Capítulo 1

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O tempo é muito curto para quem quer viver, do mesmo modo, ele é muito longo para quem não o quer. E eu já não o queria, mas aquela noite mudou muita coisa.

Era tarde, eu sabia, poderia me virar e cair no mundo dos sonhos novamente enquanto esperava alguém entrar e me matar, contudo eu não estava sozinha. Ao meu lado, Kaine e seu irmão mais novo, Flynn, se encontravam completamente adormecidos e, se eu realmente queria deixar este mundo, não poderia ser egoísta com os dois e os condená-los. Então me levantei e fui para fora. Fui morrer sozinha. Pelo menos, era isso o que eu esperava.

Estava armada apenas com uma faca pequena e minha coragem, mais pequena ainda. Para alguém que não se importava em morrer, eu estava com muito medo daquela noite escura e do que me espreitava entre as sombras, talvez em meu interior eu soubesse que naquele dia algo seria transformado irremediavelmente em mim.

A noite estava mais fria sob as estrelas e apesar de uma fraca luz lunar deixar o ambiente mais claro, também proporcionava sombras assustadoras ao meu redor. Havia no ar um cheiro diferente, como ferrugem, sal e suor, provavelmente sangue, era suave mas completamente distinto para mim e conforme a brisa soprava, percebi que algo se aproximava.

Virei-me para todas as direções e como mágica tudo se silenciou repentinamente. Com certa imprudência me aproximei de uma árvore, era o único lugar onde alguém poderia se esconder e eu já estava cansada de todo aquele suspense.

Menos de um segundo depois, alguém saltou sobre mim e com um golpe inacreditável tomou a faca das minhas mãos, circulou meu corpo com um dos braços e se mantendo as minhas costas, pressionou a faca na minha jugular que nesse momento já pulsava freneticamente.

Podia sentir que meu captor estava tão nervoso quando eu, mas ainda assim segurava a faca de maneira firme, me dizendo que bastava um grito ou um movimento meu e ele me mataria sem hesitar.

Ele não me conhecia, então não sabia que ao me matar estaria na verdade realizando meu último, talvez único, desejo.

– O que há lá dentro? – perguntou em voz baixa, com a boca próxima do meu rosto.

Me obriguei a responder.

– Nada que seja da sua conta, seu bastardo, filho da mãe.

Ele apertou a faca em meu pescoço e senti um pequeno corte na minha pele.

– Apenas responda a pergunta, garota.

Olhei para a velha cabana onde há alguns metros Kaine repousava com seu irmão. Não poderia permitir que eles morressem sem tentar defendê-los.

– Quer saber o que há lá dentro? Há uma arma com a qual vou estourar todos os seus malditos miolos.

Não muito contente com a resposta, ele me jogou no chão e enquanto eu tentava me levantar chutou minha clavícula fazendo meu corpo todo sacudir em desespero.

– Acredite, você não é páreo para mim – alertou com um tom gélido de quem já tinha feito aquilo várias vezes.

– Você não me conhece.

Percebi de onde vinha o cheiro de sangue. Em sua perna direita, acima do joelho, havia uma ferimento e ele parecia mancar sempre que caminhava, mesmo que poucos metros.

Quando ele chegou perto o bastante, chutei sua coxa ferida com todas as minhas forças e sua perna fraquejou. Ele caiu de joelhos e perdeu a faca. Aproveitei o momento de distração dele e me levantei, recuperei minha faca e antes que eu pudesse fazer qualquer outra coisa, ele desmaiou.

Os momentos seguintes são mistérios para mim até hoje.

Eu voltei para dentro, acordei Kaine e nós carregamos o rapaz para dentro. Simplesmente não tive coragem de matá-lo e sequer de abandoná-lo naquele estado, mesmo que minutos antes ele tenha pressionado minha própria faca no meu pescoço.

Kaine cuidou do seu ferimento e o acomodamos em um dos cantos da cabana. Pude então vê-lo pela primeira vez, sob a luz de uma vela.

Ele era alto e de uma boa musculatura, provavelmente era apenas um ou dois anos mais velho que eu. Tinha cabelos negros, suavemente ondulados e que já haviam passado da hora de cortar. Sua pele era branca, mas havia um leve bronzeado no nariz e na testa, como se ele tivesse passado os últimos dias debaixo do sol escaldante.

Seus olhos ainda eram um segredo para mim, até o momento em que se abriram e duas íris cinzentas e enigmáticas se revelaram para a luz.

Ele era bonito.

– Qual é o seu nome? – perguntei e me surpreendi ao perceber que meu tom já não era mais hostil.

O rapaz olhou ao redor parecendo confuso, até que seus olhos focaram em mim e ele pareceu enrijecer imediatamente.

– Talvez ele esteja com fome – sugeriu Kaine ao meu lado.

Concordei e estendi um prato de comida para o nosso estranho hóspede.

Ele pareceu ainda mais confuso e não pegou o prato, deixei-o então ao seu lado.

– Meu nome é Caydence Morgan, e este é Kaine Grayford – apontei para o irmão do Kaine que nos observava a distância. – Aquele é o Flynn.

Flynn se levantou e aproximou-se cauteloso. O garoto era a cara e o focinho do irmão, cabelos castanho claros e olhos cor de avelã.

– De onde você veio? – Flynn perguntou. Não acreditei que o estranho responderia, ele parecia tão acuado que se recusava a fazer qualquer coisa além de respirar.

Virei-me de costas e antes de me afastar, ele respondeu:

– De longe.

Grande ingrato. À mim – que tinha acabado de salvar sua vida – ele não respondia, mas era só o pirralho abrir a boca que ele se dispunha a falar.

– Quantos anos você têm? – prosseguiu Flynn, empolgado.

– Vinte e um, e você?

– Tenho quase dez – respondeu estufando o peito de passarinho. – Kaine tem vinte e Cay tem dezenove. Meu irmão disse que sou quase um homem porque logo terei vivido uma década inteira.

Revirei os olhos, é claro que Kaine tinha dito isso ao garoto.

– Homens de verdade não tem medo de dormir no escuro – comentei e Kaine riu tentando ser discreto.

– Não tenho medo de dormir no escuro!

Flynn cruzou os braços e tentou ignorar minha existência.

Como se tivéssemos passado em algum teste estranho, o rapaz pegou o prato que eu havia deixado perto dele e antes de começar a comer, revelou:

– Meu nome é Alden Westland.

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