ninguém e de ninguem 9

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Gabriela chegou em casa carregando uma pasta. Havia levado duas
minutas de contrato que pretendia examinar depois do jantar. Precisava
encontrar um jeito de modificar as condições com as quais os clientes não
concordavam, sem prejudicar os interesses e os ganhos da empresa.
Gabriela não costumava levar trabalho para casa porqüanto se ocupava
com os filhos e o bem-estar da família, o que não era fácil ficando fora o dia
inteiro.
Sentia-se satisfeita com o progresso alcançado, com o dinheiro que estava
começando a ganhar, e desejava progredir cada vez mais. Depois, era-lhe
muito prazeroso perceber que, ao contrário do que diziam seu marido e sogra,
ela tinha capacidade para ganhar dinheiro.
Quanto mais Roberto a criticava por trabalhar fora de casa, mais ela se
sentia valorizada, percebendo que tinha elementos para subir na vida.
Claro que considerava importante sua presença ao lado dos filhos,
orientando-os, ajudando-os, exercendo suas funções de mãe. Apesar do
esforço daqueles dias difíceis, quando não pôde contar o tempo todo com
Nicete, nada faltara aos seus. Mesmo quando ela se sentia exausta, procurara
tornar o ambiente da casa alegre, apesar do mau humor do marido.
Se tivera capacidade para isso quando tudo estava ruim, por que deveria
desistir agora que as coisas começavam a melhorar?
Roberto não havia chegado ainda. Como ele estivesse demorando, as
crianças comeram e foram brincar. Gabriela sentou-se na sala de jantar,
colocou sobre a mesa a pasta que trouxera e começou a ler o primeiro
contrato, anotando alguns detalhes em um bloco ao lado.
Foi assim que Roberto a encontrou quando entrou em casa. Imediatamente
ela se levantou, dizendo:
— Vou mandar esquentar o jantar. As crianças já comeram.
— Não estou com fome. Eu me atrasei e acabei comendo um sanduíche.
Nicete, que aparecera na porta da sala, perguntou:
— Coloco a mesa só para a senhora?
— Também não sinto fome. Quando eu terminar isto, comerei um lanche.
Pode acabar com a cozinha.
Roberto aproximou-se curioso:
— O que está fazendo?
— Examinando estes contratos. Não deu tempo durante o dia e eles são
urgentes.
- Desde quando você examina os contratos de sua empresa? Que eu saiba
não é essa sua função.
— Eu disse a você que fui promovida, lembra-se?
— Não é muita responsabilidade? Será que você não vai fazer nenhuma
besteira?
Gabriela levantou para ele os olhos nos quais havia um brilho de irritação.
- Não. Não vou porque o dono da empresa confia em mim, sabe que tenho
capacidade para opinar e dar sugestões que ele usa se quiser. São só
sugestões; quem decide é ele. A responsabilidade é só dele.
Roberto sentiu um aperto no peito. Suas suspeitas justificavam-se. Bem
que desconfiara que era com o chefe que ela andava se envolvendo. Imagine,
ela, analisar contratos. Estava claro que ele fazia isso para conquistá-la.
Não se conteve:
— Cuidado. Esse homem deve estar querendo alguma coisa mais. Por que
ele não dá esses contratos para seu advogado ou seu contador? Seria mais
adequado.
Gabriela levantou-se fuzilando-o com os olhos e respondeu:
— Já vem você com essa conversa. As vezes chego a pensar que você
deve ter muitas amantes na rua, porque não consegue pensar em outra coisa.
Quem usa cuida, sabia?
- Não precisa ficar nervosa. Conheço os homens. Sei como agem. Esse
parece que tem segundas intenções. É bom tomar cuidado e não cair na lábia
dele.
O rosto de Gabriela coloriu-se de vivo rubor. Sentia-se indignada. Colocou
as mãos na cintura e disse com raiva:
— Está me chamando de ingênua ou de burra? Acha que não sei
diferenciar uma cantada de um trabalho profissional? Há momentos que me
arrependo de haver casado com você. Não confia em mim, me ofende
julgando-me leviana e, para coroar tudo isso, ainda me passa um atestado de
incapacidade. Pois fique sabendo que meu trabalho tem sido muito elogiado,
que cada contrato desses, quando conseguimos fechar, está me rendendo
excelente comissão, além do salário normal do mês. Portanto cuidado você
com o que diz, porque poderá chegar um momento em que não suportarei mais
a tensão e resolverei minha vida de outra forma.
