Imersa em uma penumbra sem fim, Manuela sentia os pés descalços umedecerem com sangue e cinzas, a cada passo um arrepio. As mãos trêmulas carregavam uma pequena lanterna que dava evidências de que não iria funcionar por muito tempo. Parou de olhar para o chão frio após esbarrar em um crânio disposto ao longo da rodovia. Estava sozinha, entre carros e pertences diversos abandonados pelo caminho. Prendia a respiração o máximo que podia para evitar que aquele ar seco e nauseante impregnasse suas narinas. Mantinha o olhar fixo no horizonte quando sentiu uma presença atrás de si. Virou-se instantaneamente, mas nada encontrara. Sua imaginação estava pregando-lhe peças novamente. Não. Ela podia sentir uma presença, e então duas. Quatro.
- Quem está aí?
Das sombras podia ouvir risadas leves, como o assovio de um vento, mas não havia vento naquele maldito lugar. Cerrando seus olhos enxergava silhuetas sombrias acompanhando seu caminho, não muito distantes.
- O que querem de mim?
Mais risadas. Em desespero, pôs-se a correr, sem rumo, sem pensar em qualquer plano, agarrada ao mínimo de esperança de que tudo não passasse de um sonho ruim. Sim, ela já havia sonhado com cenas assim. Vislumbres do fim do mundo, como em um daqueles filmes e séries pós-apocalípticas que Murilo tanto gostava. Trevas sem fim, cinzas, pessoas queimando até se tornarem pó, prédios caindo, animais agonizando de fome, água potável tornando-se puro sangue, céus vermelhos, trovoadas, tremores, ventos fortes. Foram várias noites em que Manuela via-se imersa nesse tipo de pesadelo. Ouvira sua mãe e sua psicóloga conversarem sobre a normalidade da existência de pesadelos após eventos traumáticos, e estes pesadelos estariam mostrando, de forma inconsciente a profunda e dolorosa angústia em que vivia. Manuela questionava-se de que forma poderia se livrar de tudo aquilo. Justamente quando pensava estar forte o suficiente para recomeçar, esses pesadelos a arrastavam ao chão. E assim acontecia. Manuela, agora caída nas cinzas que cobriam o asfalto da rodovia. Com as mãos sujas, secava as lágrimas quando ouviu o som de cascos batendo em um galope lento em sua direção. Estreitou os olhos, ajeitou a franja e notou quatro grandes silhuetas imergirem das sombras. Haviam estas quatro pessoas, montadas em cavalos tão sombrios quanto seus cavaleiros. Moveu-se para trás, levantando-se com dificuldade quando algo segurou seu braço.
-Filha...
Em gritos e soluços Manuela despertava com sua mãe ao seu lado, segurando sua mão. Instintivamente, jogara seu corpo com toda força em um abraço que durou uma eternidade.
- Respire fundo, filha – sua mãe sussurrava em seu ouvido – Respire bem fundo.
***
- Respire fundo, Manuela. Respire fundo.
Repetia a si mesma como um estranho mantra naquela fria manhã de terça-feira. Estava parada em frente as escadarias de seu colégio observando a movimentação de alunos, uns animados com o retorno, outros nem tanto. Em meio a tantos rostos desconhecidos, sentia-se uma completa estranha e não tardou até o desespero trazer um leve desespero, como se uma versão má de si mesma insistisse que ela deveria fugir e se esconder novamente. Não. Essa não era a Manuela que ela sempre foi e sempre quis ser. Era decidida de si, mesmo com tantas incertezas, reconhecia suas forças e fraquezas.
- Respire fundo – continuava balbuciando.
