Espero que chegue aí

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Oi.
Bom, se o senhor ta lendo isso é porque ainda estou viva. Sim, eu sobrevivi e já fazem dois anos que tenho lutado por isso.
Não era fácil ficar naquela casa e nossa, pelo amor de Deus, como aguentar aquela mulher? Ela é louca! Ela nem esperou o seu corpo esfriar e já levou um cara mais doido que ela pra morar na casa do vovô, meu! Eles dormem na sua cama, colocaram o "projeto de filho" deles pro meu quarto e como se não bastasse, queriam que eu reparasse e cuidasse do demônio em forma de criança, acredita?
Então, por conta disso, acabei me mudando e estou morando sozinha agora.
O apartamento é pequeno, mas é o que eu posso pagar.

O Nescau morreu, pai... O senhor viu ele por aí por cima? Foi muito difícil pra mim, conversava muito com aquele neguinho e fez um apartamento pequeno e mal mobiliado, ficar ainda maior e vazio.

Eu to tentando pai, juro! Bom, estou dando meu jeito. Claro, não é aquele jeitinho moleque a palhaço de uns 17 anos atrás mas tenho tomado direitinho os remédios. Quer dizer, os que eu consigo comprar, porque o salário da sorveteria não tem suprido tanto e as vendas da lojinha estão bem devagar.
Eu ainda não mexi em nada da herança, deu o maior problema com um show básico que a Cristina "tinha" que dar, né? Ela ficou inconformada com a leitura do testamento e ver que o senhor não tinha deixado nem um centavo à ela. Eu confesso que fiquei surpresa, tanto com o fato dela não receber nada e também pela quantidade. Era uma grana e tanto! O senhor guarda muito bem, meus parabéns!

Ah! Eu estou no último semestre da faculdade e não vou deixar seu caso ficar arquivado por muito tempo não.
Ontem foi jogo do nosso time, eles estão na final de um campeonato paraense. Eu não consegui ir, pai. Na verdade, pra ser sincera, tem uma série de coisas que eu não consigo mais fazer depois que o senhor se foi.

Semana passada me chamaram pro karaokê, eu forcei a ida. Eles queriam fazer duplas e elogiaram minha voz dizendo "nossa, que voz linda, parece que fez curso!" Eu sorri engolindo o choro com o punho fechado. A minha vontade era dizer que puxei pro senhor. Era dizer o que o senhor sempre dizia "fez curso na barriga, essa nega!"
Então, como se fosse pouco, na minha vez tocou a minha música. A nossa música. Aquela que o senhor cantava enquanto me empurrava no balanço e que, por serem tantas as vezes, eu acabei aprendendo. Nossa, Benito di Paula deve ter se perguntado por que não nos chamou né? Éramos muito bons nessa música.
Eu fechei os olhos, respirei fundo e comecei. A voz estava ainda um pouco presa, me sentia ofendendo o senhor cantando nossa música em um dia tão nosso então parei.

Contei até 3 mentalmente, como a gente fazia quando a música se dava o início.

Eu respirei e foi quando fechei os olhos: eu o vi, pai! Eu vi o senhor com aquela "camisa de ir pro karaokê", xadrez preta e branca e abotoada até o último botão, terminando a primeira estrofe e fazendo uma menção com os braços, gesticulando como quem apresenta uma princesa e fazendo com que eu entendesse que era a minha hora, era o momento de eu dar início a ponte que levaria ao refrão.

Eu engoli seco umas três ou quatro vezes e pensei em desistir. Não, pai, aquela música era só nossa, não era pra ser dividida com muitas pessoas assim, mas foi na última respirada pro fim da ponte que eu resolvi cantar, por questão de honra, aquele refrão. Foi com tudo que eu tinha, pai. Foi com força, vontade e aquela lembrança de nós dois que eu simplesmente fui.

O bar ficou em silêncio quando eu comecei:

"Mas chegou o carnaval,
E ela não desfilou,
Eu chorei na avenida, eu chorei.
Não pensei que mentia a cabrocha, que eu tanto amei"

Não parei por aí, pai. Na segunda vez o Rafael gesticulou, me entregou o microfone e cantei sozinha, terminei em lágrimas e com o bar inteiro me aplaudindo de pé. Foi bonito e acho que o senhor se orgulharia de mim.
De um nós que nunca acabou.

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⏰ Última atualização: Jan 14, 2019 ⏰

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