2. De como o silêncio se fez ouvir

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Ao fim do feriado prolongado, todos rolam de volta para dentro do cotidiano. Disfarçam o cotidiano com uma euforia sempre renovada, falando do dia a dia como se fosse uma eterna novidade. Laila olha para todos eles tentando entender o porquê. É sempre tanto barulho... Vai de pé, do serviço à faculdade, aguentando o peso da bolsa com os livros, "o peso do conhecimento", o tio brincou uma vez. Ela abaixa os olhos e sente que odeia todos os sons ao redor, toda essa conversa sobre pessoas, sobre desastres, tristezas, o que seja! Nunca parece ser suficientemente importante.

Uma senhora fala sobre a unha encravada, o cheiro da roupa, a mancha, o sabão em pó. Um homem fala sobre o futebol, o gol, que gol bonito, foi certinho, certinho. Uma mulher fala mal da patroa, do marido da patroa, do filho da patroa. Um velhinho fala sobre o remédio, a tesourinha de cortar os pelos do nariz, a inalação. Lá fora as árvores passam sem que ninguém lhes dê atenção. Há crianças voltando da escola.

Enquanto prende os cabelos em um rabo de cavalo dobrado num meio-coque, ela olha para o lado e percebe que há algo diferente do cotidiano daquele ônibus. Duas pessoas se movimentam com muito vigor, as mãos bailando no ar, criando formas, contornos, praticando a estranha dança do silêncio. Chega a ser difícil acompanhá-los, mesmo que se concentre nessa estranha comunicação.

Uma daquelas pessoas, num determinado momento, vira para o lado e troca uma ou duas palavras com a pessoa sentada ao seu lado. O jovem de pé toca-lhe o ombro, e quando a moça sentada volta a olhar para ele, a dança das mãos continua. Um carro tenta uma ultrapassagem perigosa e buzina. Nessa hora surge a certeza. A grande maioria das pessoas olha na direção do som. O jovem continua impassível, apenas ocupando-se do susto da interlocutora. Ele é um garoto surdo. A percepção desse mundo realmente pode se dar de forma diversa da nossa comum e cotidiana apreensão das coisas.

O jovem vira o rosto e, antes que os olhares se encontrem, Laila deixa de observá-lo e baixa os olhos. Ele não a percebe. Descem do ônibus no mesmo ponto, ele caminha em passos rápidos, ariscos. Para e olha muito para os dois lados da avenida antes de atravessar. Quase corre ao cruzar a pista, guiando-se somente pelo seu objetivo, e some pelas ruas do campus.

Laila segue o rastro do rapaz com o olhar, um vazio crescendo por dentro: é o infinito. Senta-se em um banco, o mesmo no qual sempre espera até o horário da aula, e inconscientemente leva as mãos aos ouvidos, pressionando-os com toda força. Ainda assim consegue escutar os sons abafados que escapam à sua pressão e alcançam seus tímpanos. Como seria não poder escutar nem isso? Como seria observar o mundo, ver os lábios das pessoas se movendo e não receber nenhum som? Ela, pelo instante de um raio, sorri um sentimento de alívio, um alívio mórbido ao lembrar das coisas que se sentia obrigada a ouvir durante o decorrer dos dias. Porém, mal terminou de sorrir e já uma angústia se instalava. E as vozes que gostava de ouvir, a voz da mãe, a risada solta do pai, os sons que sempre a remetiam a tantas coisas boas e amadas, a música!? Onde a música? Como viveria sem música!?

Durante as aulas da noite, Laila fica o tempo todo de ouvidos atentos, completamente desperta. Os sons não a incomodam, nem mesmo os comentários infelizes de alguns colegas. Nada irrita agora. Pelo contrário: Laila se delicia: abre sua percepção e ouve tudo com volúpia e clareza, aspira, absorve, deglute cada palavra solta no ar com a ânsia de uma criança que se lambuza com chocolates. Laila se lambuza nos sons da noite, no grilo, no professor, no carro, na buzina.

Ao fim da aula, a maior parte daquela afetação já passou. Sua imaginação sempre foi sensível e intensa, levando-a a se agarrar a toda e qualquer pequena banalidade que lhe cruzasse o espaço de vida e fazer delas castelos e estórias. Mas seria aquilo uma banalidade? No caminho para casa, o jovem e sua dança de mãos são apenas fumaça que se esvai em sua mente turbulenta: pouco resta de suas existências. Não faz tanta diferença: tudo o que ela deseja agora é submergir na solidão de sua casa pequena, casa de estudante, casa de quem vive do dinheiro dos pais enquanto estuda, sem saber o que fará da vida depois. Seu trabalho de meio período – à tarde – serve apenas para completar os gastos, e para se manter por algum tempo fora de seu mundo isolado. Distancia-se dos outros por sentir-se fraca e excessivamente intensa, mas imiscue-se por saber que, sem contato humano, também não prosseguiria. Às vezes é necessário subverter a solidão.

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⏰ Última atualização: Apr 10, 2018 ⏰

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