A mesa da sala já estava posta para o jantar, mas Antônia esperava o pai para que a refeição fosse servida. Ela andava de um lado para o outro, seus passos ecoando no piso de cimento queimado, enquanto dona Cida tentava acalmá-la.
— O meu pai não disse mesmo para onde iria, dona Cida? — a moça perguntou, roendo a unha do indicador direito.
— Não, menina — a empregada respondeu pela terceira vez.
Lúcia terminava de arrumar a cozinha, mas estava atenta à conversa na sala, a voz aflita de Antônia soando como uma melodia suave aos ouvidos da moça. Seria muita sorte se, no dia em que ela pôs os pés na fazenda, algo acontecesse ao Coronel sem que a jovem precisasse intervir.
— E Manuel que não chega! Ele com certeza sabe onde meu pai está!
Lúcia espiou a sala outra vez e viu a preocupação escurecer o semblante de dona Cida assim que Antônia mencionou o nome de Manuel.
— Pai! — Antônia exclamou, assim que a sombra do Coronel apareceu na soleira da porta. — Onde o senhor estava? Eu fiquei preocupada!
O homem pendurou o chapéu no gancho de ferro que havia ao lado da porta e virou-se para a filha. Ele havia mudado muito, desde a última vez que Lúcia o vira. Os cabelos estavam ralos e grisalhos, o rosto queimado do sol tinha várias marcas de expressão e camisa quadriculada evidenciava a barriga proeminente.
Lúcia cravou as unhas curtas no reboco da parede, tentando conter o impulso de rasgar o pescoço do Coronel. Tinha sonhado com aquele encontro durante anos, desejado que ele cruzasse o caminho dela outra vez e agora os dois estavam ali, sob o mesmo teto. O ódio borbulhou-lhe o sangue e a moça se virou para a cozinha, os olhos parando na peixeira secando sobre a pia.
A moça se viu pegando a faca, a lâmina brilhando, seus passos a levando até a sala, o Coronel encarando-a com as sobrancelhas franzidas, seu golpe certeiro cravando a peixeira na jugular dele, o homem caindo de joelhos, os gritos histéricos de Antônia, dona Cida cobrindo o rosto e Lúcia sorrindo, enquanto o sangue tingia a roupa do homem.
Ela não viu dona Cida se aproximar, dando-se conta da presença dela apenas quando a senhora pegou em seu braço e a arrastou para um canto da cozinha, praticamente a enfiando no vão entre a parede e o armário de madeira escura, onde a ouça era guardada.
— Fique aqui! — a senhora falou, segurando os ombros de Lúcia.
O sangue da jovem ainda estava quente pela raiva, mas ela respirou fundo, tentando se controlar. O olhar da empregada indicava que ela não admitiria uma recusa e Lúcia achou melhor concordar por ora, afinal não queria que a mulher desconfiasse das intenções dela.
Dona Cida pegou as panelas no fogão e levou para a sala, enquanto Lúcia voltava a atenção para conversa no outro cômodo, a voz suave de Antônia soando mais alta do que antes:
— Como assim casamento, meu pai?
— Isso mesmo que você ouviu, Antônia. Acertei os últimos detalhes e você se casa com Otávio Guimarães daqui a um mês.
Lúcia deu dois passos para o lado e conseguiu ver quando a jovem torceu as mãos e falou, a voz angustiada:
— Eu não quero me casar com aquele homem! Eu mal o conheço, só o vi duas vezes e ele deve ter o dobro da minha idade!
— Besteira, Antônia. A união de vocês vai ser ótima para a fazenda.
Lúcia viu a tristeza nublar as feições delicadas da jovem e ela abraçou o próprio corpo, saindo do campo de visão da moça. Ela achou que Antônia que tinha se sentado à mesa, mas a pergunta de dona Cida lhe indicou o contrário:
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Sob o Sol do Sertão (PAUSADA ATÉ OUTUBRO DE 2018)
Ficción históricaQuando era criança, Lúcia viu o pai ser assassinado e a irmã se suicidar por culpa do Coronel Alcântara. Depois, ela assistiu à mãe definhar, incapaz de suporta a dor de perder a filha e o marido. Agora, oito anos depois, Lúcia chega à Fazenda Macam...