Lívia

419 38 23
                                    

Uma xícara de chá, minha manta de retalhos, a rede que agora me balançava levemente, e um bom romance gravado em páginas amareladas. Isso era tudo o que eu precisava naquele momento.

San José del Maipo era uma cidadezinha fria até mesmo no verão. Rodeada pelas famosas pré-cordilheiras e pacata, era refúgio para jovens e adultos cansados de tanto trabalho, poluição sonora, o caos que a metrópole cinza de Santiago oferecia, e claro, um verdadeiro paraíso frio para dezenas de turistas estrangeiros. Sim, eu tinha residência fixa e naquele momento passava as minhas férias aonde milhões de turistas chegavam a todo instante para conhecer Cajon Del Maipo, talvez o destino mais conhecido como Cordilheiras dos Andes no Chile. O imenso lago gelado e azul adornado por imensas montanhas com as pontas em geleiras.

Brasileira natural de São Paulo vim 'morar' em San José após vir á passeio e me apaixonar completamente pelo lugar. Com meus vinte e oito anos recém-completados jamais pensei que era hora de me aposentar e viver aqui pra sempre, mas... eu sabia que quando a hora chegasse era pra cá que eu viria correndo. Atuo em São Paulo como investigadora da delegacia de investigações criminais da polícia civil, o DEIC, mas minhas férias, feriados prolongados, datas especiais, e afins, é pra esse pequeno refúgio que venho. Custou toda uma vida guardada em uma conta da caixa econômica federal, mas valeu à pena ver a conta ficar literalmente zerada e a reforma de minha cabana pronta. A paz, o cafezinho da venda de seu Cristián, as cordilheiras que eu podia ver da janela de vidro temperado ao lado da minha cama, e a rede na pequena varanda, não tinham preço algum.

Largo o livro quando 'Jon e Ana Luisa brigam pela milésima vez', fecho os meus olhos, bebo um gole do chá de camomila e respiro fundo o ar puro. Tirei o dia para dar uma organizada em toda a casa e estava um tanto quanto cansada 'para não dizer bastante'. O céu já estava respingado de tons quentes, um lindo alaranjado que só existia aqui, há poucos minutos já havia escutado o bipe fraco do meu relógio indicando que já era cinco da tarde, e eu continuava querendo que a preguiça tomasse conta do meu corpo de uma vez. Era bom. Eu não tinha preocupação alguma então, se me desse um soninho gostoso naquele momento eu me entregaria, mas aquela ideia de "vem logo, preguiça que eu estou pronta pra você..." não durou muito. O telefone fixo toca e eu encaro a porta da sala de paredes de tijolinhos com uma enorme curiosidade.

- ¡Hola!

- Diehl? - ouço a voz de Tom e suspiro.

- Estou de férias, Tom...

- Eu sei... É o Frei... estamos tentando falar contigo faz algumas horas. Preciso mesmo transferir. - Tom diz como quem se desculpa, e eu só não desligo em sua fuça porque se estavam tentando falar comigo sabendo que eu havia acabado de sair de férias, poderia ser realmente importante, talvez algum assunto pessoal, algo grave, não sei. Apenas aguardei porque 'curiosidade' e 'ansiedade' eram meus sobrenomes.

- Diehl?

- Oi, Frei. O que houve?

- Escuta. Um grande amigo acabou de ser fichado. A parceira foi encontrada dentro de casa, baleada, com sinais de violência...

- Feminicídio.

- Não. Eu o conheço, não foi isso, mas ele declarou que pode provar que a encontrou assim, só que não conseguimos contatar o seu álibi. A perícia encontrou material em suas unhas, sangue da vítima em uma de suas camisetas, e testemunhas relatam que no dia do fato e na noite anterior foram ouvidos gritos na residência. Briga, bate-boca...

- Frei... está bem claro pra mim.

- Eu o conheço, Lívia. - o delegado velho de guerra parece sofrer. - É um grande amigo, conheço seu caráter e sua índole.

DEGUSTAÇÃO - Nas Suas MãosOnde histórias criam vida. Descubra agora