Ela tocou no ponto crucial e Roberto assustou-se. O que faria se ela o
abandonasse? Uma onda de desespero acometeu-o e ele tentou
contemporizar.
— Não quis dizer isso. Você está torcendo minhas palavras. É que não
gosto de vê-la trabalhando tanto. Se eu digo que gostaria que deixasse de
trabalhar, é porque desejo que tenha uma vida boa, só cuidando da família.
Desejo poupá-la.
— Não me venha com essa história. Sei muito bem o que você pensa. Sou
uma mulher digna, que tem feito tudo pela nossa família. Se ainda assim não
consigo agradá-lo, paciência. Estou no limite de minhas forças. Afirmo de uma
vez por todas: gosto do meu emprego, estou me realizando profissionalmente,
ganhando mais, e tenho à minha frente a oportunidade de progredir como
nunca tive. Por isso, se deseja continuar comigo, nunca mais toque nesse
assunto. Agora me deixe em paz. Vou terminar este trabalho.
Roberto mordeu os lábios e foi para o quarto. Nicete entrou em seguida,
dizendo:
— D. Gabriela, venha comer um pouco agora. Assim ficará mais calma para
trabalhar.
— É melhor mesmo. Estou trêmula de raiva e sem serenidade para
discernir. Minha cabeça está fervendo.
— Venha, vou lhe contar a última que a Maria do Carmo aprontou hoje.
Essa menina tem cada uma...
Gabriela sorriu. Nicete tinha um jeito especial para acalmá-la, e falar da
filha era sempre prazeroso.
Sentou-se, ouviu o que ela disse e comeu um pouco. Quando terminou,
Nicete, vendo-a pensativa, procurou confortá-la:
— Um dia ele vai perceber a mulher que tem em casa...
— Só que esse dia pode chegar tarde. Estou cansada e não sei quanto tempo mais consigo agüentar. Vou ver se consigo trabalhar.
Foi para a sala e mergulhou no trabalho. Passava da meia-noite quando
finalmente conseguiu finalizar. Havia feito todas as anotações e preparou-se
para dormir.
Quando entrou no quarto, percebeu que Roberto não estava dormindo.
Tinha os olhos fechados mas permanecia atento a todos os movimentos dela.
Respirou fundo e deitou-se virando-se para o lado. Pretendia evitar que ele
recomeçasse o assunto. Estava cansada, precisava levantar cedo no dia
seguinte. Depois, de que adiantaria conversar com ele? Seu ciúme cegava-o a
ponto de não enxergar mais nada.
Roberto virou-se para o lado dela e abraçou-a, dizendo ao seu ouvido:
- Gabi, eu fui rude ainda há pouco. Estou arrependido. Você me desculpa?
— Está bem, vamos esquecer isso.
— É que ultimamente tenho sentido muito medo de perder você. Isso tem
me atormentado.
— Por enquanto não corre esse risco. Mas, se continuar me criticando
como fez hoje, não sei se poderei agüentar.
- Eu a amo demais.
— Nesse caso, me respeite.
— Eu vou fazer o possível para mudar. O que eu mais desejo é vê-la feliz.
— Se isso é verdade, deixe de me atormentar com seu ciúme. Ponha na
sua cabeça que, se eu não o amasse e tivesse de deixá-lo, teria feito isso
quando você ficou sem nada. Eu fiquei do seu lado por amor. Além disso, há os
nossos filhos.
Ele a abraçou com força e procurou seus lábios, beijando-a longamente.
Gabriela não sentiu nenhum prazer com aquele beijo. Sentia-se irritada com a
insegurança dele, mas não o afastou.
Também não correspondeu como em outros tempos. Deixou-se amar, em
meio à apatia, à desilusão e ao cansaço, esforçando-se para não o empurrar
para longe.
Ele tentou de todas as formas motivá-la, inutilmente. Quando acabou, ele
se separou dela dizendo triste:
- Você está magoada comigo. Não me ama mais.
— Por favor, não vamos recomeçar. Não leve para esse lado. É que estou
cansada, só isso.
Você já teve dias assim. Veja se me entende.
- Está bem. Não quero discutir. Vamos dormir.
Gabriela virou para o lado e em poucos instantes adormeceu. Roberto, no
entanto, sentindo o peito oprimido, uma horrível sensação de desconforto e
receio, ficou ali, no escuro, tentando vencer seu medo. Mas o medo continuava
lá, impávido, levando a melhor. Roberto só conseguiu adormecer quando o dia
começou a clarear.
Levantou passava das dez. Estava atrasado. Respirou fundo tentando
evitar o mau humor. Foi inútil. A lembrança da noite anterior aumentou sua
depressão.
Tomou uma ducha rápida, engoliu o café puro para espantar o desânimo e
saiu. Tinha marcado com o engenheiro às oito horas e eram quase onze.
Tentou melhorar a expressão de seu rosto, estendendo os lábios em um
sorriso:
— Desculpe o atraso, doutor. É que passei a noite em claro, meu filho
chorou e não nos deixou dormir. Quando consegui pegar no sono, estava tão
cansado que não acordei na hora.
— Sinto muito, mas eu tinha urgência do material. Não podia deixar os
homens parados. Mandei buscar em nosso fornecedor habitual e já deve estar
chegando.
— Eu teria conseguido um preço melhor.
— Pode ser, mas e se você não viesse?
- Sou homem de palavra. Não ia deixá-lo na mão.
— Mas deixou. Marcou às oito e são onze. Se fosse de palavra, teria vindo
no horário.
Roberto conversou um pouco na tentativa de obter outros pedidos, mas
notou que o engenheiro não estava interessado. Saiu dali aborrecido.
— Hoje não é o meu dia! — pensou.
A obra era grande e estava no início. Ele poderia fazer grandes negócios
com aquela construção. Achou melhor não insistir. Deixaria passar alguns dias
para que o engenheiro esquecesse o episódio e voltasse.
Embora estivesse ganhando algum dinheiro, não conseguira guardar nada.
Tinha acumulado algumas dívidas e estava pagando-as. Havia também as
dívidas com os fornecedores. Roberto planejava pagar tudo para limpar seu
nome e poder reabrir seu negócio. Esse era seu objetivo, e faria qualquer
sacrifício para alcançá-lo.
Ao passar por uma praça, sentou-se em um banco. Pretendia visitar outra
obra, mas era hora de almoço e achou melhor esperar. Sabia que para eles o
horário de almoço era sagrado. Não gostavam de tratar de negócios nessa
hora. Não queria arriscar-se a perder outro possível comprador.
Seu pensamento voltou-se para Gabriela. Sua frieza deixara-o sentido.
Abraçara-a cheio de amor, mas era tarde. Sua esposa não o amava mais.
A esse pensamento, sentiu o coração oprimido e respirou fundo, tentando
acalmar-se.
Lembrou-se do centro espírita e do alívio que sentira lá. A noite deveria ir
novamente para o tratamento.
Iria mais cedo e tentaria conversar com Cilene. Talvez ela o ajudasse a
libertar-se daquela opressão que sentia no peito.
O dia custou a passar e Roberto visitou mais duas obras, sem conseguir
nada. Também, com a disposição que estava, nada poderia dar certo.
Passava um pouco das seis quando ele entrou no centro espírita. O
atendimento não havia começado, porém ele viu Cilene no hall conversando
com uma senhora. Aproximou-se esperando que ela terminasse. Quando a viu
só, aproximou-se dizendo:
— Estou precisando conversar. Você disse que me atenderia.
Ela pensou um pouco e depois respondeu:
- Não é nosso costume atender antes do horário, mas vou abrir uma
exceção. Vamos entrar.
Vendo-o sentado em sua frente na sala de atendimento, Cilene perguntou:
— E então, melhorou?
