Prólogo

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- Ela precisa superar! – o esbravejar de seu pai pôde ser ouvido por todos os cômodos.

Sim, ela precisa – pensou, deitada no chão frio. Uma das mãos aumentava o volume do som em seu celular e então alternava as músicas assim que se alcançava os refrães. Martin, passa. Del Rey, passa. Smith, passa. Swift, passa. Levine, passa... Nenhuma prendia a atenção por tempo o suficiente, nenhuma realmente agradava. Mantinha o olhar fixo ao teto negro com pequenas estrelas que brilhavam no escuro do quarto. Estendeu uma das mãos na tentativa de alcançar as estrelas ou algo além delas. Começou a chorar novamente, levou a mão trêmula e fria aos olhos.


Ouvir seus pais brigando novamente, obviamente pela preocupação com sua saúde física e emocional não estava nos planos de Manuela quando a família se reuniu na casa de praia na virada do ano. Olhar as estrelinhas fosforescentes a levavam de volta àquela noite de céu estrelado onde a lua parecia maior que o normal e as ondas quebravam em formas belas e rítmicas. Observava agradecida por ter todos os que amava por perto, seus familiares, amigos e alguém especial. Caio se aproximou com duas taças de champanhe, debruçou-se no corrimão da escada e a ofereceu a bebida, arqueando uma das sobrancelhas; uma de suas marcas registradas – um charme, diga-se de passagem.
- Como conseguiu burlar a vigilância da família Medeiros? – aceitava o copo – Eles são bem sistemáticos quanto a estourar o champanhe antes do horário.
- Mágica! Digamos que eu saiba um truque ou outro – sorria e piscava os olhos castanhos – Ok... Na verdade foram os seus tios que permitiram.
- Se meus pais me pegam bebendo...
- Não seja tão pessimista, mocinha– levantava sua taça esperando um ato recíproco de Manuela – Faltam dez minutos para o fim do mundo como conhecemos. Brinde comigo!
- Que exagero – sorria desconcertada – Será apenas um ano de muitas incertezas. Pré-vestibular, responsabilidades e blá, blá, blá.
- Agora o exagero é seu – mantinha a taça ao ar – Não acredito que vou ficar no vácuo por tanto tempo.
- Oh, desculpe – agora ela sorria sem evitar o constrangimento, enquanto brindava.
- Não se pressione tanto assim, Manuela – ele bebia, observando o movimento das ondas – Tudo dará certo.
- Cruze os dedos – desejava, enquanto amargava o gosto da bebida, quase cuspindo-a fora. Tornou a olhar para ele, na expectativa que ele estivesse olhando o oceano e não visto aquela cena trágica. Ele viu.
- Prometo não te atrapalhar esse ano, nem mesmo te embebedar ou coisa assim – ambos sorriram – Sei que está focada nos estudos, mas procure não se cobrar demais. Tenha fé em si mesma – ele faz uma pausa proposital – Eu tenho fé em você – ela corava.
- Você não me falou sobre a banda – visivelmente tentava mudar o assunto.
- Os caras estão animados, de verdade. Os pais do JP autorizaram os ensaios na garagem – ele sorria – Somos grunge de raiz, agora – fazia sinal da mão chifrada.
- Mudaram aquele nome esquisito? Siri com câimbra?
- Escorpião Elétrico – fazia uma careta enquanto ela sorria – Você deveria ir aos ensaios quando a cabeça estiver pesada de tanto estudar para relaxar um pouco.
- Vou pensar no seu caso, Senhor Siri. – debochava- Claro, se minha agenda permitir.
- Eu disse antes, tudo dará certo, Manuela – ao fundo, a família começava a anunciar em uma contagem regressiva que um novo ano, repleto de possibilidades estava por vir. Ele, abruptamente tomou sua mão para lhe roubar o melhor beijo. O champanhe de Manuela escorria pela taça, escada abaixo, enquanto suas pernas tremiam e seu coração batia tão forte que se não fosse pelos fogos poderiam ser ouvidos por toda a casa – As histórias sempre acabam bem no final, certo? – ele confessava em seu ouvido – E esse é apenas o começo da história. Feliz ano novo e feliz aniversário!


