Havíamos chegado a mais de três horas no casarão. Eu, minha mãe e meu irmão mais novo nos mudamos de cidade após algumas complicações familiares.
Meu novo quarto parecia mais espaçoso que o antigo, mas eu não via isso como uma vantagem, um quarto maior só era ainda mais solitário e sufocante. Pra falar a verdade, acho que nem dá pra chamar isso de "novo quarto", essa casa deve ter mais de cem anos, as teias de aranha nas quinas das paredes ilustram isso muito bem. Meu guarda-roupas permanecia desmontado com suas peças espalhadas e apoiadas nas paredes do quarto como peças de dominó umas nas outras. Minha cama, onde eu estava sentada com meu violão no colo, era a única coisa que já estava montada naquele quarto. Ao lado da porta, havia algumas pilhas de caixas de papelão onde estavam minhas roupas.
O violão era um refúgio dessa nova e triste realidade em que eu me encontrava, a cidade nova era uma merda. A típica cidadezinha do interior onde todo mundo se conhece e as fofocas rolam soltas. Eu sabia que odiaria esse lugar, então o mínimo que eu poderia fazer, é aproveitar a vista. A cidade era até bonita, não tinha edifícios e arranha-céus mas a natureza compensava. O casarão para onde nos mudamos é a ultima casa da rua. A rua é cheia de casarões antigos e o que separam eles uns dos outros são longas fileiras de pinheiros e outras árvores.Meus dedos dançavam sobre as cordas de aço do violão ao passo em que os acordes iam saindo suavemente e preenchendo o quarto com o som. As pontas dos dedos doíam, eu não tocava a meses.
Parei de tocar o violão quando percebi algo na periferia de minha visão. À minha direita, estava a enorme janela do meu quarto por onde entrava a luz difusa daquela manhã nublada. À frente da minha janela, havia um outro casarão cercado de árvores altas. Um casarão, provavelmente tão velho quanto este, e aparentemente abandonado. Entre o meu quintal e o casarão vizinho, havia uma estrada, e na calçada da estrada, um homem permanecia de pé feito uma estátua. Ele usava um casaco camuflado grande e grosso, o capuz era felpudo e cobria sua cabeça. No lugar onde deveria estar seu rosto, estava uma sombra negra, provavelmente projetada pelo capuz, mas não era possível enxergar absolutamente nada do rosto do homem. Na verdade não era nem possível distinguir se era realmente um homem, pois o casaco era grosso, e alcançava até metade da coxa, impossibilitando de se perceber quaisquer formas, curvas ou traços femininos.
A figura usava calças jeans surradas e uma bota de pântano. Parado com as mãos nos bolsos do casaco, a figura parecia me encarar. Embora não desse pra ver seu rosto, a impressão que me causava era de que realmente, ele estivesse olhando diretamente para os meus olhos. Um medo começou a me ocorrer, mas o momento foi quebrado quando ouvi passos subindo as escadas. A porta do meu quarto estava aberta, e assim que a pessoa chegou no ultimo degrau, pude ver seu rosto. Era minha mãe.— Becca, deixa o violão pra outra hora, e venha ajudar a gente a esvaziar o restante das caixas, por favor. — Ela falava num tom baixo e suave, demonstrando redenção. É o mínimo que ela poderia demonstrar depois de tudo o que aconteceu entre a gente.
Sem dar uma resposta direta, eu tirei o violão do meu colo e deitei-o sobre a cama, calcei meus sapatos e fiquei de pé. Antes de sair do quarto, dei outra olhada pela janela e a figura não estava mais lá. Foi tudo tão rápido, será que tinha realmente alguém ali me olhando, ou o sono começou a bater logo de manhã?
Passei pela porta do quarto com olhar baixo e desci as escadas.Quando cheguei no quintal, vi meu irmão no porta malas do nosso gol quadrado se esforçando para empilhar duas caixas de papelão em seus braços.
— Tá fraquinho. — Não perdi a chance de zombar.
— Cala a boca, idiota. Só faltam essas outras duas. — Ele disse apontando com os olhos para as ultimas caixas que ocupavam o porta malas. — Acho que são coisas da mãe, leva lá pro quarto dela.
