O hotel

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Miguel dirigia lentamente pela BA-001 encharcada pela chuva. Olhou para o relógio e percebeu que não conseguiria pegar o último Ferry Boat. O relógio já apontava para a chegada de um novo dia. 23h40. Estava se aproximando da Ilha de Itaparica, e precisava encontrar um bom lugar para passar a noite.
Após uma curva fechada seu desejo foi atendido. Uma placa mal iluminada com o dizer “Hotel” surgira à sua frente. Não foi necessário diminuir muito a velocidade para estacionar seu carro à entrada do Hotel.
Desceu do carro e agradeceu pela chuva cessada naquele momento. Com passos largos passou por uma porta e entrou numa salinha com um balcão de madeira e um papel velho na parede escrito “Recepção”. Ele ficou ali parado procurando alguém aparecer, mas o lugar parecia inabitável.
- Tem alguém aí? – gritou.
Não obteve resposta. Gritou mais uma vez.
Fitou os próprios pés desanimados. Então ouviu um som de passos e quando olhou para frente novamente tomou um susto ao ver um homem bigodudo bem à sua frente. Seu coração disparou enquanto tentava pronunciar alguma palavra.
- Boa noite – cumprimentou o bigodudo num tom triste e desanimado.
Miguel demorou a responder, ainda tomando o fôlego perdido instantes atrás.
- Boa noite – disse, enfim. – Preciso de um quarto.
O homem continuou olhando sério para ele, enquanto Miguel sentia um desprezo pelo bigode sujo do homem. E começou a ficar impaciente ao ver que o homem ficara mudo.
- Está me ouvindo? – Miguel insistiu.
O velho assentiu com a cabeça e virou-se. Puxou uma chave entre tantas penduradas por pregos na parede, voltando a ficar de frente logo em seguida.
Estendeu a mão com a chave e Miguel puxou a chave para si. Ele falara algo a ver com o número do quarto, mas Miguel não ouvira corretamente, porque estava entretido com seu nojo sobre a chave oleosa que segurava nas mãos.
- O que disse? – perguntou Miguel, olhando atentamente para o homem. – Quarto 06?
- Não, senhor! – retrucou o homem num desespero desnecessário. - Quarto 16!
Miguel quase chegou a se intimidar, se não fosse pela cara de demente que o bigodudo possuía.
- Está bem – disse.
O homem apontou com a cabeça para uma porta do outro lado da salinha, indicando o caminho. Miguel não disse mais nada e saiu.
Os quartos poderiam ser facilmente confundidos como um único e comprido cômodo, se não fosse pelas várias duplas cômicas de porta e janelinha ao longo de toda a parede.
Ele se esforçou para identificar o número dos quartos, pois estavam todos apagados demais pra discernir de longe. Foi acompanhando cada um e concluiu que estavam numa ordem crescente. Começou então a acelerar o passo, já que não era mais necessário enxergar o número nas portas, apenas contá-las. Tentou, casualmente, olhar para dentro dos quartos através das janelas altas e estreitas, porém todas pela qual passara estavam com a persiana baixada e fechada. Contudo, quando passou por uma, notou que não havia persiana – a não ser que estivesse
totalmente levantada.
Deu uma olhada de relance, mas não viu ninguém. Então, quando se
preparava para continuar seu percurso, um fato lhe chamou a atenção: um vulto branco passara velozmente do outro lado da janela de persiana levantada. Não era branco como um fantasma. Mas, como uma pessoa branca totalmente desnuda. Uma curiosidade assombrosa o tomou, e resolveu chegar mais perto para dar uma olhada melhor.
Aproximou-se devagar enquanto olhava para os lados à procura de alguém para recriminá-lo. Mas o lugar estava vazio, como se nenhuma alma passasse por ali desde o século passado. Até mesmo o recepcionista de bigode sujo desaparecera.
Seu rosto já estava quase grudando no vidro transparente da janela e sua
respiração começara a embaçar o vidro. Porém, estranhamente, não viu nenhum outro movimento no quarto.
Quem tivesse corrido lá dentro deveria estar, naquele momento, no banheiro, e um impulso esquisito o fez desejar estar longe da janela quando a pessoa voltasse para o quarto.
Virou-se para continuar o seu trajeto, mas antes de partir deu uma olhada
contundente por sobre o ombro para a porta e espremeu os olhos para enxergar melhor: Quarto 06.
Chegou ao Quarto 16 e deitou-se preguiçosamente na cama. Olhou para o teto e lembrou-se da conta que fechara na tarde daquele dia. Estava radiante. Lembrou-se então da longa viagem e concluiu que precisava de um banho. Levantou-se, foi ao banheiro, tirou a roupa e ligou o chuveiro. Mas ocorreu algo que teoricamente não era para acontecer: a água não caiu.
- Que merda – resmungou.
Girou a torneira da pia e deu no mesmo. Com um suspiro de insatisfação vestiu-se novamente e saiu do quarto em direção à recepção. Começara a chover fraco e ele apertou o passo. Passou indiferente pelo Quarto 06 e se enfiou na salinha em que fora atendido pelo bigodudo.
- Ei! – gritou, sem ter outra palavra em mente.
Mas nenhum som ouviu além da chuva que começara a engrossar do lado de fora. À sua frente, do outro lado do balcão, havia um longo corredor. Ele tinha certeza que o recepcionista estava lá dentro, tomando um belo banho quente enquanto ele estava ali fora com os ombros molhados pela chuva.
Tentou achar em sua mente uma palavra maior para gritar.
- Hoteleiro! – ele riu consigo mesmo. Fora o nome mais idiota que pôde
imaginar. Achou que seria engraçado gritar novamente. E assim o fez. Mas nenhuma resposta novamente.
Começou a sentir a graça indo embora quando notou que não seria atendido.
Frustrado, saiu correndo debaixo da chuva de volta para o quarto. Já estava desistindo de tomar banho.
Então, enquanto corria, um feixe de luz incidiu em seus olhos. Ele parou no mesmo instante e olhou em volta. A luz vinha da fresta da porta do Quarto 06. Estava aberta. Miguel ficou ali, na chuva, olhando atentamente para a porta. Uma hipnose peculiar que nem mesmo ele sabia explicar o motivo. Pensou no vulto desnudo de uns instantes atrás, e sentiu uma empolgação medonha incitá-lo a se aproximar do Quarto 06. Começou a andar, pé ante pé, seus sapatos grudando na terra molhada que   começara a virar lama.
A fresta era estreita, mas não o impedia de ver uma mulher sentada à beira da cama, vestida com uma camisola cinza que parecia ser de seda. Ela inclinava-se contra o próprio o corpo, massageando as pernas, como se estivesse aplicando nelas
um creme hidratante. Aquelas pernas chamaram-lhe a atenção. Eram grossas e formosas, com um tom de pele que atraía os olhos de Miguel ainda mais para perto.
Quando deu por si, estava boquiaberto, enquanto observava a charmosa mulher de cabelos negros e compridos descer e subir num ritmo prazeroso à sua imaginação.
Estava tentado a empurrar a porta para abri-la só mais um pouco, só o
suficiente para ver a continuação das pernas em sua subida instigante. Então um toque imprevisível e horripilante pousou sobre seu ombro. Ele girou com toda velocidade que seu instinto conseguiu alcançar e caiu esparramado, as costas contra a parede e as pernas erguidas ao ar.
Tentou se levantar num esforço inútil, apavorado demais com o que estava
acontecendo. E para aumentar ainda mais o seu pavor, a escuridão da noite escondia o rosto de quem estava à sua frente.
- O que você está fazendo aqui? – disse o homem, a voz agradavelmente familiar.
