Capítulo 6: Oportunidade fotográfica

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Poço de Lançamentos E37, Porto, Elementos de BaixoOS aliados improváveis pegaram o transportador goblin no E37. Holly não estava muito satisfeita. Em primeiro lugar, tinha recebido a ordem de trabalhar com o inimigo público número um, Artemis Fowl. Em segundo, o transportador goblin parecia colado com cuspe e orações.Holly prendeu um comunicador sobre a orelha pontuda.— Ei, Potrus? Está aí?— Aqui mesmo, capitã.— Lembre-me de novo o motivo para eu estar pilotando essa batedeira velha.Os pilotos da LEPrecon chamavam os transportadores suspeitos de batedeiras por causa da tendência alarmante de baterem nas paredes do poço.— O motivo para você estar pilotando essa velha batedeira, capitã, é que os goblins construíram este transportador dentro da estação, e as três rampas de acesso original foram removidas há anos. Demoraria dias para colocar um veículo novo aí. Portanto acho que temos de nos virar com a nave goblin.Holly prendeu os cintos de segurança do banco do piloto, que se moldava ao corpo. As alavancas de controle quase pareceram pular para as suas mãos. Por uma fração de segundo o bom humor natural da capitã Short voltou. Ela era um ás dos pilotos, tinha sido a melhor da turma na Academia. Em sua avaliação final, o comandante aviador Vinyáya tinha escrito: A cadete Short poderia pilotar um casulo transportador através do espaço entre os dentes de alguém. Era um elogio que trazia com ele uma alfinetada. Em sua primeira tentativa num casulo, Holly havia perdido o controle e despencou com a aeronave a dois metros do nariz de Vinyáya.Assim, durante cinco segundos, Holly ficou feliz. Depois se lembrou de quem eram os passageiros.— Eu gostaria de saber, se é que você pode informar — disse Artemis, sentando-se na cadeira do copiloto — a que distância o terminal russo fica de Murmansk.— Civis fiquem atrás da linha amarela — rosnou Holly, ignorando a pergunta.Artemis pressionou:— Isso é importante para mim. Eu estou tentando planejar um resgate.Holly deu um riso tenso.— Há tanta ironia aqui que eu poderia escrever um poema. O sequestrador pedindo ajuda para resolver um sequestro.Artemis esfregou as têmporas.— Holly, eu sou um criminoso. É o que eu faço melhor. Quando sequestrei você, estava pensando apenas no resgate. Você jamais deveria correr perigo.— Ah, verdade? Afora as biobombas e os trolls.— Verdade — admitiu Artemis. — Algumas vezes os planos não se traduzem muito bem do papel para a vida real. — Ele fez uma pausa, limpando uma sujeira inexistente das unhas manicuradas. — Eu amadureci, capitã. É o meu pai. Eu preciso de todas as informações possíveis antes de encarar a Máfia.Holly afrouxou. Não era fácil crescer sem pai. Ela sabia. Seu pai tinha falecido quando ela estava com apenas sessenta anos. Há mais de vinte anos.— Certo, Garoto da Lama, escute. Só vou dizer uma vez.Artemis se empertigou no assento. A cabeça de Butler apareceu na cabine. Ele podia farejar uma história de guerra.— Nos últimos dois séculos, com os avanços na tecnologia humana, a LEP foi forçada a fechar mais de sessenta terminais. Nós saímos do norte da Rússia nos anos 60. Toda a península de Kola é um desastre nuclear. O Povo não tolera radiação, nós nunca desenvolvemos resistência a ela. Na verdade, não havia muito o que fechar. Só um terminal Nível Três e dois projetores de disfarce. O Povo não gosta muito do Ártico. É meio frio. Todo mundo ficou satisfeito em ir embora. Assim, para responder à sua pergunta: há um terminal semi-abandonado, com pouca ou nenhuma instalação acima do solo, localizado a uns vinte quilômetros ao norte de Murmansk...A voz de Potrus jorrou do interfone, interrompendo o que estava perigosamente perto de uma conversa civil.