Espelho, Espelho Meu.

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Você já conhece essa história ou, pelo menos, pensa que conhece. Porém deveria saber que as coisas nem sempre são tão claras quanto parecem.

Anos antes do desenrolar da trama entre a "Rainha Má" e Branca de Neve, teve início a história de um personagem menor, jamais esquecido, porém a quem ninguém dá o devido valor.

O espelho.

Muito antes do veredito sobre quem seria a mais bela, antes mesmo de tornar-se mágico, presenciou tragédias que o levaram ao seu sinistro despertar.

Foi confeccionado por um famoso artesão, de um grande vilarejo, a mando de um nobre. Todo em cristal e prata, com uma bela moldura de madeira avermelhada, decorada com arabescos dourados. Uma verdadeira obra de arte.

O nobre, duque Hornung, o comprara como presente de casamento para sua noiva, lady Braun, considerada a dama mais bela da região, com a pele muito pálida, translúcidos olhos azuis, cabelos loiros em cachos brilhantes e o corpo roliço com curvas acentuadas.

A presenteou na noite de núpcias e parecia ser o início de uma relação feliz, repleta de encantamento.

No entanto, dali de sua posição aos pés da cama, o espelho presenciou, iluminado pelas chamas das tochas e velas, o início da tragédia.

O duque tinha muitas qualidades, mas seu maior defeito era a ganância e desposar tão bela donzela fez bem a sua vaidade.

Talvez a alimentasse até demais, pois naquela noite, ao consumar o casamento, o nobre posicionara sua esposa de modo que pudesse ver seus reflexos no espelho e olhara apenas para eles.

A chegada do primeiro filho do casal não fora um momento de alegria. O duque assistira com desgosto o crescimento do bebe deformar a curva delicada da cintura de sua esposa, deixar marcas na pele leitosa de seus seios e roubar a graça de seus movimentos.

Nem mesmo o nascimento de um herdeiro aplacou a frustração do nobre ao ver sua esposa perder a aparência jovem.

O cruel e irrefreável passar dos anos trouxeram dor e sofrimento a nova duquesa, sentindo-se cada vez mais abandonada por seu esposo. O peso da idade e das responsabilidades, tanto quanto a falta de carinho, cobravam seu preço. Sua pele perdia a maciez, seus olhos e cabelos o brilho. Sendo continuamente cobrada pelo marido, agredida como punição pelo pecado de envelhecer.

Durante anos suportou as palavras duras e o deboche, convencida de que nada poderia fazer, submissa em seu papel de esposa.

Até que, na fatídica noite, enquanto costurava um manto para o inverno que se aproximava, o duque adentrou em seus aposentos com um forte cheiro de álcool.

O homem que antes a olhara como se fosse uma joia preciosa, agora só lhe tinha desprezo.

Assustou-se ao vê-lo se aproximar, queria fugir, mas o medo a paralisara. Guinchou como um animal ferido, quando a mão forte se fechou em seu braço, a tirando da cadeira e puxando-a até a frente do objeto que mais passara a odiar.

O maldito espelho, agora empoeirado pela falta de cuidado, ainda refletia com clareza a expressão de pânico da mulher, que tentava resistir à violência.

-Olhe para você! - Grunhiu o duque com a voz enrolada pelo álcool. Enquanto a segurava pelos cabelos e forçava a olhar para o espelho. - Me casei com a dama mais bela da região e veja agora o que tenho! É uma velha enrugada e cheia de pelancas!

A duquesa chorava diante das palavras cruéis, sem forças para resistir à violência sofrida.

-Do que me serve uma gorda desleixada como você? - O homem continuou seu ataque, inquirindo enquanto a sacudia, jamais deixando que desviasse o olhar de seu reflexo.

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