- Era uma vez o vazio. - O velho fez uma longa e silenciosa pausa, baforando a fumaça do seu cachimbo em pequenas nuvens e encarando a luz forte da fogueira. - Um infinito e incomensurável vazio, mas isso foi há muitas e muitas eras, tantas eras que nós, meros seres humanos, mortais e finitos, não podemos sequer imaginar. Foi antes de começarmos a contar o tempo e por isso está além de nossa compreensão por algum motivo que não nos cabe discutir com nossas cabeças ocas e pequenas. Há coisas que podemos saber e coisas que não podemos, ou melhor, que não devemos saber, e não nos faria nenhum bem termos essa discussão, só faria nossa cabeça doer, acredite.
Ele meneou a cabeça negativamente como se tivesse sido questionado, embora sua única interlocutora permanecesse em silêncio, com seus olhos infantis voltados para cima e vidrados nele, prestando total atenção em cada sílaba lentamente pronunciada.
- Então, como ia dizendo... - Continuou, sorrindo. - Nessa era distante, escondida no tempo, apenas o nada existia. Sim, por toda a vastidão do espaço sem fim apenas o nada existia, até que, lenta e misteriosamente algo se formou. Uma única coisa a desafiar todo aquele vazio, uma pequena e realmente minúscula partícula de alguma coisa.
- O que era essa coisa, tio? - A menina interrompeu, curiosa como era em seus cinco anos de idade.
O idoso pajé acocorou-se ao lado da criança e deu uma grande baforada no cachimbo, sorriu para ela com seus dentes amarelados e enrolou uma folha de tabaco de maneira calma e confiante, como se já tivesse feito aquilo milhares e milhares de vezes, e de fato o tinha. Colocou o rolo de tabaco na boca, era capaz de fumar e mascar ao mesmo tempo. Quando seus lábios se abriram novamente a história continuou.
- Era uma partícula de alguma coisa realmente importante, minha sobrinha. Um pequeno pedacinho de todos nós. Era o contrário do nada, o tudo. E mesmo sendo uma coisinha tão pequena, menor até que o menor grão de areia, toda a história do cosmos estava escrita ali. A história das nuvens, das estrelas, a história dos rios, das matas, a história dos deuses e dos homens, tudo estava escrito ali, nós estávamos ali da mesma maneira que estamos aqui hoje.
- Eu não entendo... - O rosto da menina foi coberto por uma expressão confusa.
- Era Nhanderuvuçú.
- O Grandioso?
- Sim, ele mesmo, minha sobrinha. Num pequeno pedaço de alguma coisa, menor talvez que o menor grão de areia, o Grandioso desafiava o vazio. Erguia sua voz contra o nada e gritava toda sorte de impropérios infames. O vazio? Bom, nada respondia, como era de se esperar. Isso apenas fazia com que a ira de Nhanderuvuçú se tornasse mais e mais forte, seus gritos mais e mais altos e seu desafio ainda mais direto. Cansado de esperar e cansado do nada e de estar preso naquele minúsculo receptáculo, num dado momento de tempo Nhanderuvuçú resolveu destruir aquele vazio de uma vez por todas. A pequena partícula de alguma coisa esquentou e esquentou, consumindo a ira acumulada ao longo de sua existência a ponto de tornar-se uma minúscula bola de energia, como a energia dos raios de Tupã cortando o céu, porém infinitas vezes mais poderosa. Essa bola de energia, cheia da ira de Nhanderuvuçú, não conseguiu conter-se por muito tempo, ela finalmente explodiu. A maior explosão que já existiu ou existirá, nada pode ser comparado a ela.
A entonação do velho sacerdote variava a cada palavra dita e ele encarava a menina com uma expressão séria, como se quisesse incutir-lhe o senso de grandeza daquele acontecimento.
- O vazio finalmente fora derrotado, Nhanderuvuçú estava livre. - O pajé disse sua última sentença com calma e um pequeno sorriso nos lábios.
- E o que aconteceu depois, tio? - Os olhos da pequena criança brilhavam de excitação com a história que acabara de ouvir pela primeira vez, e suas mãos contorciam-se de ansiedade pela continuação do relato.
- Minha pequena, minha pequena Iaci... - O velho fez um carinho nos cabelos pretos da sobrinha e inspirou o ar da floresta. Há uma centena de anos ele sentia aquele perfume e até aquele momento nunca se cansara dele, ao contrário, amava-o ainda mais. Sabia reconhecer cada aroma da mata, cada cheiro de cada árvore ou arbusto das florestas de Pindorama. A goiabeira, a pitangueira, o ingá-preto, a guabiroba, o sobragi, o tarumã, o cedro rosa, a grumixama, o juriqui. Podia encontrar entre aquelas plantas o mais poderoso remédio ou o mais terrível veneno. Aquele era seu lar. - Minha pequena Iaci, depois dessa explosão o vazio não era mais um empecilho. A história não mais lhe pertencia, pois ele agora era inundado a uma velocidade avassaladora pela primeira criação de Nhanderuvuçú, anhandeci, a matéria. A história de todas as coisas começava ali.
Iaci, criança como era, ainda não compreendia quase nada das palavras do tio, mas sabia que aquela história era mais importante que todas as outras que seu tio já lhe contara.
- É importante que você saiba como tudo começou, minha pequena. Ubirani disse, mirando a menina, ciente de que ela ainda não entendia tudo aquilo que dissera. - Tudo bem se não compreender tudo das coisas que acabei de falar, mas aos poucos você irá entender todas essas coisas, ao menos as que forem possíveis de entendimento, as que os deuses permitiram que conhecêssemos.
- E por que preciso saber de tudo isso, tio?
Ubirani apagou o cachimbo e cuspiu o resto da folha de tabaco da boca, limpando o sumo que escorria dos lábios murchos com as costas enrugadas de sua mão direita. Encarou a floresta com o olhar distante por um bom tempo antes de responder.
- Porque, minha pequena... - Ele puxou a menina para junto de si e a abraçou. Assim como todas as coisas tiveram um começo elas também terão um final. E se as profecias estiverem corretas como sei que estão, esse fim está mais próximo do que imaginamos e teremos que ser fortes, fortes como jamais fomos, se quisermos sobreviver a escuridão que se aproxima.
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Pindorama - O despertar da escuridão
AventuraAnnabel, uma garota portuguesa, chega com sua família ao litoral brasileiro no ano de 1591. O Brasil colonial é muito diferente do que conhecemos hoje. Misterioso, inexplorado, selvagem, até mesmo cruel. Em sua primeira noite nas terras tupiniquins...