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Eu estava doente,
Então ninguém quis brincar comigo.Eu vi a gata preta pegar o rato.
Aconteceu em um instante. Tudo que eu vi foi um vulto negro saltando, e depois eu percebi: havia uma gata devorando um rato.
O rato nem mesmo contorceu-se — possivelmente foi atingido em um local fatal. Como se tivesse me notado encarando-a, a gata passou a me observar.
Seus grandes e dourados olhos estavam arregalados.
Apenas momentos depois, ela desapareceu por dentre o beco.Suspirei profundamente. Como isso foi lindo. A imagem da gata negra estava ecoando em meu suspiro.
Corpo ágil, olhos tão grandes quanto uma lua cheia. Dourados como os meus. Sim. Mas eu não tinha garras como ela. Nem liberdade.Alastrei-me em minha cama suja e contemplei a vista do lado de fora. Tudo o que eu poderia fazer todos os dias era olhar o beco dos fundos pela janela.
Por que, você pergunta?
Porque fazê-lo é a forma na qual vivo, é meu dever.
As pessoas que passam por ele não me notam. E se notassem, eles fingiriam não perceber a garota pálida flagrando-os.
Pessoas honestas torceriam o nariz como se vissem algum tabu, e rapidamente afastariam-se.
Naturalmente. Estes eram os bairros pobres.
Todos estão focados em viver por si mesmos, incapazes de poupar tempo para estender a mão para outro alguém.— Ellen?
Mamãe gentilmente chama meu nome, me trazendo de volta à realidade.
— Viu alguma coisa? — ela perguntou, pondo um balde d'água no chão.
Talvez ela tenha notado como eu olhava para fora com olhar mais brilhante do que o de costume.
Assenti levemente enquanto abria os lábios.— Uma gata...
Uma voz mais gasta que a minha estava preparando-se para vir.
Tossi levemente, e continuei.
— Vi uma gata preta pegar um rato no outro lado da rua.
— Ah — ela sorriu. Seus, vagamente feridos, cabelos castanhos balançavam por sobre sua clavícula.
Ela mergulhou uma roupa no balde d'água e o torceu. O dobrou cuidadosamente, e pôs uma das mãos no cobertor.
— Vou trocar sua atadura.
Assim que assenti, ela cobriu meus joelhos com o cobertor.Eu tinha ataduras embrulhando minhas panturrilhas. Ambas. Haviam manchas de tinta vermelha nos lugares.
Quando ela removeu a atadura revelou a pele rachada, colorida em um vermelho horrível. Mamãe começara a enxugá-las com suas mãos experientes.
Tentei contá-la sobre o quão rápido e elegante a gata pegara o rato. Mas como tudo acabou muito rápido, eu simplesmente esqueci do que queria dizer.
Enquanto eu mantinha o silêncio, mamãe terminou de embrulhar minha ferida e pôs o cobertor de volta em mim.
Ela olhou para meu rosto, e como se estivesse acabado de perceber, disse "Oh, sua faixa está escorregando."Ela a suspendeu. Não que eu soubesse se aquilo estava escorregando ou não.
Ela sorriu e fez um gesto para que eu olhasse para o outro lado. Obrigatoriamente, virando todo o meu corpo em direção à janela.
Ela uniu minha faixa vermelha e passou a pentear gentilmente meu cabelo longo e lilás. Cuidadosamente, para que não encostassem nos curativos em meu rosto.
Eu sabia que não poderia mover um músculo. Esperei que ela penteasse todo o cumprimento do meu cabelo, da cabeça até a cintura, da raiz até a ponta.
Era como se ela estivesse brincando com uma boneca.Toda vez que seus braços moviam, um doce aroma pastava em minhas narinas.
Minha mãe sempre carregava um aroma doce. Eu supunha que isso era porque fazer certas coisas era seu trabalho.
Ela sempre renovava meus curativos durante a tarde. Que era exatamente no momento em que ela chegava em casa. Eu gostava da combinação do seu cheiro doce e o ar levemente frio que cassava com o sol.
O tempo passou devagar.
Fechei meus olhos com o conforto.Só então mamãe sussurrou.
— Me desculpe por não poder deixar você brincar lá fora.Meus olhos abriram indiscretamente.
Uma pequena corrente elétrica correu pela minha cabeça. Era um tipo de sinal, me alertando sobre o perigo, que me renderia imóvel.
Eu precisava escolher as palavras certas em momentos como esse. As engrenagens em minha mente trabalhavam para encontrar uma resposta. Tudo em apenas um momento.
Respondi com toda a alegria que conseguiria encontrar.
— Tudo bem. Eu gosto de brincar aqui dentro, sabe? — eu disse, olhando em direção à minha mãe.
Ela sorriu e penteou meu cabelo como se nada houvesse acontecido. Só quando eu confirmei seu sorriso, estranhamente, nasceu um sorriso em meus lábios.
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A Casa da Bruxa - O Diário de Ellen
TerrorUma frágil (e provavelmente auto-mutilada) Ellen está deitada no frio chão de seu quarto, se familiarizando com o ambiente. Ela escuta um poderoso assobio do vento entrar por sua janela, e o som de páginas do diário em sua mesa se rebatendo. Ellen r...