Fui até o porta malas e meu irmão se pôs a andar com as caixas que já estavam empilhadas em seus braços como um totem indígena.
Passou pela minha mente, perguntar se ele estava feliz pela mudança, mas eu já podia imaginar a resposta. Cauê sempre apoiou minha mãe em tudo. Essa é uma das coisas mais irritantes nele, sempre fica do lado dela, mesmo quando ela está errada. Esse é um dos motivos de eu nunca ter confiado segredos ao meu irmão.
Curvei-me para dentro daquele porta malas escancarado e arrastei as duas ultimas caixas para perto de mim. Em seguida empilhei uma à outra e trouxe as duas para os meus braços. Levei as caixas até dentro de casa e subi as escadas.
O primeiro quarto no corredor, de frente para a escada, era o meu, seguido do quarto do meu irmão e por fim o da minha mãe. Caminhei até o final do corredor. A porta já estava aberta. Minha mãe estava suada e ofegante, ela usava um top rosa e uma calça legging cinza, ambas peças compradas com o intuito de começar uma academia, nem preciso dizer que ela nunca usou-as de fato dentro de uma academia, isso porque ela nunca foi à academia. Ela tinha esse péssimo hábito de planejar, gastar e não fazer.
Minha mãe secava o suor da testa com as costas da mão e abanava o próprio rosto enquanto retomava o fôlego.— Montou sozinha? Que evolução. — Perguntei referindo-me ao guarda roupa dela que, agora, já estava montado. — Onde deixo essas coisas.
Estendi os braços dando ênfase às caixas que eu carregava.
— Acho que estou sem espaço aqui em cima, filha. Pode levá-las para o porão?
— Claro. — Deixei claro o desânimo em minha voz.
Desci novamente as escadas e caminhei até o porão. Somente os três primeiros degraus estavam visíveis. Dali pra baixo era escuridão total. "Que ótimo." Eu pensei. Não que eu tivesse medo de escuro, só não queria tropeçar em algo e cair com aquelas caixas pesadas.
Coloquei-me a descer os degraus com cuidado, um passo após o outro, e logo me peguei abrindo ao máximo, meus olhos, tentando, em vão, enxergar algo. Parei na metade da escada, inclinei meu corpo para segurar as caixas com só um dos braços e tateei a parede à minha direita procurando pelo interruptor. A minha visão lá embaixo era literalmente nula, por alguns milésimos imaginei se eu poderia ver alguma coisa assustadora lá dentro ao ligar a lâmpada. Continuei tateando a parede em busca do interruptor.— Achei!
Apertei o botão, a luz se acendeu e no mesmo segundo, a lâmpada estourou me causando um grande susto. Um breve gritinho se iniciou em minha garganta.
"Que merda"
Eu pensei.
A luz durou tão pouco tempo que não foi o bastante para que eu pudesse ver algo lá dentro. Eu continuava sem saber absolutamente nada do que tinha lá dentro.
Subi novamente alguns degraus e abri um pouco mais a porta do porão com a intenção de ganhar o máximo de iluminação possível. Desci novamente com cuidado.
Aquele lugar era tão velho e nojento que eu podia ouvir as patinhas das aranhas nas paredes. Eu não podia vê-las, mas tinha certeza que haviam milhares delas lá dentro. Aranhas, baratas, provavelmente até ratos.
Ao chegar no fim da escada, tive a impressão de ouvir uma respiração lá embaixo. Meu coração se acelerou. Abri ainda mais os olhos e tentei olhar ao meu redor. Será que tinha alguém ali comigo? Tudo o que eu vi era negro, breu total. A respiração parecia se aproximar de mim cada vez mais, e conforme isso acontecia, meus batimentos também aumentavam.
Abaixei-me rapidamente, deixei a caixa em qualquer lugar, e logo coloquei-me a subir aquelas escadas velhas. Seja o que for, que estivesse vivendo lá dentro daquele porão, não seria hoje que eu iria querer descobrir.
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Abismo - Filhos da Meia-Noite
Mystery / ThrillerApós alguns conflitos familiares, Becca, sua mãe e seu irmão precisam se mudar de cidade, e vão morar em Nossa Senhora dos Aflitos. Uma cidade pequena que à primeira vista parece pacata, mas esconde segredos obscuros e sombrios, e possui um passado...