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Há um ditado que diz que a males que vêm para o bem, não posso acreditar que isso seja verdade, a cada dia tenho tentado desesperadamente encontrar um sentido para tudo em minha vida. Talvez haja mesmo uma luz no fim de toda a estrada escura, o que mais devo fazer? Vamos Clare, você já suportou tanto... mas um pouco, só mais um pouquinho. Encaro o teto do meu quarto particular e lembranças da noite passada enchem minha mente inquieta, minha carcereira, diretora Lúcia, decidiu me usar para satisfazer qualquer que seja seu desejo profano por machucar outro ser humano. Não doeu tanto assim, talvez seja porque está ficando velha e eu experiente, sorrio sem vontade sentindo os lábios tremerem. Em mais dois anos farei dezoito, os anos mais aguardados da minha existência, enfim poderei me livrar do terrível fardo que é conviver com esse, odeio ter que pensar nessa palavra, demônio. Suspiro negando, nunca vi um mais creio que eles se pareçam com ela, mas essa alegria ansiosa é acompanhada por outro sentimento de pesar, meu peito se aperta por ter que abrir mão de algo inestimável.


Lembranças tornam a me assombrar, mais precisamente as da época em que cheguei a este lugar, a dez anos, na véspera dos meus sete quando meus pais, sem um motivo que justifique ou que para mim seja aceitável, me deixaram na porta do abrigo pôr do sol. Não foi o pior dia da minha vida, porém fora o que mais me trouxe a excruciante sensação de dor, tristeza e abandono, o dia está vívido em minha memória como uma mancha irreparável ao meu coração. Boba como era acreditei nas palavras do meu pai quando ele disse que era apenas por um dia, que seria como uma tarde de diversão com outras crianças e que logo eles viriam me buscar, meus pais nunca foram dados a atos de carinho e preocupação, mesmo contra a desconfiança resolvi crer que dessa vez seria verdade, quanta baboseira. Assim que passei dos portões altos e fortificados da enorme casa ligeiramente sombria ouvi a risada da minha mãe, ela piscou um olho e me deu um tchauzinho esquisito e então os dois sumiram. No mesmo momento a mulher rechonchuda, ruiva e aparentemente boa sorriu para mim, havia um brilho sinistro em seus olhos, sua mão pousou no meu ombro, pesada e pegajosa, ela se abaixou até estar com o rosto enrugado muito próximo do meu e então eu senti. Um frio na barriga, por algum motivo aquilo me assustou mais do que a situação em si, havia algo de muito maligno e horrível em sua postura e no aperto forte que me fez encolher de medo e pavor.


_Acho que fiz um bom negócio afinal. — Sua voz era profunda, baixa e provocava arrepios ao meu estomago, naquele momento eu soube que eles nunca mais voltariam e que seus planos passados de se livrarem de mim tinham, enfim, dado certo. A mulher, a quem mais tarde de fato conheci era a diretora e ela me fitava com ódio e felicidade, sentimentos que jamais devem estar juntos em um mesmo olhar... — Seus olhos serão um problema ratinha, é até engraçado o quanto seus pais foram burros, facilmente poderiam ter vendido você para o árabe ou para os traficantes por um valor muito maior, felizmente você caiu em minhas mãos, havia tempo em que queria alguém como você. Por aqui, vamos com calma, querida.


Suas palavras foram o suficiente para me fazer tremer dos pés a cabeça, se fechar os olhos posso sentir tudo o que senti naquele momento, ser abandonada era uma preocupação constante em minha infância, mas aquilo foi diferente, me senti doente, monstruosa e descartável, ela me guiou a força e aos puxões pelos corredores da casa enquanto tudo o que pude fazer fora chorar baixinho. E foi aí que tudo realmente começou a piorar, talvez haja uma maldição sobre mim, pois minha percepção de "inferno" mudou radicalmente quando passei por aqueles portões. A verdade é que, embora odeie me sentir a vítima das circunstâncias, o mundo nunca foi cordial comigo, desde meus primeiros dias na terra até hoje posso contar nos dedos quantas pessoas me desejaram bem ou na melhor das hipóteses, uma vida decente. No inicio haviam meus pais para os quais eu não passava de um fardo, uma aberração da natureza e uma dor de cabeça profunda, eu era a causa de todos os males e infortúnios que eles passavam e isso só me ofereceu uma vida de maus-tratos, tudo o que fosse passível de satisfação através da dor era direcionado a mim e para o meu corpo, em especial os olhos, como odeio ser assim, ser diferente...


Te esperando (Parte I) - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora