3. O Homem Rastejante

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O sr. Sherlock Holmes foi sempre de opinião que eu devia publicar os estranhos fatos relacionados com o professor Presbury, com o objetivo de destruir de uma vez por todas os boatos que, há uns vinte anos atrás, agitaram a universidade e repercutiram nos círculos científicos de Londres. Havia, contudo, alguns obstáculos no caminho, e a autêntica história desse curioso caso permaneceu encerrada na caixa de estanho que contém tantos relatos de aventuras do meu amigo. Agora, finalmente, obtivemos permissão para ventilar os fatos que constituíram um dos últimos casos de que Holmes se incumbiu antes de deixar suas atividades. Mas, mesmo agora, têm de se manter certas reticências e certa discrição ao se expor o caso diante do público.

Numa tarde de domingo, no princípio de novembro do ano de 1903, recebi mais uma das lacônicas mensagens de Holmes:


"Venha imediatamente, se não for incômodo; se for, venha da mesma forma.

S. H."


As relações entre nós, naqueles últimos tempos, eram muito especiais. Ele era um homem de hábitos restritos e concentrados, e eu me tornara um desses hábitos. Na qualidade de instituição, eu era como o violino, o tabaco forte, o velho cachimbo preto, os livros de índice, e outras tantas coisas talvez menos desculpáveis. Quando se tratava de um caso de trabalho ativo e se precisava de um companheiro com cujos nervos ele podia contar, eu entrava inevitavelmente em cena. Mas afora isso, eu tinha os meus préstimos. Era o atiçador do seu intelecto. Estimulava o detetive. Ele se comprazia em pensar alto na minha presença. A rigor, não se podia dizer que as suas observações fossem feitas para mim (dir-se-ia que muitas delas eram antes endereçadas à cabeceira da sua cama), mas, sem dúvida, uma vez adquirido o hábito, tornara-se de certo modo proveitoso eu intervir com os meus comentários. Se eu o irritava com uma certa morosidade sistemática do meu modo de pensar, essa irritação até servia para fazer com que as suas próprias intuições e impressões, de si já tão brilhantes, cintilassem ainda com mais vivacidade e rapidez. Era esse o meu modesto papel na nossa aliança.

Ao chegar à Baker Street, encontrei-o encolhido na sua cadeira de braços, com os joelhos erguidos, o cachimbo na boca e um largo sulco na fronte cismadora. Era evidente que algum angustioso problema lhe atazanava o espírito. Com um aceno de mão, indicou a minha velha cadeira de braços, mas, exceto isso, durante meia hora não deu qualquer indício de ter notado a minha presença ali. Então, com um estremecimento do corpo, pareceu despertar do seu devaneio, e com o habitual sorriso excêntrico, deu-me as boas-vindas por me ver de regresso àquela casa que já tinha sido o meu lar.

— Há de me desculpar uma certa abstração de espírito, meu caro Watson — disse ele. — Contudo, foram submetidos à minha apreciação alguns fatos curiosos, que, nas últimas vinte e quatro horas, deram por sua vez origem a algumas especulações de caráter mais geral. Tenho pensado seriamente em escrever uma pequena monografia a respeito da utilidade dos cães no trabalho do detetive.

— Mas isso, Holmes, já é assunto explorado — disse eu. — Cães policiais...

— Não, Watson, não. Esse aspecto do assunto é naturalmente conhecido. Mas existe outro muito mais sutil. Deve se recordar de que, no caso que você, no seu estilo sensacional, associou às Copper Beeches, eu consegui, observando o espírito da criança, formular uma dedução relativa aos hábitos criminosos do pai, burguês de respeito.

— Sim, lembro-me muito bem.

— O curso das minhas idéias relativamente aos cães é análogo. O cão reflete a vida da família. Onde é que já se viu um cão espevitado numa família sorumbática, ou um cão tristonho numa família jovial? Gente rabugenta tem cães rosnadores, gente perigosa tem cães perigosos. E as disposições de espírito passageiras destes talvez reflitam as disposições passageiras dos seus donos.

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