— Certo, capitã. Você tem caminho livre até o túnel. Ainda há uns restos de crostas da última explosão, então vá com calma.Holly baixou o microfone para a boca.— Positivo, Potrus. Esteja com os trajes anti-radiações prontos para quando eu voltar. Nós estamos com o tempo apertado.Potrus deu um risinho— Vá com calma no acelerador, Holly. Tecnicamente esta é a primeira vez de Artemis num transportador, já que ele e Butler estavam mesmerizados na descida. Nós não queremos que ele se apavore.Holly acelerou um pouquinho mais do que era absolutamente necessário.— Não — rosnou ela. — Nós não vamos querer que ele se apavore.Artemis resolveu apertar os cintos de segurança. Acabou sendo uma boa ideia.A capitã Short acelerou o transportador improvisado pelo trilho de aproximação magnetizado. As barbatanas se sacudiam, lançando ondas gêmeas de fagulhas cascateando pelas escotilhas. Holly ajustou os giroscópios internos, caso contrário haveria Homens da Lama vomitando por toda a área de passageiros.Os polegares de Holly pairaram acima dos botões turbo.— Certo. Bem, vejamos o que esse balde pode fazer.— Não tente estabelecer nenhum recorde, Holly — disse Potrus pelos alto-falantes. — Esse veículo não foi feito para desenvolver velocidade. Eu já vi anões que são mais aerodinâmicos.Holly grunhiu. Afinal de contas, qual era o sentido de pilotar devagar? Absolutamente nenhum. E se por acaso você aterrorizasse uns Homens da Lama ao mesmo tempo, bem, era só um bônus a mais.O túnel de serviço se abriu para o poço principal. Artemis ofegou. Era uma visão espantosa. Você poderia derrubar o monte Everest nesse poço e ele nem bateria nas laterais. Um brilho vermelho-escuro pulsava do âmago da terra como os fogos do inferno, e os estalos constantes da rocha se contraindo chegavam ao casco como se fossem golpes físicos.Holly acionou os quatro motores de voo, jogando o transportador no abismo. Suas preocupações se evaporaram como os fios de névoa que redemoinhavam em volta da cabine.Era uma questão de ousadia. Quanto mais baixo você fosse sem interromper o mergulho, mas durão você era. Nem a cara feroz do oficial de recuperação Bom Arbles podia impedir os pilotos da LEP de fazer um mergulho no centro. Holly tinha o recorde atual. Tinha chegado a quinhentos metros do centro derretido da terra antes de baixar os flaps. Isso havia lhe custado duas semanas de suspensão, além de uma bela multa.Mas hoje não. Nada de recordes numa batedeira. Com a força ondulando a pele de suas bochechas, Holly puxou as alavancas para trás, levando o nariz do veículo para a vertical. Não sentiu pouca satisfação ao ouvir os dois humanos suspirando de alívio.— Certo, Potrus, estamos subindo. Qual é a situação na superfície?Ela pôde ouvir Potrus batucando num teclado.— Sinto muito, Holly, não estou conseguindo conectar nenhum equipamento de superfície. Há muita radiação da última explosão. Você está sozinha.Holly olhou os dois humanos pálidos na cabine. Sozinha, pensou. Eu gostaria disso.ParisEntão, se Artemis não era o humano que estava ajudando Porrete em sua tentativa de armar os B'wa Kell, quem seria? Algum ditador tirânico? Talvez um general descontente com acesso a um suprimento ilimitado de células de energia?Bem, não. Não exatamente.Luc Carrère era o responsável por vender pilhas aos B'wa Kell. Não que você soubesse disso ao olhar para ele. De fato, nem ele mesmo sabia. Luc era um detetive particular de terceira, bem conhecido pela ineficiência. Nos círculos dos detetives particulares, diziam que Luc não seria capaz de encontrar uma bola de golfe num barril cheio de mozzarella.Porrete decidiu usar Luc por três motivos. Um, os arquivos de Potrus mostravam que Carrère tinha reputação de trambiqueiro. Apesar da incapacidade como investigador, Luc levava jeito para pôr a mão em qualquer coisa que um cliente quisesse comprar. Dois, o sujeito era ambicioso e nunca fora capaz de resistir à atração do dinheiro fácil. E três, Luc era estúpido. E como até as crianças do Povo das Fadas sabem, as mentes fracas são mais fáceis de mesmerizar.O fato de ter localizado Carrère no banco de dados de Potrus bastava para fazer com que Porrete sorrisse. Claro, Urze preferiria não ter qualquer elo humano na corrente. Mas uma corrente composta somente de goblins era uma corrente imbecil. Estabelecer contato com qualquer Homem da Lama não era coisa que Porrete visse com tranquilidade. Por mais que fosse corrompido, Urze tinha plena consciência do que aconteceria se os humanos ficassem sabendo de um novo mercado abaixo da superfície. Iriam invadir o centro da terra como um exército de formigas vermelhas comedoras de carne. Porrete não estava preparado para encarar os homens de frente. Ainda não. Não enquanto não tivesse o poder da LEP por trás.Em vez disso, Porrete mandou a Carrère um pequeno pacote. Primeira classe, correspondência goblin disfarçada com escudos.Luc Carrère tinha entrado arrastando os pés em seu escritório numa tarde de julho e encontrou um pequeno embrulho sobre a mesa. O pacote não passava de uma entrega da FedEx. Ou alguma coisa que se parecia muito com uma entrega da FedEx.Luc cortou a fita. Dentro da caixa, aconchegado num ninho de notas de cem francos, estava um pequeno instrumento chato. Como um tocador de CDs portátil, mas feito de um estranho metal preto que parecia absorver a luz. Luc teria gritado para a recepção e instruído a secretária a não atender a nenhum telefonema. Se tivesse uma recepção. Se tivesse secretária. Em vez disso o investigador começou a enfiar o dinheiro em sua camisa manchada de gordura como se as notas fossem desaparecer.De repente o instrumento se abriu como uma concha, revelando uma microtela e alto-falantes. Um rosto sombreado apareceu na tela. Ainda que Luc não pudesse ver nada além de dois olhos com as bordas vermelhas, isso bastou para fazer suas costas se arrepiarem.Mas, engraçado, quando o rosto começou a falar, as preocupações de Luc escorregaram para trás como pele velha de cobra. Como ele poderia ter se preocupado? Essa pessoa era obviamente amiga. Que voz linda! Como um coro de anjos.— Luc Carrère?Luc quase chorou. Era poesia.— Oui. Sou eu.— Bonsoir. Está vendo o dinheiro, Luc? É todo seu.Cem quilômetros abaixo da superfície, Porrete quase sorriu. Era mais fácil do que ele esperava. Estivera preocupado com a hipótese de o restinho de poder que havia em seu cérebro não ser suficiente para mesmerizar o humano. Mas esse Homem da Lama específico parecia ter a força de vontade de um porco faminto diante de uma gamela cheia de nabos.Luc segurou dois maços de notas.— Este dinheiro. É meu? O que eu tenho de fazer?— Nada. O dinheiro é seu. Faça o que quiser.Bom, Luc Carrère sabia que não existia esse negócio de dinheiro de graça, mas aquela voz... Aquela voz era a verdade num microalto-falante.— Mas há mais. Muito mais.Luc parou o que estava fazendo, que era beijar uma nota de cem francos.— Mais? Mais quanto?Os olhos pareceram brilhar vermelhos.— Quanto você quiser, Luc. Mas para ganhar você tem de me fazer um favor.Luc estava fisgado.— Claro. Que tipo de favor?A voz que emanava do alto-falante era clara como água da fonte.— É simples, e nem é ilegal. Eu preciso de pilhas elétricas, Luc. Milhares de pilhas. Talvez milhões. Você acha que pode conseguir para mim?Luc pensou durante dois segundos. As notas pinicavam no seu queixo. De fato, ele tinha um contato no rio que regularmente transportava cargas de equipamento para o Oriente Médio, inclusive pilhas. Luc tinha confiança de que alguns daqueles embarques poderiam ser desviados.— Pilhas. Oui, certainment, eu poderia fazer isso.E foi assim durante vários meses. Luc Carrère acionou seu contato para pegar cada pilha que ele pudesse conseguir. Era um negócio maravilhoso. Luc encaixotava as pilhas em seu apartamento e de manhã elas sumiam. No lugar havia uma nova pilha de notas. Claro, os francos eram falsos, feitos numa antiga impressora da Koboi, mas Luc não podia ver a diferença. Ninguém fora do Tesouro podia.Ocasionalmente a voz na tela fazia um pedido especial. Algumas roupas de proteção contra fogo, por exemplo. Mas, epa, agora Luc fazia parte do jogo. Nada estava mais longe do que um telefonema. Em seis meses Luc Carrère passou de uma quitinete para um elegante apartamento em St. Germain. De modo que, naturalmente, a Sureté e a Interpol estavam montando investigações separadas contra ele. Mas Luc não saberia disso. Só sabia que, pela primeira vez em sua vida corrupta, estava curtindo adoidado.Num dia de manhã havia outro pacote em sua nova mesa com tampo de mármore. Maior desta vez. Mais grosso.Mas Luc não estava preocupado. Provavelmente era mais dinheiro.Abriu a tampa e descobriu uma caixa de alumínio e um outro comunicador. Os olhos estavam esperando por ele.— Bonjour, Luc. Ça va?Bien — respondeu Luc, mesmerizado a partir da primeira sílaba.— Hoje tenho uma tarefa especial para você. Faça isso direito e nunca mais terá de se preocupar com dinheiro de novo. Sua ferramenta está na caixa.— O que é? — perguntou nervoso o investigador particular.O instrumento parecia uma arma, e mesmo Luc estando mesmerizado, Porrete não tinha magia para reprimir totalmente a natureza do parisiense. O investigador podia ser trambiqueiro, mas não era assassino.— É uma câmera especial, Luc, só isso. Se você apertar esse negócio que parece um gatilho, ela tira uma foto.— Ah — disse Luc Carrère, com olhos lacrimosos.— Alguns amigos meus vão visitar você. Eu só quero que você tire a foto deles. É só um jogo nosso.— Como eu vou conhecer os seus amigos? Um monte de gente me visita.— Eles vão perguntar pelas pilhas. Se perguntarem pelas pilhas, tire a foto deles.— Certo. Ótimo.E era mesmo ótimo. Porque a voz nunca iria obrigá-lo a fazer alguma coisa errada. A voz era sua amiga.Estação de Lançamento E37Holly guiou a batedeira no trecho final do poço. Um sensor de proximidade no nariz do transportador acionou as luzes da plataforma de pouso.— Hmm — murmurou Holly.Artemis forçou a vista através do para-brisa de quartzo.— Algum problema?— Não. É só que essas luzes não deveriam estar funcionando. Não há uma fonte de energia no terminal desde o século passado.— Nossos amigos goblins, imagino.Holly franziu a testa.— Duvido. É preciso meia dúzia de goblins para acender um cubo de luz. Para fazer funcionar uma estação de transportadores é preciso muito conhecimento. Conhecimento élfico.— A trama fica mais complicada — disse Artemis. Se ele tivesse barba, a teria coçado. — Sinto cheiro de traidor. Bom, quem teria acesso a toda essa tecnologia e motivo para vendê-la?Holly apontou o cone do transportador para os nódulos de pouso.— Nós vamos descobrir logo. Só me consiga um traficante vivo, e meu mesmer logo irá fazê-lo abrir o bico.O transportador atracou com um sibilo pneumático, enquanto a gola de borracha do nódulo formava um lacre estanque em volta do casco externo.Butler estava fora de sua cadeira antes que a luz dos cintos de segurança se apagasse, pronto para a ação.— Só não mate ninguém — alertou Holly. — Não é assim que a LEP gosta de agir. De qualquer modo, os Homens da Lama mortos não entregam os seus parceiros.Ela fez aparecer uma planta-baixa na tela da parede. Mostrava a velha cidade de Paris.— Certo — falou, apontando para uma ponte que atravessava o Sena. — Nós estamos aqui. Debaixo desta ponte, a sessenta metros da Notre Dame. A doca é disfarçada como um dos pilares da ponte. Fiquem junto à porta até eu dar sinal verde. Aqui nós precisamos ter cuidado. A última coisa de que precisamos é de algum parisiense vendo vocês saindo de uma parede de tijolos.— Você não vai nos acompanhar? — perguntou Artemis.— Ordens — disse Holly, com um muxoxo. — Isto pode ser uma armadilha. Quem sabe que tipo de coisa está apontada para a porta do terminal? Para sorte de vocês, vocês são dispensáveis. Turistas irlandeses de férias, ninguém vai estranhar.— Que sorte a nossa. Que pistas nós temos?Holly pôs um disco no console.— Potrus colocou o Retimagem dele no prisioneiro goblin. Parece que ele viu este humano.A capitã pôs uma foto na tela.— Potrus conseguiu identificar pelos seus arquivos da Interpol. Luc Carrère. Advogado proibido de exercer a profissão, trabalha como investigador particular.Ela imprimiu um cartão.— Aqui está o endereço. Ele acabou de se mudar para um apartamento elegante e novo. Pode não ser nada, mas pelo menos temos onde começar. Eu preciso que vocês o imobilizem e mostrem isso. — Holly entregou ao guarda-costas o que parecia um relógio de mergulho.— O que é? — perguntou o empregado.— Só uma tela de comunicação. Ponha na frente do rosto de Carrère e eu posso mesmerizá-lo daqui, para arrancar a verdade. Além disso, contém um dos brinquedinhos de Potrus: um escudo pessoal. O Redesegurança. Você vai adorar saber que é um protótipo. Terá a honra de testá-lo. Toque na tela e o microrreator gera uma esfera de dois metros de diâmetro de luz trifásica. Não serve para coisas sólidas, mas para tiros de laser ou choques de concussão funciona.— Hmm — disse Butler, em dúvida. — Nós não temos muitas armas laser acima da superfície.— Então não use isso. O que me importa?Butler examinou o instrumento minúsculo.— Raio de um metro? E as partes do corpo que ficarem de fora?Holly deu um soco de brincadeira na barriga do mordomo.— Meu conselho, grandão: enrole-se numa bola.— Vou tentar me lembrar disso — disse Butler, prendendo o instrumento no pulso. — E vocês dois, tentem não matar um ao outro enquanto eu estiver fora.Artemis ficou surpreso. Isso não acontecia com muita frequência.— Enquanto você estiver fora? Você não acha que eu vou ficar para trás.Butler deu um tapa na testa.— Não se preocupe, você vai ver tudo pela câmera de íris.Artemis fumegou durante vários instantes, antes de se acomodar de novo no banco do copiloto.— Eu sei. Eu só iria atrasar você, e isso, por sua vez, iria atrasar a busca ao meu pai.— Claro que se você insistir...— Não. Não está na hora para infantilidades.Butler deu um sorriso gentil. Infantilidade era uma coisa da qual mestre Artemis dificilmente poderia ser acusado.— Quanto tempo nós temos?Holly deu de ombros.— O que for necessário. Obviamente, quanto antes, melhor, para o bem de todo mundo. — Ela olhou para Artemis. — Especialmente do pai dele.Apesar de tudo, Butler sentia-se bem. Esta era a vida em seu sentido mais básico. A caçada. Não exatamente na Idade da Pedra, já que estava com uma grande arma semiautomática debaixo do braço. Mas o princípio era o mesmo: a sobrevivência do mais apto. E na mente de Butler não havia dúvida de que ele era o mais apto.Seguiu as orientações de Holly até uma escada de serviço, subindo-a rapidamente até a saída acima. Esperou ao lado da porta de metal até que a luz acima mudou de vermelha para verde, e a entrada camuflada deslizou sem ruído. O guarda-costas saiu cautelosamente. Mesmo sendo provável que a ponte estivesse deserta, ele não poderia se explicar dizendo que era um sem-teto, já que estava vestido num terno escuro, de grife.Butler sentiu uma brisa tocar a cúpula raspada de sua cabeça. O ar da manhã estava bom, mesmo depois de algumas horas debaixo da superfície. Ele podia imaginar facilmente como o Povo das Fadas devia se sentir, forçado pelos humanos a sair de seu ambiente nativo. Pelo que Butler tinha visto, se algum dia o Povo decidisse reivindicar o que era seu, a batalha não duraria muito. Mas, felizmente para a humanidade, aquele era um povo amante da paz, e não estava preparado para guerrear por terras.A barra estava limpa. Butler saiu casualmente para a passagem na beira do rio, seguindo para o oeste na direção do distrito de Saint Germain.Um barco passou no rio à sua direita, levando uma centena de turistas pela cidade. Butler cobriu o rosto automaticamente com a mão enorme. Só para o caso de algum daqueles turistas ter uma filmadora apontada na sua direção.O guarda-costas subiu uma escada de pedra até a rua acima. Atrás dele a agulha da Notre Dame apontava para o céu, e à esquerda o famoso perfil da torre Eiffel perfurava as nuvens. Butler caminhou confiante pela rua principal, cumprimentando com a cabeça várias senhoras francesas que pararam para olhar.Ele era familiarizado com essa área de Paris, já que havia passado um mês se recuperando aqui depois de uma tarefa particularmente perigosa para o Serviço Secreto Francês.Seguiu pela rue Jacob. Mesmo a essa hora, carros e caminhões atulhavam a rua estreita. Motoristas montavam nas buzinas, pendurados nas janelas dos veículos, com o humor gaulês a toda. Motonetas se desviavam entre os para-choques, e várias garotas bonitas passaram andando. Butler sorriu. Paris.Ele havia esquecido.O apartamento de Carrère ficava na rue Bonaparte, do outro lado da igreja. Os apartamentos em Saint Germain custavam mais por mês do que a maioria dos parisienses ganhava por ano. Butler pediu um café e um croissant no café Bonaparte, sentando-se numa mesa do lado de fora. Segundo seus cálculos, ela lhe dava uma visão perfeita da sacada de Monsieur Carrère.Não precisou esperar muito. Em menos de uma hora o parisiense atarracado apareceu na sacada, apoiando-se no corrimão ornamentado durante vários minutos. De modo muito solícito, apresentou visões de lado e de perfil de si mesmo.A voz de Holly soou no ouvido de Butler:— É o nosso garoto. Ele está sozinho?— Não dá para dizer — murmurou o guarda-costas atrás da mão.O microfone cor da pele grudado na garganta captaria qualquer vibração e transmitiria para Holly.— Só um segundo.Butler ouviu um teclado sendo digitado, e de repente a câmera de íris seu olho faiscou. A visão num dos olhos passou para um espectro completamente diferente.— Sensível ao calor — informou Holly. — Quente é igual a vermelho. Frio é igual a azul. Não é um sistema muito poderoso, mas as lentes devem penetrar na parede externa.Butler olhou de novo para o apartamento. Havia três objetos vermelhos na sala. Um era o coração de Carrère, que pulsava carmesim no centro de seu corpo cor-de-rosa. O segundo parecia uma chaleira ou talvez um bule de café. E o terceiro era uma TV.— Certo. Tudo limpo, vou entrar.— Afirmativo. Olhe onde pisa. Esse negócio está um pouco conveniente demais.— Concordo.Butler atravessou a rua de paralelepípedos até o prédio de quatro andares. Havia um sistema de segurança com interfone, mas aquela construção era do século XIX, e um ombro sólido no ponto certo fez a fechadura saltar.— Estou dentro.Houve um barulho na escada acima. Alguém estava descendo. Butler não ficou muito preocupado. Mesmo assim enfiou a mão dentro do paletó, com os dedos no cabo da pistola. Não era provável que fosse precisar dela. Até mesmo os rapazes mais arruaceiros davam ampla passagem a Butler. Tinha algo a ver com seus olhos implacáveis. Medir quase dois metros e dez também não atrapalhava.Um grupo de adolescentes apareceu na escada.