Querida Lyana,Sei que não te escrevo há cerca de um mês, mas tanta coisa aconteceu, assim, de repente, que pensei que fosse apenas um sonho mau, pena que não foi. Eram tantos problemas com que lidar, tanta confusão, que não vi tempo nem paciência pra desabafar contigo.
Infelizmente é a última carta que receberás de mim, a última notícia que terás minha, então contar-te-ei tudo o que aconteceu e tudo o que me levou a decidir o que decidi e a fazer o que farei.
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Como sabes, a minha família é bastante "fechada", diria até antiquada e sabes também que se alguma vez descobrissem sobre o meu segredo, ou iria de imediato para um colégio de freiras, ou arranjariam forma de me transformar à sua maneira, sem olhar a meios, ou aos meus sentimentos.
E esse era o meu maior medo.
Mas não passava disso, de medo, até que, há cerca de 3 semanas, a minha mãe decidiu "dar uma vista de olhos" no meu celular.
A partir desse dia, nada mais voltou a ser o mesmo.
Bem que durante esse dia, eu tinha notado que havia me esquecido dele em casa, mas fiz pouco caso, afinal de contas, eu acreditava que ninguém fosse mexer nele e que quando voltasse da escola, era só pegá-lo e voltar a guardá-lo num local onde não me esquecesse dele nunca mais.
O problema foi que quando cheguei a casa, notei algo de diferente no olhar da minha mãe, algo que me parecia desilusão, tristeza, nem sem bem o quê, mas o medo que eu guardava desde há já 2 anos, parecia ter-se revelado naquela hora.
Uma aflição subiu-me a garganta acima e de repente os meus dedos ficaram trémulos.
Embora tentasse dizer ao meu cérebro que estava tudo bem e que não havia nada com que se preocupar, não era o que eu realmente sentia e pensava.
Perante a situação que se instalara, decidi quebrar o silêncio na sala e dizer pra minha mãe:
- Olá mãe! Tá tudo bem? A senhora parece triste...
Bastou ela ouvir a minha voz, para que uma lágrima solitária descesse pela sua face abaixo,
- Onde foi que eu errei filha? O que foi que eu fiz de mal, pra tu fazeres uma coisa dessas?- e foi nesse momento que o cérebro congelou.
Aquelas palavras, aquele olhar... Ela sabia de tudo, sabia que eu era tudo aquilo que ela não queria que eu fosse, ela sabia que eu gostava... de raparigas, que eu era (e sou) lésbica.
A primeira coisa que me ocorreu na cabeça foi pedir que ela não contasse pra ninguém, principalmente pro meu pai, mas ela disse que algo com essa "gravidade", gravidade essa que só existia na sua cabeça, não podia ser omitida do meu pai e que ambos iriam arranjar uma solução para o meu "problema".
Um desespero atingiu-me em cheio, mas a raiva era superior então respondi de maneira raivosa:
- Pelo amor de Deus! Que problema mãe!? A senhora pode me dizer que problema é que eu tenho? Sério isso!? Nós estamos no século XXI! Já era tempo da senhora, do meu pai e das restantes pessoas que pensam como a senhora evoluírem!- e dito isto, nem esperei por uma resposta. Corri para o meu quarto, batendo a porta com quanta força eu consegui, emitindo um barulho enorme, que provavelmente se ouviu pela casa toda.
E então, depois de me deitar na cama, permiti-me chorar.
Chorar pelos meus pais, que deveriam me apoiar em vez de me acharem uma doente, como se eu tivesse algum problema, como se eu fosse uma aberração.
Este fora o que eu pensei ser o pior dia da minha vida. Pena que eu estava redondamente enganada.
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Oh Lyana, se tu tivesses estado aqui, creio que nem irias acreditar no que se passou a seguir.
Assim que chegou a casa, o meu pai, como de costume, dirigiu-se à cozinha (pelo que eu pude ouvir do meu quarto, que ficava encostado a essa divisão da casa) e a minha mãe, enquanto preparava o jantar, relatava-lhe todos os novos descobrimentos à cerca de mim.
Apenas foi preciso eu ouvir a palavra doente, para o meu coração se despedaçar em mil pedacinhos.
Os meus pais achavam que eu estava doente Lyana, doente!
Nesse dia, nem apareci na cozinha mas também ninguém ousou vir chamar-me pra comer.
Passara-se uns dias em que apenas saia do quarto para ir pra faculdade ou pra ir à casa de banho ou cozinha (quando os meus pais não estavam).
Uma depressão começara a crescer e a consumir-me como o fogo consome o oxigénio. Foi assim, até que certo dia, depois das aulas, aliás, à hora do jantar, a voz da minha mãe soou do outro lado da porta:
- Está na hora de jantar, e nem adianta dizer que não tens fome, eu e o teu pai queremos conversar contigo.
Ao ouvir aquilo, sabia que não havia volta, teria de enfrentar o meu pai.
Então, enquanto calçava as minhas pantufas quentinhas, fui me preparando mentalmente para aquilo que iria ouvir.____________________
Assim que abri a porta da cozinha, o silêncio voltou a instaurar-se, deixando todos envoltos num clima pesado, que foi parcialmente quebrado, pela voz firme e autoritária do meu pai:
- A tua mãe contou-me tudo Diana. Já sei dessa tua ideia descabida de que gostas de mulheres filha, mas quero que saibas que isso não tem fundamento nenhum. Eu criei-te pra seres uma mulher de família, para construires uma vida, teres um bom casamento, filhos, seres avó... Não para andares metida com uma outra mulher. Creio que essa ideia seja algo passageiro, mas tenho medo de que não seja só isso, e como não te quero mandar pra um convento, pois sei que não conseguiria viver todos os dias sem puder abraçar-te e ver-te crescer o que resta, visto que já tens 19 anos, eu e a tua mãe, durante estes dias tivemos a falar com uns amigos nossos que têm um filho mais ou menos da tua idade ou que seja, mais velho que tu um ano ou dois, e propusemos um casamento entre vocês os dois e....
- Espera, O QUÊ!? Um casamento arranjado? Só podem estar a brincar com a minha cara! E os meus estudos? E a minha felicidade, os meus sentimentos? Isso não conta? A minha decisão não é passageira, eu já me decidi vai fazer quase 3 anos! Eu sou homossexual, sou lésbica! Qual é o problema? Vocês deveriam de me apoiar, não de me arranjar um casamento forçado!- disse incrédula.
De tudo o que eu esperava que fosse acontecer, eu nunca pensei nesta possibilidade! Nunca nem me passou pela cabeça que eles fossem ter uma ideia dessas, ainda por cima me casar com alguém que eu nem conheço! Eles só podiam estar a brincar! Ou pelo menos era o que eu queria acreditar.
A voz dele preencheu o ambiente novamente:
- Não me faltes ao respeito! Eu ainda sou o teu pai, e enquanto viveres sobre este teto, quem manda em ti sou eu! Tu vais sim casar-te com o Heitor é não há mas nem meio mas! Estamos entendidos!?
Nem esperei ouvir o resto e saí porta fora, tentando processar toda a informação que me foi passada.
Ainda pude ouvir os gritos tanto da minha mãe, quanto do meu pai, para que voltasse para casa, mas já estava muito longe para regressar e enquanto eles não mudassem os seus ideais pelo menos um bocadinho, eu não voltaria para casa.
Já me conheces há bastante tempo amiga, e sabes que o que eu te estou aqui a contar é a mais pura das verdades.
Quando se enfia algo na minha cabeça, não há algo que a tire de lá.
1310 palavras
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Desalinhada [Completo]
Historia CortaO amor é como um abismo. Se caires, não há como regressares. Aqui escrevo a minha última carta, Lyanna, quero que a leias, mas que não a guardes. Passa-a a quem tu achares que deva ler, porque este envelope contém palavras sentidas e que devem de se...