3.Oi. Estou ficando louca.

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       No geral, Manuela terminou o dia com sensações dúbias. Havia vencido seus medos, juntara forças suficientes para vencer o seu primeiro dia de aula, mesmo com todo o sentimento de perdas e inseguranças envolvido. Era inevitável que um de seus colegas perguntasse sobre seu estado após a perda de Caio, ela estava preparada para esse tipo de pergunta. Ensaiara por todo o recesso escolar as melhores respostas prontas e entre lágrimas contidas, mãos cerradas com unhas que quase penetravam sua carne e sorrisos falsos ela dizia que estava melhor, que estava tudo bem. Será mesmo? Ter o apoio de Brenda foi fundamental, conhecer Frango foi uma grata surpresa, ela só não contava com o afastamento de Murilo. De fato, ela ignorou muitos de seus amigos e familiares enquanto se afundava em seu luto, Murilo era um deles. Sentia-se mal por não poder tê-lo ajudado com o seu luto, mas ela sequer tinha forças para encarar o próprio. Uma conversa entre os dois seria inevitável, ela sabia, só não poderia prever se ainda haveria uma forma de fazer com que tudo pudesse ser como era antes. No fundo do seu coração ela sabia que naquele ano nada seria como antes.
Enquanto caminhava de volta para casa, imersa em seus próprios pensamentos, Manu percebeu que algo mais a perturbava. O aviso de Frango despertou sua curiosidade pelo restante do intervalo e durante as aulas posteriores. Quem eram aqueles que a observavam constantemente? Ela tinha aquela estranha sensação de conhecê-los de algum lugar. Por muitas vezes teve vontade de virar-se para trás e dar uma de louca, perguntando para aqueles dois o que raios eles tanto a olhavam, mas preferiu manter-se reservada, afinal, manter o controle dos sentimentos conflitantes era fundamental para continuar forte o suficiente na sua árdua batalha de aceitação e superação.
Quando seu celular tocou, ainda estava imersa em seus questionamentos e por isso demorou para atendê-lo.
- Oi, mãe.
- A ligação está ruim, filha. Está tudo bem?
- Sim – ela sorriu – Ainda não enlouqueci.
- Quando você tiver uma filha vai enlouquecer quase todo dia...
- Ei! – Nesse momento Manuela questionou os motivos de levarem os pais a conversarem sempre pelo viva voz.
- Estaremos fora quando chegar em casa, filha. Sua mãe quer passar na casa da bruxa primeiro – esse comentário de seu pai, gerou um brusco descontentamento de sua mãe.
- Ok. Mande beijos pra vovó, por mim – entrando na brincadeira, Manu provocou.
- Definitivamente não posso com vocês dois.
- Divirtam-se.
- Vamos sim – dizia seu pai – Se demorarmos um pouco mais é porque estaremos trabalhando na confecção de um irmãozinho para você e... – nesse momento, Manuela agradeceu aos céus pelo péssimo sinal do celular.
- Ei... Alerta da vergonha.
- Seu pai está querendo dormir no sofá hoje – ela sorriu e Manuela sorriu junto. Ver seus pais felizes era um alento delicioso após a barra que tiveram que passar para que ela pudesse se reerguer – Na verdade liguei para perguntar se comeu o iogurte que deixei em sua mochila. Se estiver com fome, tem lasanha na geladeira e você sabe o que fazer com ela.
- Mãe... Não tenho mais dez anos – falava baixinho, para não ser ouvida na rua, mas de fato esquecera de comer e agora ele estava quente, talvez até estragado, mas felizmente a ligação caiu antes que pudesse confessar que a garota toda responsável em questão era uma grande cabeça-de-vento. Procurou em sua mochila o iogurte quente quando sentiu uma presença próximo ao seu pé seguido de um som baixinho posteriormente identificado como um miado. Um pequeno e peludo gato rajado miava desesperadamente para ela. Saíra de uma moita para atacá-la com todo seu ímpeto de fofura que esqueceu-se das limitações de suas pequenas patas, tropeçou e em uma cambalhota desajeitada resvalou no pé de Manuela.
- Veja só...
O pequeno gato voltou para a moita, mantendo os olhinhos atentos aos movimentos de Manuela, em uma posição de falsa sagacidade.
- Você quer o iogurte? – retirando a tampa, Manuela deixou o potinho de iogurte desnatado quente, se afastando em seguida – Se você responder vai ser estranho, eu sei, mas pode ficar para você.
O gato demorou alguns segundos para decidir se confiaria na humana com aquele sorriso largo e meio besta, mas seu estômago foi o juiz de sua decisão. Afundou sua carinha no potinho, lambuzando-se todo e acabando com seu conteúdo rapidamente, quase um recorde entre os felinos.
Manuela sorriu, fez um gesto para que ele pudesse se aproximar, inutilmente. Com a cara lambrecada o felino miou e correu de volta para moita, e então Manuela o perdeu de vista.
- Que pequeno ingrato! – esbravejou ainda sorrindo e assim, com um gato, esqueceu-se dos grilos em sua cabeça e sua volta para casa tornou-se muito mais agradável.

