Linhas

2. Ordem

"Já estamos com saudade! Você não está perdendo nada aqui nessa aula chata! Ah, não se esquece de nos mandar várias fotos, e aproveita o momento!"

A vida é realmente uma dança de ironias, quando se está na aula chata quer viver uma aventura em outra cidade, mas quando se está diante um futuro inesperado, o que seria uma aventura em outra cidade, tudo que se deseja é o conforto da sala de aula. O voo foi bastante tranquilo, Gustavo esboçou um sorriso, após algum tempo, olhando o céu pela janela, e isso era um avanço considerável. Ao desembarcar Rafa logo avistou a família, e assim como seu pai pode se permitir sorrir um pouco.

- Olha! A minha avó chegou!

Não só a avó de Rafaela tinha chegado, mas uma parte da família, como tias e mais dois primos, a primeira a ir correr para o abraço foi a sua mãe, que logo caiu no choro, o que não era novidade já que Fabíola não via a mãe há dois anos – às vezes a gente teima em esquecer que toda mãe também é filha, toda mãe carece de um colo também. Dona Irmá continuava a mesma, com uns cabelos brancos a mais, porém sempre gentil e atenciosa aos detalhes mais clichês possíveis.

- Você está magra, Rafaela! Não tenho razão, Carla? – olhou para a sua tia

- Ela só cresceu mais um pouco, mamãe! Vai ser alta como toda a família do pai! – abraçou a sobrinha cochichando em seu ouvido – Você está linda! Que cabelo maravilhoso!

- Vamos! Vamos! Acabou a sessão de abraços, tem muita gente esperando vocês para almoçar. - disse Carla.

- Em pleno a quinta-feira tem gente esperando para almoçar? Meu Deus!

- Minha filha merece uma recepção a altura, não estou certa Gustavo?

- Ela mereceu tudo de bom e do melhor. – deu um sorriso de canto de boca, um pouco amarelo, com a consciência o acusando e constrangendo ao mesmo tempo. Era culpa dele que tudo estava acontecendo, ele poderia ter se esforçado mais e conseguido um emprego melhor, ele poderia ser um homem melhor, realmente Fabíola merecia mais, mas tudo que tinha era ele que em tudo era meeiro, sua esposa deu-lhe a mão, entrelaçando os dedos que por segundos ele esqueceu todo o vendaval que estava na sua mente.

Quando chegaram para o almoço o cheiro da comida atravessava os vãos da casa, nada mais típico que uma boa comida baiana, para alguns a comida significava "bem vinda de volta" para outros um choque cultural. Todos na mesa estavam radiantes, cheios de perguntas, e amor para dar, toda hora ofereciam a eles alguma coisa.

- Um pouco de pimenta?

- Quer mais suco ou refrigerante?

- Rafaela tá mesmo em que série?

- E os namoradinhos? – Você não achava que essa pergunta ficaria de fora, não é mesmo?

A família Abreu ainda tinha muito para organizar, entender, e compartilhar, e embora tudo fosse diferente ali também era lar, tinha aconchego, um abrigo para esperar a chuva passar, o que todo mundo precisa nos dias ruins. Juntos eles pareciam família de margarina, narrando sobre eles os fazem parecer excepcionais, mas é a nossa obcessão, caro leitor, pelo excepcional que os fazem parecer excepcional, eles são extraordinariamente comum. Uma dona de casa, mais um marido desempregado, com uma filha à beira dos dezoito e em crise emocional, há algo novo debaixo do sol?

Uma semana depois tudo já estava sendo encaminhado ao seu devido lugar, Rafaela matriculada em uma escola, eles se ajeitaram na casa de cima dos pais de Fabíola que estava vazia algum tempo, e pai começou a trabalhar com José, um homem calmo, velho e sábio. Por mais que fingisse Rafaela ainda reclamava o dia todo, estava sempre muito quente, ela não tinha amigos, seus primos eram grudentos e chatos, e sua vó implicava em todo tempo com o tamanho da sua roupa, às vezes chegava a ser ignorante e no fim do dia tinha discussões que terminava com ela no quarto chorando dizendo que ninguém a entendia. Ser levado para um lugar de escassez é ver que tudo aquilo que você venerava era sofisma, ilusão, um mero oásis que nunca matava a sede de ninguém, eram mentiras que só escravizavam.