
eu ter confiado naquele patife.
Não me conformo de ter errado tanto e perdido todo o dinheiro.
— Você se critica, julga-se incapaz por não ter descoberto a verdade a
tempo. Sente raiva por ter sido enganado e pune-se pensando que não merece
o amor de sua família.
— Não mereço mesmo. Eu não soube cuidar do bem-estar deles.
— Perceba que está jogando toda a sua força contra você. Está se
arrasando de propósito para se castigar.
— Como assim?
— Está com raiva por ter sido ingênuo. No fundo, acredita que merece
sofrer pelo seu erro.
Se um lado de você deseja prosseguir, melhorar, recomeçar, cultiva o
outro, que se compraz em sofrer, em ver-se derrotado, em “pagar” pelos seus
erros. No fundo, você acredita que está se depurando, tornando-se “limpo”
diante da família. Não aprendeu que “o sofrimento redime”?
— Bom, sempre ouvi dizer que quem sofre está “pagando pelos seus erros
...
- Você acredita nisso. Para você, sofrer significa suportar as con-
seqüências dos seus erros e tornar-se melhor.
— Falando assim, dá a impressão de que eu não quero arranjar emprego.
E isso não é verdade.
— Claro que você quer trabalhar. Mas acredita que, para voltar a ter
sucesso, dinheiro, precisa merecer. Como é que uma pessoa que fracassou
pode merecer o sucesso?
Roberto ia retrucar, mas calou-se. Respirou fundo, passou a mão pelos
cabelos como querendo entender melhor.
— Na verdade, Roberto, você se compraz em sofrer, em continuar sendo
vítima da maldade dos outros. Pensa que agindo assim está demonstrando o
quanto as pessoas são enganadoras e perversas e tentando justificar a
lamentável experiência com Neumes.
— Do jeito que você fala, até parece que o único culpado sou eu...
— Não se trata de encontrar um culpado, entenda isso, mas de
compreender como você está lidando com os fatos. Você foi enganado por um
malandro. Isso acontece todos os dias com as pessoas de boa-fé. Você está
perpetuando esse fato, agravando a situação. Perceba isso: o errado não é
você, por haver confiado em seu sócio, mas sim ele, por haver se aproveitado
da sua confiança. Quem errou foi ele, e um dia terá que responder por esse ato
diante dos valores eternos da vida. Quanto a você, continua honesto, capaz,
competente, e, se continuasse mantendo essa opinião a seu respeito, há muito
teria encontrado a solução do seu problema.
— Sempre trabalhei por conta própria, não tenho prática para qualquer
emprego. As empresas exigem dois anos de experiência.
— Talvez a vida esteja querendo lhe dizer que o melhor será fazer aquilo
que sempre fez.
— Precisaria de capital, e não tenho. Depois, um emprego é mais
garantido. Salário todo mês, sem preocupações ou incertezas.
— Você está com medo. Não confia mais em sua capacidade. Pensar que
um emprego lhe dá mais estabilidade é ilusão.
— Você diz coisas que me perturbam e fazem pensar.
— Isso é bom, e vai ajudá-lo a sair mais depressa dessa situação.
— Do jeito que você fala, parece que depende só de mim.
— E depende mesmo. Quando mudar sua postura e voltar a agir como
agia antes de conhecer Neumes, aos poucos tudo se normalizará.
— Pode me explicar melhor? Antes eu não estava nesta situação. Não
tinha que suportar a penúria, ver minha mulher fazendo tantas horas extras
para pagar as contas, nem minha mãe sofrendo por mim. Os fatos agora são
outros. Não dá para agir como antigamente.
— Claro que a situação é outra, mas você também é outro. Seus
pensamentos são angustiados, depressivos, ansiosos. Está cheio de medo do
futuro. Entretanto, precisa reconhecer que esse tipo de atitude, além de
dificultar, ainda cria obstáculos à sua recuperação emocional e financeira. Terá
que se tornar mais otimista.
— Você já disse isso. Mas não sei como fazer. Como posso fingir que
estou bem se tudo vai mal?
— Não estou dizendo que precisa fingir. Estou dizendo que, apesar de
estar passando por dificuldades, você continua tendo muitas coisas boas em
sua vida. Você perdeu dinheiro, mas ainda tem o que é mais importante: sua
família, o amor dos seus. Eles não o abandonaram. Ao contrário, ficaram do
seu lado, esforçando-se, cada um a seu modo, para mostrar o quanto o amam
e acreditam em sua capacidade.
— Minha mãe me critica porque ajudo a cuidar da casa. Ela acha que um
homem não deve fazer isso.
- É preconceito errado dela. Não existe isso de serviço de homem ou de
mulher. Em uma família, todos precisam cooperar para que o serviço da casa
seja feito. Afinal, todos usufruem e dividem o mesmo espaço. Nada mais justo
que quem tenha mais tempo ajude mais.
— É isso que eu penso. Se Gabriela está trabalhando e eu em casa, por
que não devo fazer pequenos serviços domésticos?
— Você está muito certo. O que sua mãe pensa não deve afetá-lo.
Reconheça que essa é a forma como ela foi educada. No fundo mesmo, o
que ela deseja é apoiá-lo, ajudá-lo a resolver seus problemas. Faz isso do jeito
dela, sem perceber que o está constrangendo. É seu jeito de amar. Quando
demonstra preocupação, está querendo dizer que o ama e torce para que seja
feliz.
— Acho que tem razão. Nunca havia visto por esse lado.