— Aquela noite saí daqui aliviado. Fiquei bem. Mas depois tudo voltou a ser
como antes. A depressão voltou, sinto-me triste, tenho impressão de que algo
de muito ruim vai me acontecer.
— Percebeu se esses pensamentos vêm de fora, de repente, ou se évocê
quem os está criando?
— Claro que não sou eu. Não gosto de me sentir assim. Mas eles vêm e
não tenho como evitar.
- Sei que preferia sentir-se bem. Mas, se está mal, com certeza está
olhando a vida pelo lado errado. Foi por isso que eu lhe disse para prestar
atenção às conversas que costuma manter consigo mesmo. Elas revelam sua
maneira de reagir aos fatos do dia-a-dia.
— Meu médico disse que somos responsáveis por tudo que nos acontece
na vida. Mas penso que ele está enganado. Tenho me esforçado para fazer as
coisas do jeito certo. Sou um homem honesto, amo minha família, meus filhos,
minha mulher. Entretanto, fui roubado, minha mulher deixou de me amar, estou
sendo traído. Está difícil segurar essa opressão. Como posso fechar os olhos e
ser otimista com tudo de mal que está acontecendo à minha volta?
As lágrimas brotaram dos olhos de Roberto, que não se importou e deixou-
as cair. Precisava desabafar, contar a alguém seu sofrimento, suas dúvidas,
seus medos.
As palavras brotavam em seus lábios e ele foi falando de sua vida,
contando o que lhe acontecera e o que ele pensava que poderia acontecer.
Cilene deixou-o falar sem interferir. Sabia que ele precisava desse conforto.
Ele finalizou:
— Agora ela não me ama mais. Gosta de outro. Eu vi. Qualquer dia destes
vai querer separar-se e eu não vou agüentar. Sei que deveria ter vergonha de
gostar de uma mulher que está me traindo, mas não posso viver sem ela.
Suportarei tudo, menos que ela vá embora.
Quando ele se calou, Cilene disse com simplicidade:
— O ciúme é mau conselheiro. Cria um inferno para quem o sente e afasta
as pessoas. Você pode estar destruindo seu lar com seu ciúme.
— Mas eu vi Gabriela em um carro de luxo. Aonde ela ia ao lado de outro
homem?
— Estavam abraçados? Podia ser um encontro de trabalho.
— Mas ela nunca me falou nada sobre isso. Por quê? Se fosse um trabalho,
ela teria me contado.
— Ela nunca lhe contaria por causa do seu ciúme.
— Tem aparecido com dinheiro. Diz que foi promovida, mas eu a vi no carro
do chefe.
— Pode ser verdade. Ela pode estar sendo sincera. Pense em como ela
deve estar se sentindo se for inocente, se estiver se esforçando no trabalho
para ajudar você a suprir as necessidades da família e notar suas des-
confianças. Deve sentir-se desvalorizada, desanimada, e isso sim pode fazer
com que a admiração que ela sentia por você comece a mudar.
— Eu seria o homem mais feliz do mundo se fosse como você diz. Nesse
caso ela deveria me odiar. Mas não creio. eu a vi naquele carro. Depois, ela
mudou comigo. Não é mais a mesma.
— E vai mudar mais se você não trabalhar esse ciúme e continuar agindo
dessa maneira.
Ninguém é de ninguém. Você não é o dono de sua mulher. Ela só vai ficar
ao seu lado se quiser, se continuar gostando de você. Por isso, deixe de
trabalhar contra seu casamento. Comece a valorizá-la como pessoa enquanto
é tempo e ela ainda pode ouvi-lo.
Roberto baixou a cabeça confundido. Era difícil acreditar nas hipóteses que
ela levantava. Percebendo sua hesitação, Cilene continuou:
— Sua mulher alguma vez demonstrou interesse por outro homem depois
do casamento?
Roberto estremeceu.
— Claro que não! Ela é inteligente e esperta, nunca deixaria perceber.
Depois, penso que apesar de tudo ela não teria coragem de me confrontar
dessa forma.
— Ela é tímida e passiva?
