II

79 14 9
                                        


Pendurada na proa, observando atentamente o infinito azul à minha frente, sinto o navio mover-se devagar, lentamente arrastado pela brisa fraca. Nesse ritmo, vamos demorar o dobro do tempo para chegar ao nosso destino. O Deus dos Ventos prefere trabalhar à noite e descansar quando o Sol queima forte o céu e, com sorte, diminuiremos essa distância quando a Lua reclamar o que é seu por direito. Apenas mais alguns dias e estarei a ponto de fazer história.

- Capitã – ouço a conhecida voz do Imediato me chamar. Suspiro. Essa viagem estava calma demais para ser verdade. Levanto-me e me dirijo à sua direção. Caminhamos em silêncio enquanto ele me leva ao último andar do navio. Descemos os quatro lances de escada, desviando daqueles que cumprem suas tarefas diárias, até chegarmos ao compartimento destinado ao armazenamento de comida.

Ele abre a porta e me indica o interior do cômodo. Sem que uma palavra precise ser dita, entendo o problema. O estoque está muito abaixo do que deveria, dado o tempo passado desde nossa última parada.

- Tem comida suficiente para mais um mês de viagem – constato. Terá que ser o suficiente. – Diga ao cozinheiro que entre em racionamento parcial. Não há necessidade de fazer com que a tripulação passe fome, vamos apenas cortar os excessos. – Aponto para os tonéis. – Distribua essa cerveja. Encha seus estômagos com líquido.

Ele concorda com a cabeça e deixa o cômodo, me deixando sozinha em meio à farinha de aveia, manteiga e carne podre.

Ele concorda com a cabeça e deixa o cômodo, me deixando sozinha em meio à farinha de aveia, manteiga e carne podre

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


Decido jantar com a tripulação essa noite. Tenho passado todos os fins de tarde trancafiada em minha cabine, estudando os manuscritos antigos, debruçando-me em na tentativa de adquirir o máximo de informação possível do nosso destino desconhecido.

Não se sabe muito sobre o paraíso aquático perdido. Atlântida é descrita como um El Dorado submarino, cercado por toneladas de água após seu colapso. A antiga ilha, submergida durante o dilúvio, era composta por uma sociedade próspera. Rica. Chão de mármore, paredes de ouro, espelhos feitos de diamante. São muitas as lendas.

E a cidade tem um segredo. Um tesouro em particular, que ninguém sabe o que é. É descrito em todos os textos como a maior riqueza já tocada pelas mãos de uma pessoa. Um artefato mágico, místico, recoberto por mistérios, que muda para sempre a vida de seu portador.

Como pode, um pirata que se preze, virar as costas para a oportunidade de obter tamanha raridade?

O burburinho no cômodo deixa claro o quão alheios estão aqueles homens aos possíveis perigos que podem ser enfrentados. Afinal, não é apenas de riqueza que se constitui a cidade perdida.

Monstros fantasiosos, serpentes gigantes. Até mesmo sereias possuídas por uma força maligna estão listadas entre os perigos a serem enfrentados para entrar no local. A verdade é que encontrar Atlântida é o menor dos problemas. O mais difícil será sobreviver às suas artimanhas.

Lembro-me do último texto lido, duas noites atrás. O relato de um pescador, entregue à loucura, recitando frases sem sentido em uma língua confusa, ainda que compreensível. Ele fez menção à guardiões. Forças sobre-humanas que impedem a entrada de almas não dignas em território sagrado. Não havia quaisquer descrições desses tais guardiões, contudo. Um arrepio percorre minha espinha quando considero as opções. Nenhuma delas é especialmente convidativa.

Decido deixar de lado as preocupações; nenhum bem será feito se minha mente estiver ocupada com problemas desconhecidos quando a hora chegar. Apenas mais alguns dias. Mais alguns dias e vou saber com certeza com o que terei que lidar. E, então, me preocupo em solucionar os problemas que surgirem.

Ergo minha cabeça e percorro o olhar pelo grande salão, impregnado com gordura e sal, o cheiro de cevada contaminando o ambiente. Meus olhos travam na grande figura do homem que me encara no outro lado do salão. Muitos dos homens aqui me encaram em silêncio, e posso ouvir seus pensamentos gritantes em minha direção. Mas é o olhar de Samuel que capto em meio à multidão. Ele me olha, em silêncio, aguardando uma ordem. Indico com a cabeça e ele prontamente atende, começando a se mover, afastando-se da multidão.

Preciso mesmo de uma distração essa noite.

Quando chego à minha cabine, ele já está me esperando. Sem que nenhuma palavra seja dita, ele me enlaça pela cintura.

Mas antes que eu possa sentir o gosto de seus lábios contra os meus, um barulho ecoa por todo o navio. A pancada inesperada faz com que eu caia ao chão e traga Samuel comigo. A gritaria desenfreada alerta para a gravidade do problema.

Rapidamente deixo a cabine e subo às escadas, dois degraus de cada vez. Uma rocha, uma grande rocha, surgida do nada, alta como uma montanha, larga como um navio, atravessa a proa, que começa a tombar. Corro até a borda, apenas para ver os andares inferiores perfurados, água adentrando os compartimentos, forçando o navio para baixo.

Os mastros se partem, colapsando sobre a estrutura da madeira que não apresenta qualquer resistência, e se parte. Homens caem pelas laterais do navio, outros são atingidos por estilhaços que voam para todos os lados. A pólvora estocada à popa do navio provoca uma explosão que condena de vez a já frágil estrutura do navio.

Gritos desesperados e ordens disfuncionais inundam o convés em um cenário apocalíptico enquanto afundamos todos em direção à morte.


(893 palavras)

A Cidade do Fim do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora