EPÍLOGO

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3 dias depois da morte

Ricardo sacode a cabeça de um lado para o outro.

— Acho que você está sendo um pouco duro consigo mesmo.

— Não, eu não acho.

— Tudo bem, então — Ricardo se ajeita na cadeira lentamente, as pernas cruzadas, mantendo os olhos fixos nos de Miguel, mostrando que ele tinha toda a sua atenção — Há quanto tempo eu trato... — Ele para por alguns segundos, lambendo os lábios — ... eu tratava, Olívia, você sabe?

— Não muito bem, só sei que a mais tempo do que eu tenho conhecendo ela.

— Há vinte cinco anos para ser exato.

Miguel olha para Ricardo, analisando os fios grisalhos que preenchiam os tufos de cabelo que o psicólogo tinha em formato de ondas pela cabeça.

— Desde nova, Olívia era desse jeito. Não foi sua culpa...

— Mas eu sinto como se tivesse sido — diz ele, com um agudo choramingante na voz.

Ricardo apenas o observa, seu olhar tentando passar tranquilidade para o homem que acabara de perder a mulher. Com total certeza era um momento doloso a ser vivido e ele sabia disso, porém, mesmo tentando compreendê-lo, precisava mostrar que o passado exercia mais culpa na morte de Olívia do que um simples adultério.

— Miguel, olha para mim — o psicólogo toca em suas mãos, mesmo que isso não fosse devidamente apropriado — a culpa não é sua dela ter se suicidado.

— É que eu... Eu poderia ter feito alguma para impedir, não sei!

Miguel tentava controlar as lágrimas, entretanto elas eram mais fortes. Sentia o rosto queimar, o suor escorrendo pelas costas. Tirou educadamente a mão do psicólogo sobre as suas e levantou-se do divã, precisava andar, as pernas não paravam de tremer e tinha de pôr-las em movimento.

— Você lembra do primeiro episódio dela?

Miguel para de repente de andar pelo consultório, encarando Ricardo, o cenho levemente franzido.

— Sim, e daí?

— Se recorda do que eu lhe recomendei?

— Para que eu não jogasse a realidade em cima dela, viajar em seu mundo, ou algo assim?

Ricardo levanta da poltrona e vai até uma bancada de madeira próxima a janela. A incidência da luz clara do dia ressalta a silhueta baixa, porém imponente e parruda do psicólogo.

— Miguel, sua esposa sofria de transtornos delirantes, — relembrou Ricardo com a voz branda enquanto abria uma garrafa de whisky.

— Sim, eu sei, ela era esquizofrênica, tinha TDI...Você me disse isso quando ela nos apresentou, me aconselhou a apenas concordar quando ela tivesse crise, mas você acha que esse problema tem a ver com a morte dela?

— Não posso dispensar a ideia — respondeu o psicólogo levando um copo para Miguel e outro na mão para si — A percepção de Olívia, desde a infância, era debilitada, fazia com que ela visse o mundo como uma bolha de conspiração — Ricardo senta em sua poltrona e toma um gole de whisky — Várias vezes relatava ciúmes seus nas sessões ou que se sentia perseguida por alguém, provavelmente essa foi a causa do suicídio.

A bebida descia quente pela garganta de Miguel, porém ainda mais quente ela ficava enquanto ele escutava as palavras de Ricardo. Compreendia perfeitamente que o psicólogo estava tentando conforta-lo, entretanto, embora tentasse retirar o sentimento, não conseguia se livrar da sensação de culpa.

Ricardo inclina a cabeça para o lado, buscando o olhar de Miguel que viajava pelo chão de taco.

— Não se sinta culpado — repreendeu Ricardo de forma amigável — Você fez muito por ela! Muitos em seu lugar não conseguiriam conviver com uma mulher que uma hora queria ser chamada de Olívia e na outra de Verônica...

— Falando nisso — Miguel senta novamente no divã — No dia que ela morreu, horas antes, eu estava no banho e quando saí encontrei ela mexendo no meu celular. Não a assustei e deixei ela mexer, como você disse para eu fazer: somente relevar tudo — Ricardo balança a cabeça em afirmativa em silêncio, convidando Miguel a continuar — Depois que ela saiu do quarto eu peguei meu celular e vi que estava aberto na mensagem que ela mesmo enviou para mim, marcando encontro no nosso restaurante de sempre. Pela cara dela, naquela hora, era mesmo a Olívia e não a Verônica.

— E o que você fez?

— Disse que teria um compromisso, mas não entrei em detalhes.

— Fez bem — reconheceu Ricardo entre um gole e outro — O caso dela era diferente de tudo que já tratei, essa psicose da qual tinha sempre me intrigou, a despersonalização, a diminuição da memória declarativa, o déficit de inferir a capacidade dos outros, tornando eventos irrelevantes em significativos ao ponto de formentar os delírios ciumento e persecutório...

— Parece que você já faz de propósito - corta Miguel.

— O quê?

— Você sabe como eu fico quando começa a falar esses termos técnicos difíceis... — Miguel olha em direção a sua cintura, mais precisamente na área genital; um volume protuberante marcando a calça jeans —...cheio de tesão.

Ricardo sorri maliciosamente para Miguel, o canto da boca subindo, ressaltando as covinhas próximas ao queixo de barba rala.

Miguel levanta do divã, põe o copo sobre a mesa e desliza o dedo sobre ela lentamente, caminhando a passos teatrais como uma criança indo em direção a árvore de Natal cheia de presentes. Ele fica de frente para Ricardo, coloca as duas mãos sobre o braço da poltrona, encurralando o psicólogo; os olhos dos dois nivelados, ambos conseguindo ler o que a mente um do outro dizia. Ricardo coloca o tronco para frente e encosta os lábios nos de Miguel, alisando seu rosto, seus braços.

— Minha casa, a sua ou aqui mesmo?

— Na minha — responde Ricardo e Miguel dispara em direção a porta.

— Então vamos logo!

— Vai na frente tirando o meu carro do estacionamento que vou arrumar as coisas aqui...

Enquanto Miguel saía da sala, Ricardo ajeitava os papéis que estavam na mesa, alinhando-os. Logo em seguida os colocou na trituradora e observou as lâminas brancas caindo dentro da cesta de lixo, todas as informações sobre os transtornos de Olívia aos poucos indo embora, sendo picotadas, esquecidas, tornando assim a morte dela oficialmente um suicídio, e já que a polícia não poderia associar a doença com a morte e assim, a negligência dele como psicólogo e de Miguel como marido em relação a ela, viraria apenas um amontoado de papel, sobraria apenas o que ele queria que ficasse, nada comprometedor.

Somente ele saberia a verdade, embora não soubesse exatamente de toda. Sempre o intrigou o fato da outra persona se chamar Verônica. Em anos de profissão, estava acostumado a ver que tudo tinha um porquê, nada era por acaso, todavia não conseguiu descobrir quem era Verônica para Olívia e essa verdade, ele nunca ia saber.

Quando terminou de triturar os papéis, pegou sua maleta preta e a colocou sobre a mesa, um cacho louro pendendo para o lado de fora. Abriu-a e arrumou a peruca para dentro, tomando certeza de que nenhum fio ficaria para o lado de fora. Foi até a janela e, antes de fechar a parte de madeira acenou para Miguel do lado de fora, esperando sentado no banco do carona de seu Corsa prata.

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