— Ao contrário. Sempre sabe o que quer e é teimosa também. Só faz o que
ela acha que deve fazer. Se me ouvisse, já teria deixado o emprego e tudo
estaria bem.
— Você perdeu tudo, ficou sem emprego. Como viveriam se ela também
não trabalhasse?
Roberto remexeu-se na cadeira inquieto.
— Devo reconhecer que ela tem mantido a casa desde que perdi meu
negócio. Agora é que estou começando a ganhar dinheiro novamente, assim
mesmo não o suficiente.
Cilene olhou seriamente para ele e depois disse:
- Acho que você está precisando de uma consulta especial.
— Como assim?
— Vou marcar e vamos ver o que acontece.
— Como é isso?
- É uma reunião à qual você vai comparecer, sentar-se em uma cadeira por
alguns instantes.
Não precisa dizer nada. Basta dar apenas seu nome e endereço. Os
espíritos vão averiguar seu caso e dar orientação.
— Eles vão falar comigo?
— Não. Conversarão com os médiuns videntes que fazem parte dessa
reunião. Cada um deles vai anotar tudo que conseguir ver sobre seu caso.
Depois você volta aqui e conversaremos.
— Vão poder saber se Gabriela me trai?
- Eles podem ver muitas coisas, mas só vão dizer o que for permitido pelo
plano superior.
Entretanto, pela experiência que tenho tido, eu o aconselharia a seguir
todas as orientações que eles lhe derem.
— Pois eu gostaria que eles me dissessem a verdade. Seja ela qual for, é
preferível a este tormento.
— É você quem está se atormentando, imaginando o pior. Por que não
tenta olhar para o outro lado? Por que não pensa que sua mulher sempre lhe
foi fiel e está se esforçando para ajudá-lo a manter a família? Tenho certeza de
que se sentiria bem melhor e muitos dos seus problemas acabariam.
Roberto suspirou fundo, depois disse:
- Se eu pudesse, faria isso. É que quando penso dessa forma me sinto um
bobo, enganado, iludido, fracassado.
- O orgulho é o maior obstáculo à felicidade. Ilude, infelicita, destrói.
Cuidado com ele.
- Sou um homem simples. Vim de baixo. Sou de origem humilde.
Cilene sorriu e respondeu:
- Ser pobre, sem instrução, levar vida modesta, não é prova de humildade.
Se você fosse humilde, não se sentiria ofendido por sua esposa manter a casa
enquanto estava desempregado.
Você se sentia envergonhado. A vergonha é sinônimo de vaidade.
- Sentia-me incapaz, e isso dói. Depois, minha mãe é muito preocupada e
vivia atrás de mim querendo saber como iam as coisas. ELa também não gosta
que Gabriela trabalhe fora. Acha que ela deveria ficar em casa para cuidar dos
filhos. Temos dois, como já Lhe contei.
— As mães se preocupam e não percebem que as vezes contribuem para
aumentar os problemas, interferindo indevidamente na vida do casal.
— Minha mãe é pessoa muito dedicada à família. Nunca trabalhou fora.
— É de outra geração, tem outros costumes. Mas hoje a mulher émais
independente. Depois, o casamento é uma sociedade em que tudo deve ser
compartilhado. Pense nisso. Vou marcar a consulta e você vai voltar aqui no
próximo sábado, às duas da tarde.
Preencheu um papel e entregou-o a ele, finalizando:
- Agora vá tomar seu passe. Pense em tudo quanto eu lhe disse. Seja
sincero, analise com cuidado tudo que costuma pensar. Faça mais. Pegue um
papel e anote todas as vezes que tiver um pensamento desagradável.
— Anotar? Não vai ser pior?
- Não. Vai mostrar-lhe como anda sua cabeça.
Roberto saiu. Estavam chamando para o tratamento. Ele entrou novamente
na sala em penumbra e rezou. Pediu a Deus que o orientasse e esclarecesse.
Saiu de lá mais calmo, aliviado.
Na volta para casa, rememorou tudo quanto Cilene lhe dissera. As palavras
dela fizeram-lhe muito bem, mas em meio a isso pensava que ela era ingênua,
como todas as pessoas que se dedicam à religião, e que por isso não via mal
em nada.
