1 - Impetuosa

33 2 0
                                    

A fúria na voz de Jo Calloway era como fogo arrastando-se sobre o auditório lotado. Fogo contagiante, fecundo, inquieto. Refulgente como a cor de seus cabelos ruivos, que emolduravam o rosto ardente e desciam em espirais sobre os ombros até a cintura. Veemente como seus olhos verde-oliva que irradiavam entusiasmo e convicção. Observando-se, o homem perguntou-se de onde viria toda aque­la fúria.

Procurando manter-se discreto entre o público atento, ele reparava que havia subestimado a mulher que vinha lhe dando tantas dores de cabeça. Esperava encontrar uma baixinha gorda com uma voz estridente e modos bruscos. Havia sido alertado de que ela era perigosa. Mas ninguém lhe contara que era tão bonita.

Jo não o notara sentado entre as pessoas que apoiavam sua causa. Mas, mesmo que reparasse nele, era pouco provável que pudesse reconhecê-lo. Ele desenvolvera a habilidade de misturar-se à multidão para passar despercebido. O anonimato às vezes era importante para manter sua sanidade mental. E não era tarefa difícil, principalmente quando encontrava-se fora de seu meio habitual. Bastava esconder-se atrás dos óculos escuros de aro marrom e pentear para trás os cabelos negros que, nas fotos, apareciam sempre revoltos. O disfarce com-pletava-se com uma velha camisa de flanela que mantinha-se em seu guarda-roupa havia onze anos, uma calça jeans e os ténis de dez dólares de que não tinha coragem de desfazer-se, apesar de estarem gastos de tanto uso. Tudo o que precisava fazer, na verdade, era ser ele mesmo. Já que ninguém o co­nhecia pelo que era de fato, podia ir a quase todos os lugares que quisesse sem ser perturbado. Até mesmo a um comício daquela ferazinha que queria derrubá-lo a seus pés.

Mas confessava que sentia-se preocupado ao ouvir a voz vibrante hipnotizar as trezentas pessoas no auditório. Ela era boa para lidar com as massas; tinha que admitir isso. As prob­abilidades pareciam todas contrárias ao sucesso de um grupo de cidadãos que pretendia aprovar no Congresso um projeto de lei instituindo a censura às letras de músicas de rock nos Estados Unidos. No entanto, ela parecia ser o tipo de pessoa capaz de desafiar as probabilidades, passando por cima da Constituição, do direito de livre expressão ou da própria de­mocracia. Sem dúvida, poderia alterar o curso de uma carreira profissional. Isso o assustava e, por esse motivo, decidira ouvi-la de perto.

— Estamos falando do tipo mais destrutivo de lavagem cerebral neste país. — Ela colocou a agulha da vitrola sobre o disco que girava no prato. — Esta música chama-se Jorrando, com autoria de E.Z. Ellis. Enquanto escutam, decidam se que­rem seus filhos cantarolando isso por aí. — Fez uma pausa, enquanto a canção, primeira colocada nas paradas de sucesso por cinco semanas consecutivas, ecoava no possante sistema de som. — A letra é sugestiva e muito clara. Se temos o direito de censurar programas de televisão neste país, por que não podemos censurar música? Será que nossos filhos são me­nos prejudicados pelo que ouvem do que pelo que vêem?

Aplausos encheram a sala. Incentivada pela receptividade do público, Jo atirou para trás os longos cabelos ruivos enca­racolados e dirigiu-se ao retroprojetor montado em um dos cantos da sala. Parou diante da luz do aparelho por um momento como um espírito flamejante exigindo respeito e ad­miração.

Na plateia, o homem imaginou se o efeito visual teria sido ensaiado diante do espelho. Sem dúvida, fora copiado de alguns dos shows de rock que ela tanto deplorava.

— Mas isso não é o pior — prosseguia Jo Calloway. — Há outras músicas mais perigosas, com letras que podem cor­roer tudo que um pai esforçou-se para ensinar ao filho e causar danos irreparáveis. — Ela saiu da frente da luz e a letra de outra canção surgiu na tela.

Irritado, ele observou a forma como ela tirara as palavras do contexto da música e as exibia como se fossem uma prova decisiva em um julgamento de assassinato.

JO - Quatro Destinos 2Onde histórias criam vida. Descubra agora