***
A tal lasanha ainda estava no micro-ondas e Manuela ainda não havia decidido a música que queria ouvir. Colocou uma sequência de pop e em pouco tempo, então, começou a dançar. Quem nunca pegou-se dançando e cantando, à vontade, quando sozinhos em casa? Arrumou sua cama, trocou o lençol e a fronha e ao guardar seu cobertor no armário uma avalanche de roupas caiu em cima de si. Esforçou-se para aparar as roupas e jogou todas dentro do armário novamente, fechando a porta rapidamente para que as peças não voltassem a cair. Sua mãe a mataria por não ter dobrado suas roupas corretamente, mas ela jurou a si mesma que daria um jeito no fim de semana.
"Dessa vez é sério."
No intervalo da música, pôde ouvir o apito do micro-ondas. Como o gato, Manuela deveria ter quebrado o recorde de comer uma bandeja inteira em poucos minutos. Seu pai sempre dizia que ela tinha um estômago de avestruz e que não sabia para onde ia tudo que ela comia. Sua mãe, em sua defesa, dizia que na adolescência comia tanto quanto ela e ainda mantinha um corpão, mesmo depois dos quarenta.
De estômago cheio e embalada pela música que ouvia do quarto, deitou-se no sofá e rapidamente pegou no sono.

***
Estava sonhando, e sabia. Pegou-se em mais um daqueles estranhos sonhos. Estava em sua escola, sozinha no corredor principal do andar de sua sala. Caminhava lentamente entre cadeiras mesas quebradas e sempre empoeiradas, como se ali não houvesse aulas por muito tempo. Não haviam os cartazes nos murais, não havia iluminação além da que vinha das janelas de um dia nublado. Mais à frente, uma pichação trazia seu nome riscado. O que ela teria feito para despertar tamanha revolta? Qual a razão daquele sonho onde o mundo se encontrava devastado? Seria aquilo uma representação de sua psique alertando que havia algo de muito errado dentro dela? Ainda frequentava sua psicóloga toda quarta-feira e jurava que havia, enfim, encontrado paz suficiente para parar de se culpar e encontrar forças para seguir seu caminho, mas esses pesadelos constantes ainda a tiravam do chão. A sensação de medo e inquietude arrepiavam sua espinha mesmo ao acordar. Nessa tarde ela queria acordar, mas não conseguia. Sentia sua respiração ficar mais ofegante e ecoar naquele corredor. Podia sentir seu coração e então aqueles sons de cascos se aproximando novamente. Galopes lentos se aproximavam, de forma quase treinada, rítmica, para enfim cessar.
- Você se sente culpada – uma voz melódica e suave ecoava no fim de um corredor tão escuro que não se podia ver quem falava.
- É natural – uma voz suave ecoava no lado oposto do corredor, desta vez – Ela ainda não entende.
- Ela deverá decidir dessa vez e em breve... – agora uma límpida voz feminina.
- Vocês estão preparados para o fim? – uma quarta voz, rouca desafiava as demais.
O coração de Manuela batia descontrolado quando as vozes na escuridão que tanto a atormentavam desvendavam seus rostos como os quatro alunos que a espreitavam no colégio. O frio garoto pálido, o motoqueiro encrenqueiro, a garota que bebia um suco após outro e o oriental comedido.
"Não pode ser..."
Despertou com tamanho ímpeto ao levantar que quase caiu do sofá no mesmo instante em que seus pais chegaram. Para seu espanto, dormira a tarde inteira. Ela os abraçou com força e então dirigiu-se ao seu quarto, recusando-se a jantar. Pegou o celular e enviou a mensagem mais estranha que Brenda poderia ter recebido às nove da noite, mas que infelizmente só notou no dia seguinte:
"Oi. Estou ficando louca."
Deitou-se em sua cama e demorou a dormir, por medo de sonhar novamente. O céu estava parcialmente nublado naquela noite, o vento soprava pela janela anunciando uma possível chuva vindoura e ainda assim, do lado de fora quatro figuras espreitavam a casa de Manuela.

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Considerações sobre o capítulo:

1) Sempre fui mais de cachorros que gatos, mas cá entre nós é difícil demais não se sensibilizar com essas bolas de pelo, quando eles te permitem se aproximar e fazer carinho.
2) Uma pausa para aguar a lasanha de Manuela. Pronto. Podemos prosseguir.
3) Quem nunca enlouqueceu na vida que atire a primeira pedra. Tem uma citação que gosto muito de Bukowski que questiona as vidas medíocres das pessoas que nunca enlouquecem. Sim, sim.

Até a próxima semana.

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⏰ Última atualização: Sep 03, 2018 ⏰

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