--- Você queria falar comigo? - Disse com sua voz firme exigida pela sua posição de poder.
--- Sim, receio que saiba quem sou. E por isso achei importante vir ao seu encontro. - Ouvia-se uma voz jovem, mas firme e carregada de sentimentos que não deveriam estar ali.
--- Sinto pelo que aconteceu ao seu pai...
--- Não sinta, apesar de amá-lo eu reconheço que ele próprio acabou cavando a sua cova. Por tudo o que ele fez o mundo acabaria devolvendo.
--- Não dá para culpá-lo, sabemos que ele estava sendo manipulado...
--- Sim, mas também não dá para culpar a ex-rainha, muito antes deles se envolverem o meu pai já fazia coisas deploráveis e foi por essas coisas que ela o notou.
--- Como era a vida de vocês antes que tudo isso viesse a acontecer?
--- Bem... Talvez isso soe estranho, mas éramos uma família feliz. Meu pai ainda era o responsável pelo treinamento da guarda regional que sob o seu comando se tornou a maior força militar do reino, todos diziam que ele tirava tudo de bom de seus homens restando apenas algo que os deixavam mais parecidos com ele. Com isso ele próprio ganhou notoriedade e se tornou um dos homens mais influentes, não só da região mas de todo o reino.
A minha mãe era como toda esposa de alguém importante, tirando o fato de que o poder nunca lhe subiu a mente, era bela, inteligente e totalmente devota ao meu pai e seus filhos, eu e um que estava há caminho. Estava totalmente feliz e realizada com a vida que havia conseguido.--- Vocês tinham algum conhecimento sobre as práticas de seu pai nos treinamentos da guarda?
--- Nada de concreto, como havia dito, ouvíamos algumas histórias e víamos nos olhos de seus homens que nos serviam que algo tinha mudado, mas tudo isso não se encaixava no homem que convivia conosco, alguém que acreditava ser totalmente incapaz de realizar aquelas práticas.
Mas bem... Não demorou muito para que a rainha viesse, a carta anunciando que viria passar alguns dias de repouso em nossa casa chegou duas semanas antes que ela própria.--- Acredito que a rainha não mandaria uma carta para a casa de um desconhecido, ou não tão próximo dizendo que iria se hospedar por alguns dias, então como isso deve ter acontecido?
--- Ora o Sr. mesmo deveria saber, o meu pai e a rainha haviam se encontrado uma vez, junto com o ancião, quando ela própria quis assistir uma demonstração da guarda antes de levar alguns homens para servir na guarda real. Meu pai havia nos dito que trocou algumas palavras com a rainha e como ela parecia ter simpatizado com ele então tomou a liberdade para convida-la para se hospedar em nossa casa e acompanhar um dia de treinamento da guarda.
Em todo aquele tempo entre a chegada da carta e da rainha o meu pai não parava de dizer o quanto isso poderia ser bom, uma oportunidade para todos e que finalmente a nossa família seria novamente reconhecida.--- Claro, a sua família descende do primeiro ancião que governou aquela região.
--- Isso mesmo, e segundo a minha avó, o poder assim como o fogo nunca deixou de correr em nossas veias.
A minha avó venerava o meu pai, tudo que ele conseguiu de certa forma era graças a ela, ela o moldou. Bem... pelo menos tem uma coisa em meu pai era melhor do que ela, ao contrário da minha avó, ele demonstrava o que sentia por nós e agora, sei que estava envolvida desde o início. Antes da rainha chegar ela também veio, não perderia a chance de conhecer a majestade de forma tão íntima como na casa de seu próprio filho.--- E como foi a chegada da rainha?
--- Sabe aqueles dias lindos, de céu azul e nuvens brancas, com uma brisa fresca acariciando os campos de um verde brilhante? Aquele dia estava assim até ela chegar, de longe podia-se ver as nuvens carregadas e sombrias vindo junto com ela, pairando por sobre a sua pequena caravana. A minha mãe foi hospitaleira e gentil, não por obrigação por ser a anfitriã, mas por ser assim, a minha avó se aproximou rapidamente dela, levando consigo o meu pai. Estava claro que pretendia algo, sempre se trancava com a rainha e passavam longos períodos conversando, o único que podia entrar nas salas e quartos em que estavam era o meu pai.
--- Como foi para a sua mãe esse comportamento que todos aderiram na presença da rainha?
--- Ela não demonstrava, mas sei que era difícil, estava no fim da gravidez e passou aqueles dias sem mal falar com o marido que no momento se preocupava mais com o bem estar da rainha. Naqueles dias ela só teve a mim, enquanto o meu pai e a rainha passavam tardes fora de casa em longos passeios pelas pequenas vilas daquela região. Agora eu sei, era óbvio que os dois estavam tendo um caso.