Quando dava força a esse pensamento, sentia que a depressão voltava.
Lembrava-se de que ela lhe pedira para tomar nota dos maus pensamentos.
Arranjou um papel no bolso e resolveu escrever suas dúvidas.
Seria muito bom se o que ela dissera fosse verdade. Se Gabriela nunca o
houvesse traído, se ela realmente só estivesse cuidando do trabalho e da
família. Esse pensamento dava-lhe alívio, mas logo a dúvida reaparecia e ele
sentia voltar a depressão.
Agitava-se pensando que não podia ser ingênuo e deixar-se influenciar por
Cilene. Ela dizia isso para acalmá-lo, era função dela no trabalho que estava
realizando. De nada adiantava enganar-se nem tentar acobertar uma verdade
que ele não desejava ver.
Por mais que tentasse, nunca poderia deixar de notar o quanto Gabriela
havia mudado com relação a ele. Evitava contato íntimo, isso ele não podia
aceitar. Certamente estava apaixonada por outro e por isso não sentia prazer
aceitando suas carícias.
As mulheres são sensíveis e diferentes dos homens, que podem relacionar-
se apenas por atração sexual. Sua mãe sempre dizia que, quando uma mulher
está apaixonada por um homem, sente repulsa em manter relações sexuais
com outro.
A esse pensamento, Roberto sentiu-se inquieto, faltou-lhe o ar. Respirou
fundo e resolveu esquecer os conselhos de Cilene. Era uma boa pessoa, bem
intencionada mas muito distanciada da realidade.
Voltaria para a consulta marcada e continuaria o tratamento, porque se
sentia aliviado cada vez que ia lá, contudo continuaria com os pés no chão,
vivendo sua triste realidade.
Se ao menos pudesse ter certeza de que um dia Gabriela mudaria,
voltando a amá-lo como antes! Para conseguir isso, faria qualquer sacrifício,
inclusive o de continuar sofrendo calado, sem dizer a ela que sabia de tudo.
Ao mesmo tempo que decidia isso, Roberto sentia-se abatido, triste. Dizia a
si mesmo que não podia esmorecer.
Se era de dinheiro que ele precisava para restabelecer o equilíbrio de sua
família, ele não mediria sacrifícios para consegui-lo.
Foi para casa disposto a elaborar um plano de ação que lhe permitisse
ganhar dinheiro rapidamente.
Ao chegar, Gabriela já estava sentada à mesa, jantando. Vendo-o entrar,
disse:
- Não o esperei porque não sabia se viria para o jantar. Ultimamente você
não mantém horário nem avisa quando vai chegar.
— Não tem importância.
— Vou colocar um prato para você.
Nicete apareceu na porta.
- Pode deixar, D. Gabriela. Eu coloco. Vou lavar as mãos disse Roberto.
Ele foi ao banheiro lavar-se, pensando:
“Antes ela me esperava mesmo que eu chegasse à meia-noite!’
Sentou-se à mesa, esforçando-se para distender a fisionomia e deixar
transparecer um ar amável.
Gabriela comia em silêncio. Ele se serviu e começou a comer, de vez em
quando olhando-a disfarçadamente. Ela lhe pareceu distante, perdida em seus
próprios pensamentos. Tentou conversar:
— Gostaria de ter chegado mais cedo, mas há clientes que não respeitam
os horários. Não têm nenhuma pressa. Gostam de conversar, e é preciso ter
paciência, deixá-los falar. No fim, acaba saindo algum negócio ou pelo menos a
promessa de alguma coisa para o futuro.
- Tudo bem.
Ele continuou:
— Estou com alguns planos que acredito darão bom resultado. Tenho
certeza de que dentro de pouco tempo estarei ganhando mais dinheiro.
Ela não disse nada. Ele se irritou, mas esforçou-se para controlar o mau
humor. Gabriela não parecia interessada em manter uma conversa com ele.
A situação estava pior do que havia pensado. Sentiu um aperto no peito. E
se ela resolvesse separar-se? Agora estava ganhando o suficiente para manter
até a família, não precisava dele para nada.
