"O Avião"

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O relógio mostra em letras garrafais, trinta e cinco graus Celsius.

Carros e taxis chegavam e partiam a todo instante em Guarulhos.

Do lado de fora observo o caos no saguão, o que só aumenta minha ansiedade. Trago o cigarro pela última vez, jogo a guimba na pequena caixa de areia escura ao meu lado, e lembro no mesmo instante que serão pelo menos doze horas até o próximo. Sinto o suor escorrendo pela testa. Chiclete na boca. Mochila nas costas.

Uma mistura de vozes, choro, crianças brincando, pessoas correndo, o anúncio de um voo cancelado vindo do alto-falante. Um ir e vir incessante, caos na área de embarque, abraços, despedidas.

Vejo-o olhando aflito a lista com uma infinidade de voos. Partidas, chegadas, números que piscam, mudam, apagam, aparecem. O velho 'All Star' nos pés, calça jeans rasgada, camiseta preta desbotada dos Stones. Lembro exatamente do dia que a compramos.

Hyde Park, Londres, verão de 2013, seu primeiro show da banda.

Um verão londrino que bateu recorde de temperatura. Um mar de gente no gramado.

"Não acredito que você nunca viu os caras ao vivo..."

"Nem eu! Na verdade, eu é que não acredito que estou aqui!"

Ele parece tenso, ainda olhando para a tela, atento, procurando pelo meu voo, roendo as unhas. Sorrio.

"Será que eles vão cantar 'Satisfaction'?"

"Eles sempre cantam 'Satisfaction'..."

"Como você pode ter tanta certeza?!"

"Porque é o carro-chefe da banda. Eles tocam há anos, sempre, em todos os concertos."

"Discordo! 'Start Me Up' é sem dúvidas o maior sucesso deles. Aposto quantos Euros você quiser... A música é um hino!" Ele sorri e me abraça, percebendo que não me convenceu. Seus lábios tocam de leve o meu rosto.

Como ele tem tanta certeza se nunca esteve em um único show?! E ainda fala com tanta convicção, sempre tão seguro e confiante com as suas opiniões? E pior, por que eu sempre caio nos seus encantos, e acabo mudando de ideia?

"Ok. Talvez você tenha razão..."

Ele sorri e continua, "Eles sempre se atrasam? Achei que os britânicos fossem todos pontuais! Já devia ter começado, não?!"

E confere a hora mais uma vez. Passaram apenas cinco minutos do horário informado. Sei que seus óculos escuros escondem um olhar aflito, que vai de mim para o palco, para a multidão, e conferindo o relógio mais uma vez. Ponta dos dedos na boca.

"Para de roer unha!"

"Não consigo! Tô ansioso!"

Ele parece um adolescente! Percebo excitação na sua voz, mas reclamo mesmo assim, "Odeio essa sua mania."

"Para de reparar em mim, e bebe essa 'Guinness'! Vai esquentar!"

"Mas é exatamente assim que eu gosto."

"Ingleses são tão esquisitos..."

Sorrio do comentário. Ele se aproxima, inspira o meu pescoço, beija a minha boca. Retribuo. Toco o seu rosto. Suas mãos me seguram pela nuca, entrelaçando os dedos nos meus cabelos. Me afasto, desconfortável, olhando para os lados. Ingleses não se comportam dessa maneira em público. Ele ainda não percebeu? Mas ele está certo. Somos esquisitos...

Dou um gole na cerveja. Acendo um cigarro.

Verão. Dias longos. Sol brilhando. Vinte e cinco graus. Olho pra ele e sua camiseta recém-comprada, com marcas de dobra, molhada de suor. Também estou derretendo! Confiro as horas. 8:25 PM.

Seus olhos escuros encontram os meus. Olhar jovem, desafiador, displicente, que eu reconheceria entre centenas de milhares de pessoas, em Londres, São Paulo, LA, Marte, no inferno. O oposto do meu.

"Última chamada para o voo 'BA 0246', com destino a Londres, embarque no terminal internacional, portão 3."

Hora do adeus. Silêncio. Coração batendo rápido, boca seca. O corpo dele tão próximo, a menos de um passo do meu. Seus braços, um convite a um abraço. Seguro o impulso de beija-lo. Estamos em local público, cercados por desconhecidos, não seria de bom tom. Odeio despedidas.

Ele toma a iniciativa e me abraça. Penso em recuar. Desisto. Foda-se! O calor do seu corpo me acalenta. Mão na nuca, dedos entrelaçando nos meus cabelos, cabeça no ombro, respiração quente. Sinto o seu perfume cítrico. Ficamos entregues nos braços um do outro. Mais uma vez. Pela última vez.

Gostaria de retribuir. Tudo. O abraço, o toque, a troca, os sentimentos. Não sei o que fazer, como fazer, e continuo imóvel. Maldita confusão de sentimentos.

Ele me dá um beijo rápido e tímido. Sua barba de um dia me arranha. Olhos vermelhos. Cheiro de lima agora na minha pele.

Nos afastamos. Ainda silêncio. Suas mãos agora no bolso do jeans.

Meu coração continua a bater forte, já com saudades, reclamando, sentindo falta dele, do seu calor, do seu corpo sobre o meu, me aquecendo nas noites frias.

'Start Me Up' tocando nos fones. "You make a grown man cry..."


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