— Excusez-moi — disse Butler, galantemente ficando de lado.As garotas deram risinhos. Os garotos olharam mal-encarados. Um deles, que tinha só uma sobrancelha e jeito de jogador de rúgbi, chegou a pensar num comentário de passagem. Então Butler piscou para ele. Era uma piscadela peculiar, simultaneamente alegre e aterrorizante. Nenhum comentário foi feito.Butler subiu até o quarto andar sem qualquer incidente.O apartamento de Carrère ficava no canto do prédio. Duas paredes com janelas. Muito caro.O guarda-costas estava pensando nas opções de invasão quando percebeu que a porta estava aberta. Portas abertas geralmente significavam duas coisas: uma, ninguém ficou vivo para fechar. Ou duas: ele estava sendo esperado. Nenhuma dessas opções lhe atraía particularmente.Butler entrou com cautela. As paredes do apartamento estavam cobertas de caixotes abertos. Caixas de pilhas e roupas antifogo apareciam através das embalagens de isopor. O chão estava coberto por grossos maços de dinheiro.— Você é amigo? — era Carrère. Ele estava largado numa poltrona enorme, com algum tipo de arma aninhada no colo.Butler se aproximou devagar. Uma importante regra de combate é levar todo oponente a sério.— Vá com calma.O parisiense levantou a arma. O cabo era feito para dedos menores. De uma criança, ou de alguém do Povo.— Eu perguntei se você é um amigo.Butler engatilhou sua pistola.— Não precisa atirar.— Fique parado — ordenou Carrère. — Eu não vou atirar em você, só tirar sua foto, talvez. A voz me disse.A voz de Holly soou no fone de ouvido de Butler.— Chegue mais perto. Preciso ver os olhos.Butler guardou sua arma, dando um passo à frente.— Veja bem, ninguém precisa se machucar aqui.— Vou aumentar a imagem — disse Holly. — Isso pode arder um pouco.A minúscula câmera em seu olho zumbiu, e de repente a visão de Butler foi ampliada quatro vezes. O que estaria ótimo se a ampliação não fosse acompanhada por uma pontada dolorosa.Butler piscou enquanto um jorro de lágrimas brotava de seu olho.Lá embaixo no transportador goblin, Holly examinou as pupilas de Luc.— Ele foi mesmerizado — decretou ela. — Várias vezes. Dá para ver como a íris ficou serrilhada. Se você mesmerizar um humano demais ele pode ficar cego.Artemis examinou a imagem.— É seguro mesmerizá-lo de novo?Holly deu de ombros.— Não importa. Ele já está sob um feitiço. Esse indivíduo em particular só está seguindo ordens. Seu cérebro não sabe de nada.Artemis pegou o suporte do microfone.— Butler! Saia daí. Agora mesmo.No apartamento, Butler ficou firme. Qualquer movimento súbito poderia ser o último.— Butler — disse Holly. — Ouça com cuidado. Aquela arma apontada para você é uma pistola de baixa frequência e alcance largo. Nós a chamamos de Ricochete, foi desenvolvida para escaramuças em túneis. Se ele puxar o gatilho, um arco de laser amplo vai ricochetear nas paredes até acertar em alguma coisa.— Sei — murmurou Butler.— O que você disse? — perguntou Carrère.— Nada. Eu só não gosto de tirar foto.Uma fagulha da personalidade cobiçosa de Luc veio à superfície.— Eu gosto desse relógio no seu pulso. Parece caro. É Rolex?— Você não quer isso — disse Butler, muito relutante em se separar da tela de comunicação. — É barato. Um lixo.— Só me dê o relógio.Butler abriu a correia do instrumento no pulso.— Se eu lhe der o relógio talvez você me conte sobre todas essas pilhas.