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Sinto os respingos de água fria batendo em meu rosto enquanto o navio atravessa o mar revolto, como uma faca afiada atravessando a densa camada líquida, desafiando a resistência das ondas. As velas batem violentamente no mastro, o pesado tecido se enrolando e esticando em suas próprias cordas pelo vento agressivo que corta o convés como um assobio de morte.

Deformada pelos movimentos irregulares, a caveira rachada bordada em branco, contrastando com o tecido cor de sangue, faz a bandeira presa ao mastro central parecer particularmente mortífera. Fora cuidadosamente desenhada e confeccionada para anunciar a completa falta de esperança que recairia sobre aqueles que cruzassem o caminho do velho Maas Arnpos. Companheiro antigo, esse navio já enfrentou situações inimagináveis pelos cinco mares. Conhecido silencioso de todas as tropas, não há quem se atreva a cruzar seu caminho propositalmente. E os que fazem, arrependem-se até o último segundo de suas miseráveis vidas.

Ajusto o chapéu que escorrega por meus cabelos revoltos pelo vento e, segurando firme a um poste, observo minha tripulação. Conheço a nome cada um dos homens daquele navio. Foi com muito sangue derramado que sua lealdade foi conquistada. A primeira tripulação de piratas comandada por uma mulher. Ah, nosso grupo desperta o interesse de muitos aventureiros desaviados. Desconhecidos de terras distantes que não aceitam o fato de aquele grupo de homens sanguinários ter escolhido uma garotinha para comandá-los. Os pobres coitados sequer sabem o que os atingiram quando seu último suspiro é extraído de seu corpo sem qualquer piedade. Meus homens não lidam muito bem com intrusos se metendo em nossos assuntos particulares. E faço questão de recompensá-los muito bem por isso.

Posso quase ouvir o barulho das moedas de ouro pela câmara sob os meus pés, um nível abaixo, escondida e trancada, cercada por firmes portas de madeira, impedindo a entrada de curiosos mal-intencionados. Os finos tecidos roubados do cargueiro que seguia rumo às Índias. Os potes de especiarias raras a serem vendidas a preços indecentes quando atracarmos no próximo porto. Em pouco tempo, precisaremos retornar ao nosso ponto de origem para descarregar. Quase não há mais espaço livre nos compartimentos para peças roubadas. Não vejo a hora de eu mesma desfrutar dos prazeres escondidos nos torrões de açúcar e pedras preciosas que foram tão brutalmente arrancadas das mãos decepadas de seus donos.

Desviando de tonéis jogados a esmo, caminho em direção à escada que me leva à área comum. Ouço os gritos distantes vindos do Mestre, um homem de meia idade que há muito perdeu seus cabelos e exibe uma careca exuberante que contrasta muito bem com seu farto bigode. Ele está fazendo um trabalho perfeitamente satisfatório comandando seus homens – meus homens – em suas funções no percurso turbulento que estamos enfrentando. Essa área é conhecida por mares revoltos e ondas traiçoeiras; o risco de morte triplica nesse trecho há muito ignorado por embarcações cautelosas.

Cautela nunca dirigiu ninguém à vitória.

Estamos muito perto de fazer história e me recuso a voltar atrás agora.

A caminho de minha cabine, pego uma porção de carne de porco salgada e biscoitos duros roídos que serão perfeitamente embebidos no cantil de cerveja que me espera em minha cama. O percurso é curto e logo estou perfeitamente acomodada em meus aposentos. Tranco a porta atrás de mim e me viro, apenas para de deparar com Samuel curvado sobre o mapa que repousa pacificamente sobre minha mesa. O Homem das Armas tem consigo sua tão querida adaga, presa ao seu cinto como uma faca inofensiva que já ceifou incontáveis vidas.

O homem de porte robusto vira-se em minha direção, sua farta barba cobrindo grande parte de seu rosto, as grossas madeixas pendendo por sobre sua bandana. É com uma reverência que me recepciona e não posso evitar revirar os olhos para ele.

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