Remexeu-se na cadeira inquieto. Ele não suportaria uma separação.
Precisava tentar todos os recursos. Engoliu a raiva e a tristeza. Terminou o
jantar e depois da sobremesa, antes do café, ele se levantou, foi até a cadeira
dela, pousou a mão em seu ombro e disse:
— Estou achando você muito calada. Aconteceu alguma coisa? Gabriela
levantou os olhos para ele, encarando-o.
Não. Está tudo bem.
— Pois não parece. Tenho impressão de que está com algum problema. É
algo com as crianças?
— Engano seu. As crianças estão bem.
— É que você me pareceu tão distante, nem se interessou pelos meus
planos de negócio, como fazia antigamente.
— Tudo muda, Roberto. Nós mudamos. Hoje estou mais madura, e o fato de eu estar mais discreta não significa que não esteja interessada em seu
progresso profissional. Fico feliz que esteja encontrando novamente o caminho
da prosperidade. Você sabe disso.
Ele não respondeu. Voltou para seu lugar, serviu-se de café. De-
cididamente ela estava diferente. A Gabriela de antigamente não existia mais.
Tentou dissimular sua tristeza e depois se sentou em sua escrivaninha, na
pequena sala que lhe servia de escritório, e tratou de trabalhar.
Apanhou um caderno que lhe servia de agenda e anotou: no dia seguinte
iria à Prefeitura visitar um funcionário seu conhecido e tentar conseguir dele
uma relação de todos os projetos de construção de imóveis aprovados nos
últimos meses. Sabia que com uma boa gorjeta conseguiria.
Depois, analisaria esses projetos e entraria em contato com os proprietários
desses imóveis.
Desde que recomeçara a trabalhar freqüentando as obras, pretendendo
arranjar material melhor e mais barato para os encarregados, descobriu que
muitos deles enganavam os proprietários, superfaturando os materiais, não só
para ter maiores comissões, uma vez que ganhavam por valor do material
gasto na obra, como engolindo polpudas quantias que certas empresas lhes
pagavam pela sua preferência na compra. Por isso não tinham muito interesse
em que Roberto conseguisse preços melhores.
Ele pensou que, se procurasse os proprietários, oferecendo seus serviços
para conseguir baixar os custos da construção, Levando-lhes orçamentos que
comprovassem que, contratando-o, eles economizariam muito, tinha certeza de
que em pouco tempo voltaria a ganhar dinheiro.
Claro que ele precisava conquistar a confiança desses proprietários.
Pretendia trabalhar com muita honestidade e dedicação. Por isso tinha a
certeza de que conseguiria seu intento.
De repente ele teve uma idéia: de início não exigiria um salário, apenas
uma comissão em tudo que o cliente conseguisse economizar. Era um
excelente negócio. Qualquer pessoa aceitaria imediatamente.
Como se tratava de uma comissão sobre algo que o cliente estava
ganhando, já que gastaria menos do que lhe haviam pedido, ele poderia
colocar um índice melhor.
Quem fosse economizar dez mil reais, certamente não se importaria em
dar-lhe vinte por cento desse dinheiro. Anotou todas as idéias, pretendendo
iniciar no dia seguinte.
Quando ele foi se deitar, Gabriela já estava dormindo. Passava das onze
horas. Notou que ela não o esperara para dormir, mas estava por demais
interessado em seus planos para ficar remoendo isso.
A partir do dia seguinte, tudo iria mudar. Ela deixaria de vê-lo como um
incapaz, um imbecil que fora roubado pelo sócio. Ele mostraria a ela que era
muito capaz. Ganharia mais dinheiro do que aquele empresário pelo qual ela
tinha tanta consideração.
Cerrou os punhos com força, dizendo baixinho:
— Você vai ver, Gabriela, com quem está casada! Eu juro! Aí vai se
arrepender de me trair, de jogar fora nossa felicidade. Vou provar para você
que sou um homem capaz.
Sentiu-se confortado com esse pensamento. Virou-se para o lado e sem
mais problemas conseguiu adormecer.

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