— É você! Diga xis — guinchou Carrère, forçando o dedo gorducho no gatilho pequeno e puxando com toda a força.Para Butler o tempo pareceu se arrastar. Era quase como se ele estivesse dentro de um interruptor de tempo pessoal.Seu cérebro de soldado absorveu todos os fatos e analisou suas opções. O dedo de Carrère já estava muito adiantado. Num momento um jorro de laser de alcance largo estaria vindo na sua direção, e continuaria a ricochetear na sala até que os dois estivessem mortos. Sua arma não adiantava nada numa situação dessas. Ele só tinha a Redesegurança, mas uma esfera de dois metros não bastaria. Não para dois humanos de bom tamanho.Assim, na fração de segundo que lhe restava, Butler formulou uma nova estratégia. Se a esfera podia impedir que as ondas concussivas o acertassem, talvez pudessem impedir que elas saíssem da Ricochete. Butler tocou a tela do Redesegurança e jogou o instrumento na direção de Carrère.Menos de um nanossegundo antes da hora fatídica, um escudo esférico brotou, envolvendo o raio que se expandia da arma de Carrère: 360° de proteção. Era uma coisa de se ver, um show de fogos de artifício dentro de uma bolha. O escudo pairava no ar, com raios de luz ricocheteando contra os planos curvos da esfera.Carrère estava hipnotizado com a visão, e Butler se aproveitou da distração para desarmá-lo.— Ligue os motores — grunhiu o guarda-costas no microfone de garganta. — A Sureté vai estar aqui em minutos. A Redesegurança de Potrus não conteve o barulho.— Entendido. E quanto ao Monsieur Carrère?Butler largou o atordoado parisiense no tapete.— Luc e eu vamos bater um papinho.Pela primeira vez Carrère parecia ter consciência do que havia ao redor.— Quem é você? — murmurou. — O que está acontecendo?Butler rasgou a camisa do sujeito, pondo a palma da mão em cima do coração do investigador particular. Hora de um truquezinho que tinha aprendido com madame Vu, sua sensei japonesa.— Não se preocupe, Monsieur Carrère. Eu sou médico. Houve um acidente, mas o senhor ficará perfeitamente bem.— Um acidente? Não lembro de acidente nenhum.— É por causa do trauma. Isso é normal. Eu só vou verificar seu estado.Butler pôs um polegar no pescoço de Luc, localizando a artéria.— Vou fazer umas perguntas, para verificar como está sua concussão.Luc não argumentou. Afinal de contas, quem argumentaria com um eurasiano de mais de dois metros de altura com músculos de uma estátua de Michelângelo?— Seu nome é Luc Carrère?— É.Butler notou o ritmo da pulsação. Um da batida cardíaca, e uma segunda referência da artéria carótida. Firme, apesar do acidente.— Você é detetive particular?— Prefiro o título de investigador.Nenhum aumento na pulsação. O homem estava dizendo a verdade.— Você já vendeu pilhas para um comprador misterioso?— Não, não vendi — protestou Luc. — Que tipo de médico você é?A pulsação do sujeito disparou para o espaço. Estava mentindo.— Responda às perguntas, Monsieur Carrère — disse Butler, sério. — Só mais uma. Você já negociou com goblins?O alívio atravessou Luc. A polícia não fazia perguntas sobre seres mitológicos.— Qual é a sua? Está maluco? Goblins? Não sei do que você está falando.Butler fechou os olhos, concentrando-se nas batidas debaixo do polegar e da palma da mão. A pulsação de Luc tinha se acomodado. Ele estava dizendo a verdade. Nunca tivera qualquer contato direto com os goblins. Obviamente os B'wa Kell não eram tão estúpidos.Butler se levantou, enfiando a Ricochete no bolso. Podia ouvir as sirenes na rua lá embaixo.— Ei, doutor — protestou Luc. — Você não pode me deixar assim.Butler o encarou friamente.— Eu levaria você comigo, mas a polícia vai querer saber por que seu apartamento está cheio do que eu imagino que sejam notas falsas.Luc só pôde olhar de boca aberta enquanto a figura gigantesca desaparecia no corredor. Ele sabia que deveria correr, mas Luc Carrère não tinha corrido mais de cinquenta metros desde as aulas de ginástica nos anos 60, e, de qualquer modo, suas pernas subitamente tinham virado geleia. A ideia de uma longa temporada na prisão faz isso com as pessoas.

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⏰ Last updated: Jan 08, 2018 ⏰

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ARTEMIS FOWL (2° temporada)Where stories live. Discover now