Capítulo 1

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Eu nasci assim, diferente. Não fui a primeira na família a nascer dessa maneira e não serei a última. As servas que me viram nascer contam que assim que abri meus olhos pela primeira vez, uma tempestade violenta assolou o reino, uma chuva mais que bem-vinda, pois já estávamos perdendo a colheita por falta de chuva.

No entanto, minha vinda ao mundo não trouxe somente coisas boas. Minha mãe morreu alguns dias depois que nasci, e esse fato, somado à minha aparência, foi suficiente para que nenhuma das amas de leite mais experientes quisesse chegar perto de mim. Apenas uma novata, Kala Jones, aceitou me amamentar.

E mesmo depois, quando já conseguia comer e me virar sozinha, os Selvagens começaram a atacar os limites do reino. Ninguém sabe de onde eles vieram ou o que realmente são, nem mesmo se são Selvagens. O nome pegou devido a serem sanguinários e incansáveis, não parando para dormir ou comer até que todos os nossos homens estivessem mortos. Isso fez meu pai ir às batalhas constantemente, tentar conter essa onda de morte antes que atingisse todo o reino, então cresci com Kala cuidando de mim e com seu filho Jake Jones, que se tornou meu melhor amigo.

A memória mais antiga que tenho da nossa amizade é de quando estávamos brincando perto de macieiras, quando ele me perguntou pela primeira e única vez sobre meu cabelo prateado. Eu apenas respondi que não sabia por que ele era assim e, sem querer, fiz uma maçã cair do galho. Ele ficou impressionado e resolveu fazer a mesma coisa. Subiu na árvore, e estava se esticando para pegar uma fruta quando um dos galhos se partiu e ele caiu.

Por instinto, levantei minhas mãos para cima, e rajadas de vento o colocaram em segurança ao meu lado. Ajoelhei-me perto dele, e pouco a pouco ele foi abrindo um sorriso e, assim que abriu as mãos, ele me entregou uma flor da macieira.

***

Volto ao tempo presente. As duas servas terminam de colocar o vestido em mim, escuto-as dizer que estou linda, mas não me sinto assim. Em seguida, escuto a porta se fechar. Sento-me novamente na cadeira e me olho no espelho. Meus olhos denunciam todo o meu sofrimento: vermelhos e secos. Nesses últimos três dias, acho que chorei todas as lágrimas do meu corpo.

Olho novamente para a espada do meu pai, a única coisa que sobrou dele, e me lembro da última vez que nos vimos. Lágrimas ameaçam voltar aos meus olhos.

Havíamos brigado. Eu não me lembro de como começou ao certo, mas o tema da briga era sempre igual: meus poderes. Ele me mandava escondê-los, e eu, eu quero usá-los para vencer de uma vez esta guerra contra os Selvagens. Eu saí da sala dizendo que o odiava, e na manhã seguinte, quando ele saiu novamente, eu não me despedi. Tranquei-me no quarto com raiva dele.

Passos me tiram das minhas lembranças, e rapidamente enxugo o rosto com as costas da mão.

— Vossa Alteza, estão todos esperando. — É Jake.

Depois de anos treinando com os soldados, ele passou agora a ser meu guarda pessoal.

— Estou indo. — Minha voz sai quebradiça e fraca.

— Kiara, pode adiar se quiser. As pessoas vão entender.

— Eles me chamarão de fraca, mais do que já me chamam agora — digo, levantando-me. — Está na hora.

— Tem certeza?

Abraço-o e sigo até a porta.

— Eu não tenho certeza de nada... — respondo baixo. — Mas não deixe que saibam disso.

Ele abre um sorriso e se coloca atrás de mim.

Caminho pelos poucos corredores que me separam da catedral.

Ao adentrar a Catedral dos Quatro Senhores pela porta da Mãe Lua, sinto todos os pares de olhos me observando, me avaliando. Respiro fundo e começo a andar sem olhar para os lados, apenas para frente. Cabeça erguida e passos lentos. Eu posso fazer isso, eu consigo... Eu tenho que fazer isso.

Ao chegar às escadas, me ajoelho nas almofadas vermelhas.

— Princesa Kiara Margareth Rosalina Bennet, filha do rei Matthew William Bennet e da rainha Amélia Rosalina Bennet, jura proteger seu povo?

— Juro. — Minha voz sai alta e clara, bem diferente de quando estava no quarto.

— Jura fazer com que o Reino de Érodion prospere?

— Juro.

— Sendo assim, com os poderes em mim investidos, eu a declaro Kiara I, rainha de Érodion.

A coroa de ouro pesa em minhacabeça, e enquanto me levanto, escuto os vivas que são dados atrás de mim, todosaqueles homens e mulheres gritando meu nome em união. Quando me viro para encararos presentes, vejo o sorriso acolhedor de Jake no fundo do corredor. Sento-me notrono para terminar a cerimônia.

Crônicas dos Descendentes: A Guardiã (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora