O último natal - @guibuenozero

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Na minha época o natal era diferente, no norte da Itália onde a igreja dominava, o natal era uma época sombria onde apenas tínhamos que rezar pelo nascimento de Jesus.

O ano era 1795, e esse era o primeiro natal que eu passei com a minha nova família, meu novo pai se chamava Eustácio, era muito fiel a igreja, autoritário e sonhava ter um filho padre, minha nova mãe Catarina, filha de estrangeiras era sempre abusada pelo marido e era mais tratada como escrava do que esposa. Eu também tinha um novo irmão, chamado de Giovanni era igual o pai.
Bom meu nome é Alan, não sei sobre meus pais biológicos, a minha primeira memória era eu sendo levado para casa da minha primeira família por uma mulher loira e muito bonita. Uma família totalmente diferente dessa ela era feliz e não tinha nenhum tipo de maldade. Morávamos no Sul do pais. Era um lugar lindo perto do mar, tinha uma praia perto do vilarejo que morávamos, a água era cristalina e o clima era ótimo, totalmente diferente daqui a beira das montanhas.
A minha vida começou a mudar quando um senhor da igreja veio fazer uma visita ao vilarejo. Depois de alguns dias fazendo missas na capela local ele decidiu passar por todas as casas para dar a benção. Eu me lembro como se fosse hoje o momento que ele entrou em casa, com um sorriso macabro e cheio de malicia, nunca tive muita fé, mas aquele dia foi o primeiro que eu tive certeza que o diabo existia.
O Senhor olhou nos meus olhos assim que entrou e seu sorriso aumentou pegando todo o seu rosto.
-Finalmente te encontrei. – Ele disse no momento que me viu.
O frio na espinha era inevitável e eu sentia que tinha que correr daquele lugar. Foi o que eu fiz, meu instinto de sobrevivência me fez correr como nunca tinha corrido, eu só podia pensar em me salvar. Quando me dei por mim já estava na floresta fora da vila. Me lembrei da minha família e da mesma forma que fugi eu voltei para casa, mas já era tarde demais, os homens que estavam com o senhor começaram a atear fogo nas casas e a minha já estava em chamas tornando impossível de ter restado alguém. A última coisa que eu me lembro foi da raiva que senti e quando me dei por mim eu estava deitado em cima de cinzas, ao meu redor havia apenas os restos da aldeia. Não tinha sobrado ninguém. Minhas mãos estavam sujas de sangue e minhas costas estavam pesadas. Quando tentei me levantar pude ver, um par de asas brancas como a neve saia das minhas costas, elas eram maiores que eu e com certeza eram mais pesadas. Eu não fazia ideia de como elas vieram parar em mim. Do meu lado estava o corpo do Senhor da igreja com o mesmo sorriso, mas dessa vez ele não tinha vida.
Com o resto das minhas forças eu sai andando pelo vilarejo na esperança de encontrar alguém vivo, mas por onde eu passava apenas via a morte. Conforme o tempo passava e a noite ia chegando a neve começava a cair e as minhas asas ficavam mais perto do meu corpo tentando me aquecer. Foram dois dias andando até eu conseguir esconder as minhas asas e pode andar livremente pelas estradas, nesses dias eu aprendi a caçar e procurar minha própria comida até encontrar uma vila que tivesse alguém disposto a me ajudar. Não foi um boa ajuda com Senhor que me encontrou e me mandou para um orfanato que dois anos depois me mandaram para a minha segunda família.

E hoje nessa noite de natal eu estou com a minha segunda família. Catarina com seu rosto apresentando o dobro da idade que tem, com medo de levar a próxima surra, Eustácio mandando ela fazer todas as suas vontades e Giovanni entusiasmado para se casar e poder fazer o mesmo com a sua futura esposa.

