1. DE COMO COMEÇAM AS HISTÓRIAS

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Há o silêncio. Há a preguiça de falar. Sempre há. A boca move-se de leve, intenciona abrir, mas se mantém lacrada. A gente sempre acha inútil fazer coisas para as quais não encontramos significado. 

O que gruda os lábios fechados é o fato de que, por mais que se fale, parece nunca ser o suficiente para se transmitir exatamente o que se pensa e o que se sente. É só palidamente que vamos nos comunicando, abrindo espaços, criando hipóteses. Se dizer bola não faz minha palavra sair mais redonda, o quanto de amor realmente cabe na palavra amor? O quanto de eu te entendo mora dentro do entender?

No fim, somos sempre solitários e incompreendidos, criaturas muito ímpares e imperfeitas para conseguirmos o ideal dessa coisa que chamamos comunicação.

***

Quando os papéis ficam espalhados pelo chão, pela mesa, por toda a parte, significa que alguém devia estar tentando escrever. Escrever pode ser uma forma de descarregar esse peso que existe na não-compreensão. A escrita parece sempre tão clara, tão compreensível, tão menos densa do que existir. Escrever é papel, é fato. Cara a cara, ombro a ombro. Escrever é revelar-se sem tirar os pés do chão, pois a letra sempre será uma linha que amarra cada alma à matéria de que é feito o corpo de cada um.

Porém, os papéis na lixeira e os outros espalhados em volta dela, no chão, anunciam outra coisa: eles dizem que escrever também é difícil. Também é difícil se comunicar assim, pela letra cravada no branco do papel. Ela sabe dessa dificuldade, ela sente. Amassa papéis e chora, tem raiva e queima tudo o que já amou - ela é destrutiva e fraca. 

Isso porque sempre pareceu a si desesperadamente defeituosa e incorreta. Incompleta e imperfeita demais para ser revelada no papel. Talvez em partes por essa divisão que já vem cravada entre palavra e gesto, palavra e fato. Entre a palavra e a própria revelação. 

E ela queria tanto se revelar. 

(Revelar, porém, se a gente pensa naquelas fotografias analógicas, é coisa lenta mesmo, não é do imediato. A imagem nunca vem grudada no flash: a fotografia vai surgindo no papel feito uma lembrança, como o mergulhar num sonho)

Sabia que tinha sensações, sentidos e experiências todos dela, algo que poderia ser dividido com os outros! Dividir os próprios erros faz com que evitemos que outras pessoas errem também - é o que ela ingenuamente pensava. Tolices. 

Uma noite, sonhou que um homem tinha vindo visitá-la. Tirou o chapéu (ele tinha um chapéu - que peculiar!), sentou a seu lado. E falou. Acendeu o charuto, apagou. Ao fim da visita, ela havia descoberto que nem toda linguagem é bonita, nem todas as personagens principais são perfeitas e nem toda história termina em final feliz. Apenas por isso recomeçou a escrever.

Ela já rabiscou muita coisa, até gostou de alguns pedaços, mas no fim jogou tudo fora: não era suficientemente compreensível. Não era apenas dor o que queria mostrar, deveria mostrar saídas, aconselhar o mundo a não seguir seu tortuoso caminho. Tola. Mal sabia que a arte não precisa ajudar ninguém. Ela só precisa ser arte, mais nada.

***

Ficar trancada naquela casa às vezes lhe corroía algo além da alma: o estômago. Um vazio a mais a ser preenchido, sem que possamos julgar exatamente qual dos dois é o mais importante. Ela pega uma maçã. Morde, distraída, enquanto procura algo mais. A luz da geladeira é a única coisa que ilumina a cozinha, ela esfrega uma das mãos na blusa de lã, procurando se aquecer, e tira os cabelos desgrenhados da frente do rosto. Era a imagem da desolação.

Por três dias – os três dias equivalentes a um feriado prolongado – ela rastejava pela casa, da cama para o sofá, do sofá para a cama, da cama para a janela. Esses momentos eram recortados por longas passagens pela escrivaninha, rabiscos, papéis na lixeira. Sua vontade de ver outras pessoas era mínima. 

Ela sabia que seus pais não gostariam de vê-la assim, por isso disse que tinha muito o que estudar. Evitava, assim, que eles a visitassem e que ela tivesse de visitá-los. O telefone estava desligado da tomada e o aparelho de celular tinha algumas ligações não-atendidas. Ela apenas atendia quando eram os pais, poupando-se de pequenos transtornos e preocupações. Algumas roupas já estavam há três dias no varal, e as pantufas em seus pés andariam sozinhas se não fosse seu peso sobre elas.

Arrasta-se para frente do espelho enquanto mastiga a maçã. Puxa a pálpebra inferior do olho. A cor está normal. A mãe vivia falando que se não se alimentasse direito teria uma anemia, sempre reclamava quando começava a emagrecer. Mas não era por mal que agia assim. Não era por mal que era triste e contemplativa. Apenas não encontrava sentido nas coisas. 

Além disso, há também o que corrói por dentro. 

Nunca havia percebido essa força até ter que ficar sozinha naquela casa. A solidão é um encontro consigo mesmo e, desde há uns tempos, receava até mesmo olhar ao espelho. Isso porque, vendo-se, via a pessoa que descobriu ser antagonista de sua própria história e, reconhecendo-se assim, desnorteava-se. Como lutar contra si mesma? Como vencer? 

Enquanto raciocina sobre essa batalha, para em frente à janela, mastigando comida requentada encontrada na geladeira. Nesse meio-tempo, uma das duas peronagens de si (a protagonista ou a antagonista?) deixa num canto do prato um pedaço de osso encontrado na morna gororoba. Aquilo podia tê-la matado – ou à outra – mas a primeira, ou a segunda – ou ambas – alguém o encontrou antes de qualquer grave consequência. Essa é a função que esse segundo eu deve desempenhar: matá-la, ou não deixar que se mate, sempre contrariando a vontade e inclinação que o outro eu demonstra em determinado momento.

Sempre foi assim.

Depois de algum tempo gasto em vão, volta para avelha escrivaninha e percebe que, no fim, não conseguiu escrever muita coisa. O feriado vai chegando ao fim e o peito encolhe em angústia. Rotina, rotina,rotina. Tudo voltará a ser repetitivo e banal. Caminhar, estudar, voltar,estudar. 

E sentir o vazio que se espalha. Esse vazio que vem não se sabe de onde e que, em silêncio, teima em crescer. 

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Essa versão de "Do Silêncio" é uma versão reformulada do livro que publiquei em 2009 pela editora CBJE. Estou fazendo pequenas alterações em relação à versão física, considerando tanto estética quanto conteúdo. Espero que gostem! :) 

Ah! Pretendo postar os capítulos semanalmente por aqui, ok? Mas vamos ver. De repente, posto com um intervalo menor.

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