Antônia leva Maurício até uma casa velha, no meio de um campo; se parece até com a casa dele. Os donos devem estar fora. Agora que os dois pararam de caminhar, Maurício começa a sentir frio. Antônia vai até um barracão atrás da casa e deixa o garoto só.
A casa de Maurício é um sobrado. Aquela ali não tem segundo andar, mas deve ser ainda maior que a sua, levando em conta o tamanho do térreo. É de tijolo, mas a varanda foi feita com madeira, talvez bem depois do resto da casa, e pelos próprios donos.
- Essa casa é dos pais da Mariana - diz Antônia, voltando do barracão. - Ela é uma conhecida. Os pais dela tão na feira.
Ela traz uma pá. Pede que Maurício traga o saco, que foi deixado no chão, e os dois vão um pouco longe da casa, até uma área com mato um pouco mais alto.
Os dois estão sozinhos. O céu fechado e frio espanta até os insetos. Antônia desfaz o nó que fecha a boca do saco e puxa o tecido pelo fundo, pondo o conteúdo do saco para fora. O corpo duro de um cachorro.
- É um pitbull - diz Maurício. Lembra-se de ver muitos cães assim quando criança.
- O nome dele é Gigante. É mestiço. Não sei com qual raça.
- "Gigante". Ele não é tão grande.
- Nem tão bravo.
Antônia pega a pá e cutuca com ela vários lugares no chão. Aquela área tem solo macio. Há alguns galhos secos de plantas empilhados por ali. Devem ter sido arrancados do solo recentemente.
A ponta da pá entra com vigor no chão. Antônia raspa a ponta da pá ao longo do solo, marcando um retângulo em volta do ponto de terra fofa que encontrou. Começa a cavar.
- Tava cuidando dele - diz Antônia. - É novinho o cachorro, pode ver. Fosse adulto, eu não aguentava carregar não. Tava doente, infecção. A gente achou que ele fosse aguentar.
Maurício, agachado, examina o corpo do cão. As patas frontais estão com manchas pretas e caroços. Pus seco. Tenta erguê-las pra olhar melhor, mas estam duras.
- Era seu?
- Não. - Antônia responde entre uma escavada e outra - Eu achei ele. Levei pra Mariana. Lá na cidade. Ela tem uma casa alugada onde a gente cuida de bicho abandonado. Eu, ela, a irmã dela e um amigo lá das duas.
Maurício se senta no chão, ao lado do cão morto.
- Tem dezenove... Agora tem dezoito - continua Antônia - Dezoito cachorros lá. Tem uma meia dúzia de gatos também. Só que os gatos vêm e voltam, não gostam de ficar lá presos não.
Ela tira cada vez mais terra em cada escavada. Os movimentos ficam mais demorados.
- O pessoal vem pra cá montar sítio - Antônia continua -, pega cachorro, qualquer raça brava, e põe lá. Nem por querer criar. Só pra pôr de guarda mesmo. Depois larga. Dá comida, mas não cuida. O bicho dorme na grama, no frio. - Antônia para um instante, seca a testa no braço, e volta a cavar - E se o cachorro for manso, não serve, jogam no mato. Pra ele se perder e ficar lá.
Maurício levanta. Vai chegando perto do buraco que surge junto a Antônia. Ela sabe perfeitamente o que faz. Parece a irmã dele quando conserta as coisas da casa. As duas fazem tudo sem pensar no que fazem, como se o corpo agisse sozinho.
A irmã de Maurício nunca gostou de gente como Antônia chegando perto dele. Mas se ela soubesse o quanto as duas são parecidas, que Antônia não faria mal a ele daquele jeito, sua irmã não a temeria assim.
- Ninguém chega perto desses cachorros - Antônia fala - Todo mundo tem medo de pitbull, de cão bravo. É cachorro do mato, doente, feio. Não é mais filhotinho. Não obedece ninguém. Ninguém quer. Eu vou, levo comida, chamo eles...
Antônia finca a pá no chão e se apoia nela. Olha pra baixo. A voz está ofegante. Talvez não exatamente ofegante. Está estranha.
- Deixa eles lá. - Ela murmura. - Um bicho bravo assim não precisa de ninguém. Só sabe morder. Deixa ele só que ele se vira...
Maurício puxa o cabo da pá em que ela se apoia. Antônia se assusta de leve. Foi meio sem jeito, perdão. O garoto pega a pá e começa a cavar. É assim que se faz? Será que ela quer mais fundo?
O montinho de terra que Antônia já havia tirado do buraco serve a ela de assento. Maurício está jogando a terra para outro lado, agora. É pra fazer uma cova de uns sessenta centímetros, ela pede, mais que isso o solo é duro demais. E ele cava. Cada enfiada de pá é mais jeitosa que a anterior. Maurício nunca precisou mexer com essas coisas antes. Porém, quanto mais ele vai fazendo, mais pega o jeito.
Antônia tinha abrido a jaqueta quando sentou. Agora já a tira do corpo e põe no colo. Maurício pensa em tirar sua blusa de lã também. Está bem frio, mas os dois suam por causa do esforço.
- Quem fez essa blusa? - Antônia pergunta, assim que Maurício para pra tirá-la.
- Minha irmã... - Maurício resolve falar no momento em que puxa a blusa pela cabeça, e uns fiapos de lã entram na sua boca.
- É ela quem faz tudo na sua casa, né?
É, sim.
Antônia continua, antes que ele decida se responde em voz alta:
- Não espere que eu faça tudo em casa quando nós casarmos. Acho que eu vou trabalhar fora. E você também. Ou então você vai cuidar da casa.
Maurício pensa na ideia. Olha então para ela.
- A gente vai morar com os cachorros? Os gatos?
- Sim. Com quantos a gente conseguir cuidar. Se a gente tiver dinheiro.
Ele volta a cavar. Falta metade do buraco ainda. É mais demorado que parecia. Maurício está bem cansado pra falar muito, mas pergunta:
- A gente consegue cuidar de... Dezoito cachorros?
Antônia ri.
- Claro que não. A Mariana e o pessoal lá também não vão mais conseguir cuidar deles sem mim. Talvez eles morram.
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Achocolatado para Alienígenas
NouvellesO garoto está sempre ali, sentado na grama do pasto, esperando por um encontro com os alienígenas. Mas quem ele encontra primeiro é Antônia, a maior brigona da vila. Antônia quer uma coisa que só esse garoto pode lhe ajudar a conseguir - ainda que...