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Capítulo VI◆
Sonhos lúcidos


— Hoje eu tive um sonho.
Comentei, ajeitando minha posição sobre o sofá desconfortável da terapeuta. Susan, de 30 anos. Ela levantou o olhar, e puxando o caderninho e a caneta, me perguntou:
— Você se recorda dele?
— Hm... — Balancei a cabeça, confirmando. Me levantei do sofá, insatisfeita, ajeitei as vestes e me sentei no outro sofá, muito mais aconchegante. — Você deveria trocar esse sofá.
— A maioria dos meus clientes gosta dele, eu também.
— Eu detesto, então você deveria trocar.
— Vou pensar a respeito, Lorna. Sobre o seu sonho, que tal falar dele?

Passei os dedos pelo nariz, sentindo a textura de alguns cravos pequenos. Entortei os lábios, olhando para o chão.
— Não sei se quero contar.
— Foi algum gatilho?
— Que palavra estranha, né?
— Você acha estranha?
— Sim.
— Por quê?
— Parece granulada, representa alguma coisa deformada... ou desestruturada, desnivelada? Quando tenho cravos meu nariz também fica assim.
— Sente seu nariz desnivelado?
— Granulado — Corrigi — Já comeu sorvete de flocos? É horrível por conta dos flocos, se fossem cubinhos de chocolate uniformes seria infinitas vezes melhor, mas preferiram raspar tudo e jogar em cima da baunilha sem nenhum critério... é como parece.
— Então você não gosta de coisas granuladas.
— Não.
— Seu sonho te passou a mesma sensação?
— No começo não.
Ouvi o clique da caneta dela, anotou alguma coisa e depois parou, enquanto eu tirava as sandálias e colocava os pés sobre a poltrona.
— O que havia no começo também te incomodava?
Fiquei um tempo calada, pensando se falar faria bem, se me ajudaria do jeito que eu esperava que ajudasse. Esse sempre foi um exercício de infância: nem tudo vai sair como eu quero.
Soltei um suspiro, e me afundei um pouco mais na poltrona excessivamente macia, mas certamente bem melhor do que o sofá de couro.
— Eu estava na praia...


Alguém estava pedindo ajuda de algum lugar, mas eu continuei sentada na areia. Areia também tem uma textura granulada, mas faz sentido já que é areia, sabe? Por isso não me incomoda tanto, está no lugar certo e do jeito certo. Tem coisas que você odeia, mas gosta dependendo da situação.
É algo como decorar a casa para o natal todo ano: uma chatice. Mas você faz porque se não fizer, não tem sentido.

De primeira, acreditei que a voz vinha da floresta, então olhei para ela. Mas quando me virei naquela direção, a voz mudou de lugar, e consegui escutá-la bem ao meu lado, na areia da praia. Fiquei bastante desapontada quando me virei outra vez e não havia uma única alma próxima.

Por conta disso, voltei a olhar a praia. Um detalhe interessante é que tudo parecia bastante real, em especial o vento. Consegui senti-lo bem melhor no sonho, talvez tenha sido só imaginação minha, mas imaginação também são um pouco de verdade para alguém. A casa do Pou estava ali pertinho. Notei que eu estava exatamente onde eu sempre me sentava sozinha enquanto o esperava abrir a porta de casa. Combinamos que eu ia parar de invadir e manhã cedo, mesmo que eu tivesse a cópia da chave. Ele gostava de levantar sozinho, depois das 8 da manhã, então tive que aprender a respeitar isso. Esperei... e esperei um pouco mais. Até ouvir os barulhos de madeira sendo batida e empurrada, era a única estrutura do casebre, e eu entendi porque Pou não se desfazia dele, ou o reconstruía. Apenas não queria, gostava da simplicidade de viver como uma "criatura retrógrada", como as pessoas o chamam. Se eu pudesse (e eu espero conseguir um dia), viveria com ele ali, sem me preocupar em pagar contas ou fazer compras... Não quero dizer que deve ser fácil, mas é simples viver sem almejar as expectativas dos outros sobre você...
Me levantei da areia quando a porta se abriu, e caminhei até lá, escorregando pela pequena duna que se formava naquele ponto da praia diariamente, graças ao vento.
Me aproximei da porta. Estranhamente, Pou não saiu pela porta. Imaginei que tivesse ficado com o casaco preso, então enfiei a cabeça para dentro esperando vê-lo tentando se soltar, desengonçado. Ele não estava ali.
Entrei, deixando a porta aberta, e procurei pela casa, que possuía apenas três cômodos minúsculos: a sala, a cozinha e o banheiro.
Procurei nesses três lugares, e nenhum sinal de Pou. Foi como se tivesse desaparecido, ou pior, como se tivesse se esquecido de existir. Ele sempre diz que às vezes, ele acaba o dia com essa sensação, de que se esqueceu de viver, e isso significava que foi inexistente o dia todo. Sempre me lembra de não ficar desse jeito também, e eu não fico, só porque ele me pede. Pois, pra ser sincera, ocasionalmente, também quero deixar de existir um pouco, que nem todo mundo.

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