Conseguiu então fica de pé e pôde contemplar o bigode sujo do Hoteleiro de perto. Porém, mesmo aliviado com sua presença – e não a de um invasor assassino -, ainda sentia a voz falhar, por não saber como explicar o motivo pelo qual estava bisbilhotando outro quarto.
- Meu quarto – iniciou, tentando achar uma justificativa plausível. – Está sem água. Eu te procurei, mas não encontrei, e então resolvi saber se os outros quartos também estava sem água.
- Você não me encontrou na recepção porque eu estava nos fundos justamente ligando a transmissão da água – ele explicou seca e rudemente.
Miguel repentinamente sentiu uma ponta de desconfiança dentro de si.
- Mas se já havia outras pessoas nesse Hotel, porque ligou a transmissão
agora?
O Hoteleiro fitou com seus olhar rude, e demorou em responder, enquanto a chuva caía sobre os dois com uma agressividade que parecia facas cortando a carne.
- A transmissão de cada quarto é individual – revelou o Hoteleiro, enfim.
Miguel não acreditou. Talvez estivesse ainda com os nervos alterados por
causa do susto que levara, mas não conseguiu aceitar que o Hoteleiro estava falando a verdade.
Mas antes que pudesse indagá-lo – se é que realmente questionaria alguma coisa naquela situação – um lampejo passou por sua memória e lembrou-se subitamente da mulher que espionava. Àquela altura ela deveria ter ouvido a confusão criada ali fora. Entretanto, quando se virou para a porta do Quarto 06, ela estava,
estranhamente, fechada. As luzes estavam apagadas e a persiana baixada, tal como os outros quartos.
Com certeza ela ouviu a agitação à frente do seu quarto e deduziu que era melhor se recolher por completo. Ele estava tão constrangido com o Hoteleiro que nem deve ter percebido quando ela trancou a porta.
- Você já pode voltar para o seu quarto – disse o Hoteleiro com sua voz nada
hospitaleira.
Começou a crescer em Miguel um desprezo ainda maior pelo bigodudo.
Repetiu as palavras do Hoteleiro em sua mente com desdém, caçoando do homem que parecia ter saído de um filme caipira de baixo orçamento.
Assentiu com um leve balanço da cabeça e voltou para o seu quarto. Tirou a roupa emporcalhada da lama e tomou um banho. Deitou-se e desejou apagar por completo. Mas achou que seria difícil adormecer enquanto imaginava as pernas da
sua vizinha de quarto em um ângulo convidativo. Então começou a se ver andando em direção à cama, com aquela mulher deitada nela, sorrindo maliciosamente para ele, enquanto ele retirava sua camisa suada. Então, quando estava quase pondo o primeiro joelho na cama, o Hoteleiro surgiu como um vento raivoso e acertou seu pescoço com toda força com seu machado rudimentar.
Miguel gritou desesperadamente, pondo a mão no seu pescoço intacto. Não passara de um sonho terrível. Agora, acordado, podia ver que a única verdade era a sua camisa encharcada de suor. Olhou para o relógio de pulso tentando saber quanto tempo passou dormindo. 02h35. Dormira menos de duas horas.
Aguçou os ouvidos e deduziu que a chuva passara. Tudo estava silencioso.
Dava até pra ouvir o tic-tac débil do seu relógio. Rodou os olhos à procura de um ventilador, mas não encontrou. O quarto parecia sufocar o ar. Tinha que sair dali por uns minutos.
Pôs outra camisa e saiu silenciosamente. O lugar emitia um aroma de terra molhada agradável enquanto o sereno refrescava a noite. Miguel tinha certeza que ele era o único acordado em todo o Hotel. Estava tudo escuro e calmo, e não se podia ouvir nada além de umas cigarras cantando seu poema repetitivo ao longe.
Então olhou para o lado e viu uma luz vinda de algum quarto. Estava longe, mas ele poderia jurar que era o Quarto 06. Sentiu os pêlos de sua espinha levantarem só de imaginar aquela porta aberta mais uma vez.