--- Acha que por esse motivo a sua mãe decidiu fugiu?
--- Ela não fugiu... - Disse com certo rancor na voz, como esse homem poderia estar falar tal asneira sobre a sua mãe? - Ela nunca partiria sem me levar consigo... Ela... Morreu... Na minha frente. Pelas mãos do meu próprio pai.
--- O quê? Mas ela é tida como desaparecida, o seu pai mobilizou a guarda por meses a procura dela. Isso não faz sentido, a própria rainha cancelou aquelas férias depois que a sua mãe desapareceu e ajudou enviando reforços para a busca.
--- General, o senhor ainda defende muito a ex-rainha. Pense um pouco de forma imparcial, o que era melhor para a rainha, ter um caso com um homem casado prestes a ter um filho ou casar-se com um viúvo? - Houve silêncio, então a jovem continuou. - Tudo aconteceu muito rápido, a rainha e a minha avó conversavam no escritório e pela primeira vez chamou a minha mãe para acompanhá-las, isso era estranho, por um tempo elas ficaram conversando coisas aleatórias e sem muito interesse por parte de nenhuma das três até que o assunto se tornou o meu pai. A rainha começou a elogiá-lo exaltando as suas características de um bom esposo e filho, até que surgiu o comentário vindo da minha avó "perfil digno de um rei" ela nunca escondera sua vontade de ter seu filho como um membro da realeza e ali estava a sua chance. Eu lia um livro na sala de repouso e por estar muito concentrada na leitura não havia percebido o tempo que passou desde que elas entraram no escritório, o que me tirou do foco foi uma súbita gritaria que vinha daquele aposento, eu me levantei e fui caminhando naquela direção enquanto o meu pai passou correndo por mim e adentrou pela porta. Cheguei em seguida e de início vi apenas a rainha conversando com o meu pai e a minha avó.
--- E qual foi o motivo da gritaria?
--- Elas diziam para ele que haviam visto um rato perambulando pelos cantos do escritório.
--- E a sua mãe? Já havia saído de lá quando isso aconteceu?
--- Elas disseram que sim, falaram que ela parecia cansada e que havia, sob conselhos da rainha, ido se deitar, que a exaustão talvez fosse por causa dos últimos dias de gravidez. Eu estava parada a beira da porta, pensando em ir ver como ela estava, até que o tal rato sair de baixo dos móveis correndo em desespero na minha direção. A reação do meu pai foi rápida e quase automática, sem sair do lugar ele incinerou o animal. - Lágrimas correram dos olhos cinzas dela, a postura rígida se mantinha enquanto a dor transbordava. - Aquela foi a última vez que vi a minha mãe.
--- A sua mãe? Está me dizendo que a sua mãe era o rato? Como pode ter tanta certeza disso?
--- Eu vi o desespero estampado em seus olhos, foi a última coisa que eu vi. Naquele momento tudo que me importava desapareceu, a minha mãe e meu irmão viraram cinzas e o meu pai estava totalmente entregue, passei a odiá-lo com todas as minhas forças, o resto do mundo também desapareceu para mim, as chamas atingiram os meus olhos me cegando permanentemente, nem a rainha atual nem as ninfas negras conseguiram me curar.
--- Como você pode saber de tudo isso? De acordo com os seus relatos você não estava presente quando supostamente a ex-rainha transformou a sua mãe.
--- "O poder assim como o fogo nunca deixou de correr em nossas veias." Eu fiquei cega por causa do fogo General, ele não corre em minhas veias por isso minha avó nos desprezava tanto. Outra coisa corre em meu sangue, a vidência. Apesar de não poder mais enxergar, aquele dia passou a me assombrar até descobrir um modo de ver tudo o que aconteceu mesmo não estando presente, segundo o falecido mestre esse é um nível elevado da vidência tradicional, a capacidade de ver o passado das pessoas.
Com isso o General concluiu as suas investigações acerca do que aconteceu a pouco tempo, evento que quase levou o reino a destruição. Agora, todos os acordos, planos, alianças e motivação dos envolvidos eram de seu conhecimento e então pôde reconhecer que a guerra ocorrida a poucas semanas vinha sendo conspirada a muito tempo por pessoas que tinham ou não consciência disso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Contos de Lugar Nenhum
Short StoryLugar Nenhum, universo alternativo onde se passa todas as histórias, contos, depoimentos, interrogatórios e breves aventuras de personagens desconhecidos e sem nomes, descritas aqui. As histórias escritas aqui não obedeceram uma ordem cronológica...