— Quanto à sua mulher, está trabalhando mais horas para que nada falte a
vocês, e isso, na minha opinião, não é para que você se sinta humilhado, mas
para apoiá-lo até que possa assumir sua parte nas despesas. Ela faz isso por
amor.
— Você acha mesmo?
- Claro. Ela deseja mostrar que o compreende e quer estimulá-lo a reagir.
— Ela reclama que eu vivo queixoso e mal-humorado.
— Ela sente que, apesar de estar fazendo tudo que pode, você não está
entendendo. Percebe sua revolta. Sente-se incompreendida.
— É verdade. Ultimamente ela não conversa mais comigo como antes. Isso
me deixa mais deprimido.
— Ela tem razão. Está fazendo tudo que pode e você continua na cômoda
posição de vítima.
No lugar dela, você também estaria irritado.
— É... pode ser... Você acha mesmo que a mudança dela pode ser por
causa disso?
— Acho. Você pode verificar. Mude sua atitude. Demonstre confiança no
futuro. Prove a ela que voltou a acreditar na vida e em você mesmo. Garanto
que ela também mudará com você.
— Puxa... vou tentar. Eu amo essa mulher. Só de pensar em perdê-la, sinto
a vista turva e uma sensação de pavor.
— Se deseja mesmo isso, você precisa reagir antes que ela se canse de
sua falta de compreensão e o amor acabe.
— Nem quero pensar nisso!
— Então faça alguma coisa. Você perdeu só o dinheiro, mas o que possui
de mais valioso ainda está do seu lado. Valorize o que possui de bom, se
deseja conservá-lo. Descubra sua felicidade. Você é um homem feliz. Tem uma
família linda, uma mãe amorosa, até uma empregada dedicada que chega a
trabalhar fora para ajudar. Isso é uma raridade.
Roberto respirou fundo! De repente ele entendeu. Era verdade. Ele perdera
só o dinheiro. A família ainda estava do seu lado.
- Acho que tem razão Eu perdi o dinheiro, mas não perdi o que tenho de
mais valioso.
— Isso mesmo. O dinheiro foi mas pode voltar a qualquer momento, Os
bens do coração, quando se vão, dificilmente voltam.
- Roberto levantou-se e agarrou a mão do médico, apertando-a com
entusiasmo.
— Obrigado, doutor. Entrei aqui arrasado, destruído, e o senhor me
transformou em um homem feliz, cheio de entusiasmo. Tem razão: vou me
esforçar para mudar meu comportamento.
— Faça isso. Não se deixe abater pelo que já foi. Amanhã é outro dia e
novas oportunidades surgirão em sua vida.
- Não sei como agradecer...
— Ainda é cedo para isso. Vamos continuar. Volte aqui depois de amanhã.
Roberto despediu-se e foi para casa. Quando entrou, Gabriela estava na
cozinha.
Ele se aproximou dela. Gabriela estava com ar cansado, preparando a
mesa do café para a manhã seguinte. Vendo-o entrar, olhou para ele e não
disse nada.
Não sabia aonde ele ia quando saía à noite, mas estava tão desanimada
que não queria perguntar. As vezes pensava que ele poderia estar se
envolvendo com outra mulher. As coisas estavam complicadas demais para
que ela arranjasse mais esse problema. Por isso, fingia não notar suas saídas
em dias determinados. Ele não dizia, ela não perguntava.
— Deixe-me ajudá-la — disse ele dirigindo-se ao armário e apanhando as
xícaras.
Ela olhou para ele um pouco surpreendida, mas não disse nada. Roberto continuou:
— Você está cansada. Nicete não podia fazer isso?
— Ela está passando roupa. Amanhã é dia em que ela trabalha para
Angélica.
Roberto colocou as xícaras na mesa e abraçou-a, dizendo:
— Você tem sido maravilhosa. Sou um homem afortunado por ter me
casado com você.
Gabriela olhou admirada para o marido.
— Por que isso agora?
— Estive pensando. Tenho agido como um bobo. Mas, de hoje em diante,
vou mudar. Estou confiante em que tudo voltará a ser como antes. Tenha um
pouco mais de paciência.
Ela se soltou dos braços dele, dizendo:
— Arranjou emprego?
— Ainda não. Talvez esse não seja o meu caminho. Sempre trabalhei por
conta própria e me dei bem. Pretendo recomeçar.
— Como? Não tem capital.
— Vou dar um jeito. Quando comecei, também não tinha nada.
Ela deu de ombros e respondeu:
— É verdade.
— Estou confiante. Assim como ganhei dinheiro e construí nossa vida, vou
fazer tudo de novo.
Pode acreditar, vou fazer. Aí, você poderá até deixar o emprego e cuidar
apenas dos nossos filhos.
— Deixar o emprego, não. Pretendo continuar a ganhar o meu dinheiro.
— Veremos, quando chegar o momento.
Gabriela olhou para ele e não disse nada. Reconhecia que o marido estava
diferente. Seria bom mesmo que mudasse, que não ficasse com aquela cara
de vítima sofredora. Ela não agüentava mais sua depressão.
— Quer tomar um café com leite antes de dormir? — indagou solícita.
— Quero. Mas hoje eu é que vou preparar e você vai se sentar do meu lado
e tomar uma xícara comigo.
— Estou cansada, vou me deitar.
— Nesse caso, levarei a bandeja no quarto. Você vai tomar comigo.
Ela esboçou um sorriso, olhando admirada para ele. Roberto estava
diferente. O que teria mudado?
Gabriela foi para o quarto, preparando-se para deitar.

Ninguém é de ninguemOnde histórias criam vida. Descubra agora