Manuela deixava as lágrimas deslizarem sobre as bochechas novamente. Não as segurava mais. Quando negar a perda já não adiantava mais, quando quebrar ou rasgar tudo que lhe trouxesse à tona as lembranças já não adiantavam mais, quando revoltar-se contra tudo e contra todos já não adiantava mais, quando barganhar com Deus já não adiantava mais, decidiu deixar as lágrimas caírem. Todas elas. Sua psicóloga dizia que ela se encontrava em um estágio evolutivo natural de quem lida com o luto. Conseguia entender, de fato, Manuela sempre tivera um equilíbrio quase perfeito entre a razão e a emoção, mas ainda se sentia tão pequena, tão incapaz. Quem teria forças, afinal, para suportar a perda de alguém importante subitamente em um acidente? O'Riordan, passa...
A música reduziu o volume por conta própria, havia uma chamada. No celular, o nome "Murilo" aparecia por alguns segundos e então a chamada era perdida, mostrando na tela um total de setenta e sete ligações perdidas, entre algumas mensagens, de muitas pessoas que evitou durante todo esse tempo. Manuela encarou o celular por um tempo, retirou os fones de ouvido e desligou o celular, deixando-o ao chão, ao seu lado. Em um dos períodos mais difíceis de sua vida não deixou de ter o apoio da família e de seus amigos. Murilo era um destes queridos amigos, daqueles que se carregam desde criança. Suas piadas prontas e a incrível habilidade de decorar nomes de desenhos japoneses e combinações de movimentos especiais em jogos de ação eram suas marcas registradas. Sentiu um nó na garganta ao ignorar a ligação do amigo, afinal este compartilhava de sua dor, mas mesmo ela não tinha forças e ânimo para amparar ou ser amparada. Conhecera Caio por meio de Murilo em um de seus aniversários e se não fosse por Brenda, não entenderia metade do que eles conversavam. Ela não era tão diferente de Murilo, sempre esteve presente desde criança e com eles vivenciou algumas das melhores lembranças de seus dezessete anos, representando assim, um dos pilares que sustentavam seu espírito. Brenda era mais alta e espirituosa, chamando atenção com sua risada e bordões, que mesmo repetitivos não perdia o timing ou a graça. Perto dela, passava despercebida, mas nunca sentiu-se uma sombra da amiga, nem mesmo se permitiam esse tipo de amizade. Sabiam de cor suas preferências, fossem elas músicas, filmes, séries e até mesmo, sobre os garotos.
- Olhe para esses dois – Brenda desdenhava – o geek e o rockeiro. Quem diria que poderiam ser amigos e tão diferentes.
- Nós somos amigas e somos diferentes, pelo que sei.
- Amiga, você tem preguiça de se arrumar – ela debocha pegando as mãos de Manuela e evidenciando as unhas roídas – se não fosse por isso, seríamos quase gêmeas. Ok, tirando, talvez seu cabelo escorrido e esse tom quase albino da pele e...
- Aceita logo que somos diferentes – Manuela mostrava certa irritação ao cortar a amiga – e pare de fazer parecer que sou uma esculachada na vida – a risada de ambas atraíram a atenção de Murilo e Caio.
- Parece que alguém gosta desse seu jeito esculachada – acenava para os dois.
- Brenda! – e essa foi a primeira de muitas vezes que Caio a viu corar.


Absorta, Manuela não ouviu a campainha tocar, mas sim, a comoção de seus pais ao receber alguém, naquela noite. Não demorou muito para que alguém viesse bater à porta. Estava destrancada, seus pais sabiam. Portas trancadas já lhe custaram dores de cabeça e brigas e nesta temporada, Manuela não queria arrastar seus pais para sua tristeza, mesmo que fosse uma tarefa impossível. O chá que sua mãe lhe preparava todo fim de noite veio com um sabor diferente, daquela vez.
- Brenda! – a boca seca quase não permitiu expressar sua surpresa.
Ver a amiga atravessar a porta em um rompante de amor, com os olhos repletos de lágrimas e por incrível que parecesse, sem saber o que dizer, injetou-lhe o ânimo necessário para levantar e se entregar a um abraço acalorado e sincero. Da porta seus pais se abraçavam e em lágrimas e sorrisos debilitados tinham a certeza que um pequeno degrau fora alcançado naquela noite, um pequeno sopro de superação para que dias melhores pudessem, enfim, vir.
- Eu estou aqui, Manu – a amiga tentava passar confiança com a voz rouca.
- Obrigada...

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#Considerações sobre o capítulo#
1)Primeiramente, se você chegou até aqui, muitíssimo obrigado. Romances não são meu forte, então este é um belo desafio criativo. Espero que gostem.
2) O número de ligações e chamadas perdidas por Manuela não estão ali ao acaso. Setenta e sete é um número cabalístico que representa o discernimento da alma na direção de sua evolução, libertação e capacidade de aceitar as mudanças. Toda força para que Manuela se recomponha para os próximos capítulos. o/
3) Quem mais imaginou um siri com câimbra? Andando de lado, meio torto. Sim, eu tenho problemas. XD

Até a próxima.

QUATRO CORAÇÕES PARA O FIM DO MUNDOOnde histórias criam vida. Descubra agora