Eustácio me mandou pegar mais lenha na floresta, eu não tinha a opção de dizer não, mesmo com o frio congelante que estava lá fora. Nós morávamos na casa mais afastada da vila, logo na entrada para a floresta, eu peguei um machado e vestindo a única roupa fina que me deram eu fui a procura de lenha. Quando percebi que ninguém podia me ver eu tirei minha camiseta e abri minhas asas, ela era tão quente que nem parecia estar nevando, no meio do caminho fui achando algumas madeiras que poderiam ser usadas como lenha, mas todas encharcadas com a neve, não que meu novo pai já não soubesse afinal já nevava a dias.
Mas havia algo estranho na floresta, estava tudo muito quieto, não tinha vento nenhum, nenhum animal fazia barulho e eu podia ouvir o barulho dos meus passos. Por mais que eu não sentisse frio eu tinha uma sensação que me dizia que algo muito ruim iria acontecer, mas entre levar uma surra do meu novo pai e me arriscar pela floresta eu decidi me arriscar afinal era apenas um sentimento ruim. Logo na minha frente tinha uma arvore caída, perfeita para tirar uma boa lenha, não perdi tempo levantei o machado e com toda a minha força fui cortando toda a lenha que precisava. Quando já tinha o suficiente voltei pelo mesmo caminho e ao chegar em casa coloquei tudo no depósito atrás da cozinha. De dentro da casa havia uma voz diferente, uma voz firme e grossa, ela tinha algo de familiar, algo que me dava medo e me fazia sentir vazio. Ainda fora de casa eu me agachei perto da janela e olhei o que estava acontecendo. O que eu vi foi nauseante, eu queria colocar tudo que tinha comido para fora eu senti pânico e meus olhos lacrimejavam com o pavor daquela visão, com minha nova família estava o mesmo Senhor da Igreja que tinha visitado a vila que eu morava e matado a minha família dois anos atrás.
Eu tentava ouvir o que ele dizia, mas não conseguia entender nada. Até que ele ergueu seu braço apontando seu dedo para mim. Eustácio deu um berro e esse sim eu consegui entender claramente, ele queria que eu entrasse dentro de casa.
Não que eu não amasse essa família, mas eu já sabia que todos eles estariam mortos em poucos minutos. Olhei em direção da vila e já via as primeiras casas em chamas, a cada segundo que passava meu pânico aumentava eu sabia que tinha que correr, mas não conseguia me mexer.
Quatro guardas saíram pelos lados casa e me encurralaram. Agora algo em minha mente me dizia que eu tinha que lutar, mas como eu faria isso? De canto de olho eu examinei tudo ao meu redor e a poucos metros de mim estava o arco do Eustácio em um único pulo eu cheguei nele e mirei a primeira flecha em um deles, eu sabia que tinha matado o Senhor dois anos atrás então não seria a primeira vez que eu teria que me defender, meu braço tremia muito e minha respiração estava muito acelerada e meu pânico só aumentava. Os quatro vieram em minha direção quando eu soltei a primeira flecha, acertei a perna de um deles sem muitas chances eu simplesmente corri para a floresta e foi quando outros guardas chegaram a cavalo, peguei outra flecha e tentei mirar em um dos cavalos, mas eu tremia tanto, que era impossível de mirar em algo. Por trás um dos guardas me agarrou e me jogou no chão foi naquela hora que eu percebi que eu não tinha para onde escapar deles eu tentei contar quantos tinham, mas me perdi quando passe do décimo, eu não tinha como fugir e agora já poderia me considerar um homem morto. Um deles veio com a lança para cima de mim e a única coisa que eu consegui fazer foi pegar um pouco de neve e jogar na direção dele. Ele riu e continuou vindo em minha direção, quando estava bem perto ele levantou a lança e no momento que ia enfiar em mim minha asa direita entrou na frente quebrando a lança dele e o jogando para longe. Todos olharam me assustados, mas quando chegaram perto minhas asas se abriram irradiando uma luz tão forte que parecia que tinha amanhecido, uma energia muito forte saiu das minhas mãos, ela queimava e foi ficando com o formato de uma espada. Na minha mente aquela mesma voz dizia "use-a como você sempre a usou no paraíso Miguel, não tenha medo" e eu não tive, em um único balançar da espada toda a neve virou agua transformando os guardas em cinzas. De dentro da casa o Senhor da Igreja saiu, com o mesmo sorriso e as mãos sujas de sangue ele veio em minha direção como se eu fosse uma divindade.
- Arcanjo Miguel, é uma honra te reencontrar. – Ele reverenciou. – Acredito que sua queda do paraíso não tenha sido como planejado, mas nós já preparamos tudo para o senhor em nossa morada.
- Do que você está falando? - Perguntei a ele.
- Ora, perdoe meus modos, meu nome é Senhor J. e venho aqui a mando da estrela da manhã, seu irmão.
- Eu não tenho irmãos.
- Eu entendo a sua confusão no momento, logo suas memorias estarão de volta e você saberá exatamente de quem eu falo.
- E se eu não quiser ir com você?
- Não é um convite senhor, você deve vir comigo, ou a vila que mora será destruída e o culpado como da última vez será unicamente você.
- Eu não tenho nada a ver com a destruição da outra vila – Gritei o mais alto que pude e minhas asas brilharam mais.
- Como não? Se você não tivesse fugido como da outra vez sua antiga família não teria morrido, igual essa que por sinal era realmente horrível, deixei apenas a pobre mulher viva, a demência já tomou conta da mente dela, então ela morrera por conta própria.
- Eu vou acabar com a sua vida, igual da outra vez!
- Fique à vontade senhor, mas outro virá atrás de você logo, logo.
A raiva me consumia novamente, eu queria acabar com a vida dele naquele momento, ainda mais depois de ter matado a minha nova família. Eu ergui a minha espada e uma energia vermelha escarlate queimou o Sr. J até ele virar cinzas.
Eu soltei a espada que desapareceu logo depois de abrir a minha mão, perdi a força nas pernas e fique de joelhos na terra molhada, aos poucos minhas asas também desapareceram e as lagrimas começaram a sair dos meus olhos, em tão pouco tempo eu perdi duas famílias e por minha culpa, no horizonte eu via o vilarejo sendo tomado pelo fogo não tinha nada que eu pudesse fazer. Meu corpo ficou tão fraco que perdi a minha consciência e apaguei.

