Olhou mais uma vez para as cartelas de comprimidos em sua mão, depois para o espelho na sua frente. Mais uma vez, odiou sua existência e tudo que ela havia trazido.
Odiou o fato de nunca ter tido alguém pra chamar de pai, odiou a desgraça que seu nascimento havia trazido para sua mãe, odiou o fato de nunca ser um bom filho, de nunca ter trazido nenhum orgulho, apenas desgosto.
Odiou o fato de ser fraco, frágil, quebrado. Incompleto. Insuficiente.
Odiou todas as vezes que deveria ter feito algo e não fez, todas as vezes que deveria ter dito algo e não disse, por medo. Odiou ser tão covarde, tão imbecil, tão... Ele.
Lembrou de todas as palavras que recebeu desde o dia que sua mãe viu as marcas em seus pulsos. Todas as coisas ruins, todos os xingamentos, todos os julgamentos.
"-Você não tem motivo para fazer isso. Você tem tudo. Casa, comida, roupas, uma família. Você não pensa em todas as outras pessoas que não têm nada? Deixe de ser tão ingrato.""Isso é só para chamar a atenção." Essas foram as únicas palavras de "conforto" que recebeu após sua primeira tentativa de suicídio. Nenhuma ajuda. Nenhuma mão estendida.
A partir desse momento, começou a se isolar. Não falava com quase ninguém, e passou a ficar apenas em seu quarto, lendo ou ouvindo músicas, e saía apenas para os afazeres de casa ou para ir à escola. Sua mãe apenas reclamava que ele não participava da família, que ele não fazia por merecer o que tinha.
E ele se sentia culpado, muito culpado. Por não suportar, por ser fraco, por ser ingrato. Mas o que podia fazer? Sair da cama todos os dias era um esforço imenso, e cada passo que dava fora do quarto pesava em suas costas.
Lembrou de todos os comentários de seus colegas, por estar sempre com olheiras, sempre cansado, sempre na dele. Mas a verdade é que o peso de tudo que ele guardava acabava com ele, é ninguém via. Se preocupavam apenas em julgar e apontar dedos, rir. E ele internalizou tudo aquilo.
Depois da primeira tentativa, vieram outras e outras, sempre silenciosas, até que ele pensou que o universo o odiasse por não deixá-lo acabar com isso de vez. As marcas em seus braços eram cada vez mais fundas, mais irregulares, até não sobrar mais espaço e ele passar para as pernas, num desespero de tirar todo o sofrimento. Ele esperava que a dor escorresse junto com o sangue para fora de seu corpo, mas ela nunca ia embora, como um lembrete de como era a sua vida.
E ele se cansava cada vez mais, desistia mais a cada dia que passava. Até que ele apareceu. Com seu jeito extrovertido, brincalhão, engraçado. Totalmente seu oposto. E eles se aproximavam cada vez mais, até o pedido de namoro, e desde aí não se separavam mais. Ele tentava a cada dia se livrar de tudo isso, tentava ser feliz, tentava ser melhor para o namorado.
Seu namorado era sua fuga, seu refúgio, sua válvula de escape. E por muito tempo, ele achou que estava tudo bem. Que finalmente havia acabado, que ele seria normal. Mas as coisas não são como esperamos, e isso não acabou. E outra vez, os demônios voltaram, as vozes voltaram, Ela voltou.
E isso acabou com ele. Suas forças acabaram, e nem mesmo seu namorado era capaz de apoiá-lo, de ajudar. E até mesmo ele cansou, desistiu.
"Você é doente. É por isso que ninguém fica com você, porque ninguém suporta esse peso que é namorar com você." Essas foram as últimas coisas que ouviu, antes do garoto fechar a porta com força, o deixando deitado no chão da sala, com Ela.
-Eu disse a você. Ninguém fica. Por que achou que aquele garoto ficaria com você? Ele merece coisa bem melhor que você. Por que não acaba de vez com a sua existência miserável? Por que não dá paz a todos? Vai ser rápido, é o melhor para todos.- Ela sussurrava em seu ouvido.
Talvez fosse punido em outra vida, ele não sabia. Mas talvez a punição fosse melhor do que ter que lutar contra todos os seus demônios, contra aquela voz que sempre dizia coisas horríveis em sua cabeça. E no fim, Ela sempre estava certa. Ele realmente nunca foi bom, nunca foi o suficiente. Ele era apenas um peso para todos.
Juntou o pouco de forças que ainda tinha, tremendo por estar a tanto tempo sem comer, e subiu vagarosamente as escadas até ao banheiro. Pegou as cartelas de anti-depressivos no armário, encarando seu rosto no espelho.
-Você venceu. Vocês todos venceram.- Disse, olhando os cortes em seus braços uma última vez.
E tirando todos os comprimidos das cartelas, colocou todos na boca, engolindo com um pouco de água, e se sentou no chão frio, sentindo seu corpo cada vez mais mole.
A última coisa que ouviu foi a gargalhada Dela, enquanto seu coração aos poucos parava de bater.
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⚜️Escape⚜️
Cerita Pendek"Talvez fosse punido em outra vida, ele não sabia. Mas talvez a punição fosse melhor do que ter que lutar contra todos os seus demônios, contra aquela voz que sempre dizia coisas horríveis em sua cabeça."