Começou a andar em direção àquele quarto, tentando ser o mais natural
possível, caso alguém o estivesse observando. Mas ele sentia suas pernas numa desenvoltura totalmente anormal para alguém que caminhasse ao acaso. Resolveu então apressar seus passos e só quando chegou muito perto diminuiu bruscamente a
velocidade da andada.
A porta estava aberta da mesma maneira que estava antes, apenas uma fenda propícia para uma espionagem segura. Tentou convencer a si mesmo que só estava procurando alguém para conversar na sua madrugada insone. Porém, não conseguia enganar a si mesmo, e sabia o motivo pelo qual estava à espreita.
Porém, ao se aproximar, não viu a mulher. Tentou achar um ângulo melhor, mas o que via era um quarto vazio. Então, para a sua surpresa e total desespero, a porta a se abriu subitamente. Soltou um gemido de pânico enquanto olhava para a
mulher que o encarava naquele momento. Não sabia se sentia medo ou constrangimento.
Ela então sorriu para ele. Era o mesmo sorriso que ele apreciara em seu sonho. Uma ponta de esperança cresceu dentro dele.
- Que bom que chegou – ela disse. Miguel extasiou-se com sua voz melosa. – Eu precisava de alguém para passar creme em minhas costas.
Miguel quase delirou com as palavras. Sentiu as pernas bambearem enquanto tentava acreditar no que estava acontecendo. A mulher girou sobre os calcanhares e andou devagar para cama. Miguel olhou ao redor e não viu absolutamente ninguém.
Desta vez o Hoteleiro inconveniente não iria se intrometer. Entrou agilmente no quarto e pôde ouvir a porta batendo logo atrás de si.
A mulher ainda estava de pé, próximo à cama, vestida com sua longa camisola cinza que Miguel agora tinha certeza que era seda pura. Ela estava de costas e ele admirou as ancas largas envolvidas pelo fino tecido da roupa. Aproximou-se devagar enquanto tentava manter a respiração normal, mas sentia o próprio corpo alterando-a, acelerando o seu ritmo.
Chegou perto o suficiente para erguer o braço e tocá-la levemente no ombro da mulher, tentando causar uma sensualidade no toque. Então, a cena de desenrolou num misto de surpresa, assombro e absoluto terror:
A mulher virou-se abruptamente e em sua face já não existia mais o rosto
suave e belo, mas em seu lugar havia um focinho bisonho como o de um urso feroz; suas pupilas transformaram-se em fendas, semelhantes a olhos de cobra,
mergulhadas numa conjuntiva dourada e brilhante. A boca aberta da terrível criatura possuía dentes compridos que alcançaram facilmente o ombro direito de Miguel.
Ele gemeu de dor e debateu-se, mas não encontrou forças para se desvencilhar, caindo logo em seguida, com o ser medonho sobre ele. Podia sentir todo o peso da criatura, enquanto seu próprio sangue borrifava para todos os lados. Seu
corpo arqueava freneticamente e ele podia sentir sua vitalidade se esvaindo juntamente com seu sangue. Começou a perder a força nos braços e tudo o que ele pensava naquele instante foi na dor aguda esmagadora do seu ombro.
Sua cabeça pesou e ele a deixou cair estupidamente contra o piso duro,
enquanto a criatura arrancava sua clavícula da maneira mais perversa e dolorosa possível. O ser monstruoso levantou sua cabeça que parecia ainda maior vista de tão perto e mostrou os dentes gigantes respingando sangue sobre o rosto de Miguel, que não pensava em outra coisa além realidade que o abatera tão violentamente: iria morrer ali mesmo.
Desistira de lutar e já não conseguia mexer seu braço direito quando o monstro investiu contra o seu abdômen, fazendo Miguel parecer uma presa fácil jogada ao relento. Então ouviu um estampido forte e viu a criatura arquear para o lado, soltando um uivo de dor e raiva.

O Quarto 06Onde histórias criam vida. Descubra agora