Eu acordei em uma cama macia com vários cobertores, o quarto era todo luxuoso, não era a casa da minha segunda família que era bem simples, bem devagar eu levantei e sai do quarto que dava em um corredor, era uma mansão enorme com vários quadros pintados à mão cada um com datas de um ano diferente começando em 1560, no final do corredor tinha uma porta um pouco aberta com uma mulher dentro dela, ela tinha um cabelo loiro brilhante como ouro. Eu a observava dentro do quarto enquanto ela lia um livro.
Depois de alguns minutos a observando ela fechou o livro e me encarou
- Entre Alan, temos muito o que conversar, não é? – Disse a mulher
Eu entrei no quarto, fechei a porta e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ela olhou nos fundos dos meus olhos da mesma forma que fizeram comigo antes, não antes nessa vida, tinha sido antes de eu chegar nesse mundo.
- Não precisa se preocupar, apenas boas pessoas vêm aqui. Sente-se – Disse ela, pedindo para sentar no sofá na frente dela.
- Você, se chama Maria, não é? – Eu disse no automático, o nome dela simplesmente veio na minha cabeça.
- Não mais – Respondeu com um sorriso pensativo no rosto – Da mesma forma que você, eu também tive que mudar de nome, me chame de Ângela por favor.
Naquele momento eu sabia que minha vida estava apenas começando. Aquele não foi apenas meu último natal como humano, mas também foi o meu primeiro natal como um anjo.

Acontece no Natal - Antologia de Contos NatalinosOnde histórias criam vida. Descubra agora