um

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dedicado a minha mãe, que salvou sua irmã do suicídio duas vezes e que nunca desistiu de mostrar o lado bom da vida e também a minha tia, a minha amiga e a todas as outras pessoas que já pensaram em tirar a própria vida.

'um'

    ⁃    GAIA -

Quando percebi que faltavam apenas quarenta e cinco minutos para Eleanor, minha mãe, e Robert, meu padrasto, chegarem apressei os passos em direção à cozinha e peguei as duas caixas de remédio e um copo parcialmente cheio de água em temperatura ambiente.

Minhas mãos magras e pálidas tremeram quando corri em direção ao banheiro e temi que o copo pudesse escorregar delas, abri a gaveta do armário e despedacei o gilete até pegar a lâmina, a ponta do meu dedo indicador recebeu um corte leve do metal, instantaneamente levei o dedo até a boca para conter a fina camada de sangue, meus olhos embaçaram como quando fico sem os óculos. Tirei-os de vez, até constar que minha visão piorou em duzentos por cento, respirei fundo, soltando o ar de uma vez e não vagarosamente como minha psiquiatra ensinara. Coloquei os óculos, segurei a lâmina entre os dentes, caminhei em direção a sacada com o copo em uma mão e as duas caixas de medicamento na outra.

Sentei-me na cadeira que havia colocado ali e senti o vento frio vindo do céu do décimo primeiro andar; mamãe colocou grade há alguns meses por conta de George, meu meio-irmão, o que é quase confortável e menos assustador, altura sempre foi meu pior pesadelo, depois de mim.

Naquele momento eu me sentia tão vazia quanto meu estômago depois de chegar do colégio, a espera do almoço. Não havia dor, não havia sentimentos, não havia Gaia. Eu só estava mais do que disposta a continuar com aquilo.

Quarenta minutos, quarenta minutos e alguns segundos até que eles chegassem, tempo o suficiente para que eu pudesse terminar o que havia desejado e planejado desde manhã, na aula.

Retirei todos os comprimidos do pacote e contei-os um por um com os dedos esguios tremendo e suando frio, senti algo molhar minhas bochechas e neguei o choro com a costa da mão direita.

De alguma maneira meu coração estava acelerado e parecia comandar tudo o que eu fazia, não que eu quisesse mesmo racionalmente continuar com aquilo, porém meu próprio coração parecia tão triste e sozinho que estava disposto a me convencer naquela noite de proceder. Respirei fundo de novo, olhei para minhas unhas comidas até o talo e para as bolinhas amarelinhas nas minhas mãos.

24, vinte e quatro era o número exato de comprimidos de cinquenta miligramas que estava prestes a tomar as oito e vinte e um daquela noite.

Até alguém bater à porta e meu coração acelerar, senti as lágrimas descerem rápidas e enxuguei-as novamente, amaldiçoando com todos os xingamentos a pessoa que me atrapalhou. Pensei em não atender, meu corpo todo estava em choque e eu estava à beira de um colapso. Não iria atender.

Não mesmo.

Corri e rodei a maçaneta.

    ⁃    Oi boa noite! Eu sou o Bernardo, seu vizinho, cujo nome você não conhece, porque nunca respondeu os meus bom dias!

    ⁃    Que merda você está fazendo aqui agora?- funguei e senti meu corpo tremer, limpei o nariz e tentei não parecer desesperada.

    ⁃    Eu estava vendo a merda que você ia fazer pela sacada e decidi fingir vir pedir açúcar para ocupar o seu tempo.

Abri a boca para falar, mas senti como se minha língua estivesse sendo puxada pela minha alma insatisfeita naquele momento. Não podia acreditar naquele absurdo.

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