Cada degrau parecia uma provação hercúlea. Suas mãos suavam e já nem sabia se seu rosto entregava-lhe a falta de coragem. Podia ouvir seu coração bater como a bateria de uma escola de samba e somente então, deu-se conta que não ouvia as risadas e gritarias ao redor. Havia apenas seu coração, ecoando em um ritmo acelerado em sua bolha de coragem particular. Sua atenção era cortada, subitamente, por algo que a irritava mais que carro de telemensagem, o som de uma moto sem o escapamento. Aquele barulho típico de quem deseja chamar a atenção conseguiu seu objetivo. Praticamente todos os alunos que ainda não haviam adentrado o colégio pararam para observar o ronco daquela máquina que estacionava do outro lado da rua. O motociclista retirou o capacete e ainda em cima de sua hornet vermelha traçou sua linha de visão para Manuela, ou assim ela achou. O motociclista acenou fazendo o coração de Manuela bater com tamanha intensidade que seu rosto, de leve medo, ruborizou-se instantaneamente. Se você pensou que Manuela acenou de volta, por educação e curiosidade acertou. Somente após a resposta cordial, virou-se e reparou que de fato, o aceno não era para si, mas para um rapaz pálido que trajava um casaco de capuz preto no alto da escadaria. Check para o primeiro mico do ano. Como um raio Manuela passou ao lado deste rapaz demonstrando que a vergonha dera toda a força que ela precisava para entrar, enfim.
No corredor observava os alunos antigos e novos procurando suas respectivas salas nas relações dispostas nos murais. Encontrou, então, um rosto conhecido na multidão: Murilo. Sentiu um misto de comoção e culpa ao rever o amigo. Quando seus olhares se cruzaram, porém, Manu sentiu uma frieza naqueles olhos castanhos e entendia o porquê. Murilo deixou a entender que falaria algo, porém somente ajeitou a mochila sobre os ombros e sumiu entre os outros alunos. A vergonha daria lugar a um grande pesar se não fosse por aquela pessoa que estava sempre presente em seus melhores e piores momentos.
- Não acredito!
Manuela sorriu, meio sem jeito pelo espanto um tanto alto e desconcertante de Brenda que se dirigia até ela, esbarrando e até mesmo empurrando outros alunos no corredor para que saíssem de seu caminho.
- Sem holofotes, Brenda. Por favor. – sorria enquanto ajeitava a manga do velho casaco de estimação.
- Vai ficar difícil. Você volta assim, toda linda, sambando na cara dessa escola chinfrim. – ela ajeita o cabelo da amiga – Ruiva, então?
- Precisava mudar um pouco, pra voltar como uma fênix – nem mesmo Manuela conseguia segurar o riso depois do próprio comentário besta.
- Arrasou, passarinho flamejante. Eu mesma, deveria ter pensado nisso antes. Ano novo, cabelo novo – ela esticava os cachos – luzes, talvez uns dreads...
- Nem comece! Olha o volume desses cachos. Seu cabelo está lindo... – as afirmações de Manuela são interrompidas pela colocação de um estranho.
- Está mesmo, mas se continuar com o preconceito com os dreads juro que essa amizade acaba mesmo antes de começar, colega.
- Oi? Te conheço? – Manu balança a cabeça negativamente, rindo – Olha a audácia desse branquelo.
Elas observam o aleatório garoto sorrir enquanto continuava seu caminho pelo corredor, balançando os seus dreads em um gingado exageradamente engraçado.
- Quem disse que não haveriam surpresas hoje?
- Por falar em surpresas, preciso te contar do mico que acabei de passar na entrada – confessava desconcertada enquanto se dirigiam em meio a risadas altas à respectiva sala de aula.
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Sobre o capítulo:
1) Se você chegou até aqui e puder perdoar o hiato, agradeço de coração. Estarei postando semanalmente os capítulos, se o universo assim permitir, ou sei lá se o fim do mundo não chegar antes.
2) Quem nunca pagou um mico na escola que atire a primeira pedra! Teve algum pior do que a Manu? Sintam-se livres para confessar seu mico ou mesmo para ajudar com comentários e/ou críticas sobre a história.
Até a próxima.
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QUATRO CORAÇÕES PARA O FIM DO MUNDO
Ficção Adolescente#VOLTANDO A ATUALIZAR SEMANALMENTE# "Eu nunca acreditei muito sobre essas teorias conspiratórias ou crenças fervorosas sobre o fim do mundo, pelo menos não das formas proféticas. Não me julgue mal, mas quando seu mundo inteiro está de pernas para o...