Capítulo I

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Diário do Capitão Frutuoso Barbosa

Forte de Cabedelo, Capitania da Parahyba, recém-conquistada, 12 de junho do ano de 1585 do Nosso Senhor Jesus Cristo, oitavo mês de cerco.


Este é um novo registro, haja visto que todos os quatro livros de atas foram destruídos no incêndio que atingiu minha barraca há dois dias. Uma seta flamejante disparada por algum nativo foi certeira o suficiente para acertar a palha seca da estrutura espalhando o fogo, e a que a seguiu foi irônica ao cravar-se no chão apenas um palmo distante de minha cabeça. Toda a barraca queimou, junto com quase todos os meus pertences e também os livros de registro. O soldado Olegário Hernandez, um espanhol bravo e valente que nos acompanhava, gentilmente cedeu-me um livro de atas que encontrou em algum lugar desse forte, e eu o usarei a partir de agora par honrar a memória de Olegário, que morreu atingido por uma das setas mortíferas disparadas no ataque da noite de ontem. Não sei porque Nosso Senhor insiste em manter-me vivo, talvez seja apenas uma troça de muito mau gosto com o objetivo de ver-me contar em um novo relato as mazelas que nos assolam nessa terra esquecida. Sendo assim, farei o meu melhor enquanto Ele não ouve minha prece e tira minha vida. 

Também escapa de meus pensamentos como ainda consigo contar os dias e ter certeza das datas, preso aqui neste forte, se é que isto pode chamar-se de forte. Está mais para uma espelunca de madeira, taipa, pedra, mofo e morte. Talvez minha mente funcione de um modo que não entendo e não creio que um dia conseguirei compreender. Achei que tinha vivido o suficiente de agruras para uma vida inteira e que tais sofrimentos seriam suficientes para quebrar um homem. Creio deveras estar quebrado, mas vejo os homens que dividem esse inferno comigo há tantos e tantos dias, muitos deles em pior situação de mente e de corpo, e ainda encontro forças para consolá-los e liderá-los. Na falta de outra opção, louvado seja Deus e nossa Santa Virgem por isso. 

Quatrocentos e sessenta e dois homens entraram nessa fortificação cercados em todos os lados por nativos de ambas as aldeias dessas cercanias. Tabajaras e potiguaras nos emboscaram. Éramos duas mil e trezentas almas, em nove navios e três barcaças, uma mistura de portugueses, espanhóis, nativos mansos e pretos de guerra, tendo a mim como comandante e depois liderados pelo capitão Simão Falcão e  pelo capitão Francisco Castejon, a mando de Diego Flores de Valdez, o pomposo general espanhol, maldito pederasta, que comandara comigo a esquadra com bênção do próprio rei Felipe. Foi o preço que dispus-me a pagar para evitar nova humilhação. Eu tenho merecimento em comandar esta maldita terra após conquistá-la. Paguei o preço para isso e paguei mais de uma vez, tanto em ouro quanto em sangue. 

Esta é a terceira vez que aventuro-me nesse lugar esquecido por Deus e por todos os santos. Disseram-me que a conquista seria fácil, que o investimento se cobriria em apenas três anos, e que seria como um rei em minha própria capitania. Era com certeza um avanço em relação ao que tinha em Portugal, mas falando com sinceridade eu não precisava de mais. Tinha uma vida boa, três filhos saudáveis e com bons futuros, e de tudo isto Filipa avisou-me antes de partirmos, agora ela está morta. Derrotada por uma febre durante uma tempestade antes mesmo de aportarmos aqui. Estávamos tão perto, mas Deus, de novo Ele, quis nos afastar do destino, e acabou por levar minha mulher e três dos sete navios com ela. Restou-me retornar a Portugal para sobreviver. 

Mas sou um navegador, tenho a experiência dos anos e das batalhas ao meu lado, não poderia me deixar vencer por tão pouca coisa. Rei Felipe, maldito seja, ordenou uma nova tentativa. "Tu irás preparado, Frutuoso. Seis naus completamente equipadas com armas e munição, e quatrocentos homens para navegá-las". Eles nos deram mosquetões, armaduras e todas as quinquilharias necessárias para vencer uma guerra que se arrastava a oito longos anos. Da capitania de Pernambuco viriam mais quinhentos homens por terra. Ao contornarmos a foz do Paarayba, o rio que guarda as portas do inferno, avistamos as cores francesas e perseguimos suas naus rio adentro. Era sabido de todos que os franceses mantinham tropas nessas paragens, mas não pensei encontrá-los em tão grande número. Afundamos três das naus e duas delas os miseráveis incendiaram, pois era um maldito truque. As embarcações estavam com tripulação mínima e as perdas que infringimos foram insignificantes. Eu não sabia disso na hora e ordenei que ancorássemos numa ilhota no meio do rio, conhecida pelos nativos como Ilhas das Garças. No amanhecer seguinte atravessaríamos o canal e nos moveríamos de volta à foz, onde encontraríamos os reforços vindos do sul. 

Pindorama - O despertar da escuridãoWhere stories live. Discover now