Capítulo 2

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O local de encontro escolhido pelo policial foi uma cafeteria localizada na avenida principal, a quatro quadras do consultório, então preferi ir cami- nhando. No caminho, na certeza que daria tempo, observava o movimento dos carros, eu estava andando devagar afinal havia muito tempo livre até chegar o horário marcado.

A cada passo, comecei a ter uma sensação estranha de estar sendo observado, discretamente olhei para todas as direções buscando encontrar alguém, porém não havia nada.

Esse fato me fez lembrar de quando eu era adolescente e fazia o caminho a pé entre minha casa e a escola, estava num processo de busca, obter mais informações sobre minha existência, discordava das histórias que ouvia e muito mais do possível futuro que deveria seguir. Eu não me sentia igual aos outros, queria ser diferente, alguma coisa me dizia para fazer algo novo, sair da ro-


tina diária, sair da caixa que prendia todos. Para muitos, fui considerado apenas um adolescente revoltado ou "aborrecente", todos me julgavam, todos ficavam a palpitar sobre minha vida e sobre minhas escolhas. Eu realmente estava num imenso conflito. Era um período que eu sentia que, independente para onde eu fosse, sempre haveria alguém me observando e me criticando.

De frente para a Cafeteria Doce Mingau, olhei para meu relógio e conforme havia planejado, cheguei com 5 minutos de antecedência, tempo suficiente para entrar, poder me ambientar e aguardar o misterioso policial. Virei para o lado e ouvi alguém me chamar.

— Doutor Nomia. Lembra-se de mim? Eu já fui seu paciente.

Coloco-me a pensar. Quem é essa pessoa? Não me recordo...

— Que cara de espanto é essa, doutor? Pelas minhas pesquisas, devo ter sido o seu décimo segundo paciente, lá bem no início da sua carreira, faz tempo né? Pois saiba que para mim não faz tanto tempo assim.

Assustado e espantado, eu não sabia o que res- ponder! Como assim, ele fez pesquisa sobre meus pacientes? Eu precisava reagir, descobrir algo mais sobre ele.

— Desculpe, realmente não me recordo de você, independente disso, foi bom reencontrar você! Como tem passado, senhor Zana, é isso?

— Doutor, eu não vim aqui para falar de mim, caso fosse, teria agendado uma sessão com você em seu consultório – falou em tom ríspido – além disso, tenho certeza que você irá se arrepender de achar que foi bom se reencontrar comigo. Vim aqui para falarmos sobre você.

Agora fiquei mais pasmo ainda, sem saber o que estava acontecendo. O que tinha para falar de mim, se o motivo do encontro era o Cinzento?

— Então, foi você que ligou lá no consultório, policial? – eu estava tentando obter mais respostas, mas o policial me interrompeu.

— Sim. – respondeu friamente – Na verdade não sou policial, sou detetive, meu nome é Rata Zana, e venho pesquisando sobre o doutor desde o momento em que fui atendido por você.

Eu me questionava o porquê ele estaria querendo saber sobre minha vida. O que teria provocado essa ira nele?

— O doutor que consegue interpretar tudo sobre todos, não está conseguindo identificar onde estou querendo chegar? Vou tentar te ajudar, apesar de você não merecer tal ajuda. Você, doutor, como gosta de se autointitular, pois não é doutor coisa alguma, apenas se acha que é mais inteligente que todos os outros, só porque teve o azar de conviver e ter tutores que eram médicos. Cai na real doutor, você é e sempre será como todos nós, mero ser que está aqui para existir e cumprir seu papel como todos nós fazemos e seus ancestrais fizeram. Por que acreditar que pode ser diferente, que pode salvar o mundo? Salvar-se de quem, de si mesmo? Você é uma piada ambulante! – Rata Zana pausou para respirar.

Durante esse período que ele falava, eu estava totalmente desequilibrado, não estava conseguindo juntar as peças destacadas pelo Rata Zana, afinal o que ele queria de mim, apenas reclamar pelo leite derramado, ou de algo que ocorreu anos atrás?

— Senhor Zana, não me recordo de nenhum momento em que falei com você e demonstrei ser melhor que os outros, acredito que esteja me confundindo com outra pessoa. – tentei interromper o processo de acusações.

— Doutor Nomia, imagine se eu iria me confundir, só conheço um doutor Nomia! Enfim, gostaria de informar-lhe que seu tempo como doutor está por acabar, eu fiquei sabendo que você está sendo procurado pelo Conselho, devido a algumas denúncias realizadas contra a forma como você vem agindo com os demais seres da comunidade. – nesse momento entrei num estado de angústia muito grande, senti meu peito apertando, energias subindo pela minha corrente sanguínea fazendo com que meu instinto de defesa começasse a agir, respondendo com agressividade verbal ou física contra o agressor. Então coloquei em prática todos os meus conhecimentos sobre autocontrole e consegui, com muito sacrifício, manter-me calmo perante essa acusação.

— Cadê o Cinzento, qual informação você tem sobre ele? – queria mudar o foco da conversa e ser mais objetivo na obtenção da informação.

— Ah, claro, o Cinzento, seu paciente, certo? Acredito que ele foi quem denunciou você. Ele era muito legal e tranquilo, mas após buscar ajuda com você, veja no que ele se transformou. Tentar tirar a própria vida? O que você deve ter dito ou feito para ele chegar a tal situação? Nomia, você não irá escapar dessa, ou você some da comunidade para o resto da sua vidinha fútil ou irá vivê-la vendo o sol nascer quadrado. – falou em tom agressivo, não demonstrando qualquer possibilidade de respeito.

Pensei em retrucar, mas resolvi parar e apenas ouvir, pois eu já havia passado por situações em que meus pacientes precisavam colocar tudo para fora, raivas e mágoas retidas em seus corações, o desabafar sempre é uma ótima forma de alívio para as pessoas. Eu apenas não estava muito à vontade, nós estávamos em um local que não era apropriado para esse tipo de desabafo. Nisso, Rata Zana levanta-se e dirige-se à porta de saída.

— Até breve doutorzinho. – disse sorrindo em tom sarcástico e foi embora.

Eu fiquei muito abismado e surpreso com o que Rata Zana acabara de falar, confuso, desorientado, sem saber se deveria me preocupar agora com ele ou com o Cinzento, ou ainda com o COVANASE.

OConselho de Valores da Natureza do Ser (COVANASE) é o órgão que regula osdireitos e deveres os quais podem ser desenvolvidos por nossa comunidade. Écomposto por um grupo seleto, formado a maior parte, por senhores e senhoras deidade avançada. Há uma nova geração fazendo pressão para mudar esse grupo, como intuito de modernizar o Conselho, seus membros, sua estrutura e regras, queconvém dizer, são ultraconservadoras e bem antiquadas para o momento atual. Derepente, senti uma sensação de tontura, minha visão começou a ficar turva, viaas coisas girando a minha frente e aos poucos, tudo se apagou.    

No divã do doutor NomiaOnde histórias criam vida. Descubra agora