Todo mundo sabe que a única certeza da vida de qualquer pessoa - seja ela uma pessoa abastada, cercada de amigos, ou uma que vive isolada do mundo, preso em sua própria bolha de escapismo - é a tão temida e imprevisível morte. Ela pode aguardar, pacientemente, por toda a sua vida para encontrar um momento de fraqueza seu, virar o seu mundo de pernas para o ar, drenar toda a sua força vital e psicológica, encurralá-lo e, quando você menos esperar, cortar a sua garganta e vê-lo agonizando de dor e pavor ao perceber que a sua vida está escorregando pelos seus dedos, como o sangue a jorrar de uma ferida aberta.
Quando a vida perde o sentido e você se sente estático no mundo, como lidar com o desejo de dar um ponto final em tudo? Como silenciar e bloquear os impulsos destrutivos? Como impedir que a viúva carmesim da depressão te puxe cada vez mais fundo?Nesses últimos meses, eu tenho sonhado comigo mesmo preso numa sala de paredes negras, sem janelas, sem qualquer contato com o mundo externo. Estava sentado em uma cadeira de ferro, com meus pulsos acorrentados. Minha visão estava completamente embaçada e estava muito fraco e enjoado, como se eu estivesse acordando de um porre muito forte de sedativos.
" Hush little baby, don't you cry,
Momma's gonna sing you a lullaby.
Hush little baby, don't say a word,
Momma's going to buy you a mockingbird..."De repente, ouço uma voz com um timbre sedutor - uma mulher de vestido vermelho se aproxima de mim cantando uma velha canção de ninar. Ela começa a acariciar o meu rosto com certo desdém, como se quisesse zombar da casca vazia que aquela pessoa havia se tornado. Ela andava ao meu redor dizendo que eu era um fracasso, um homem solteiro, desalentado, largado como se fosse um vira-lata num mundo selvagem sem amor, um trapo velho largado em meio ao lixo.
– Olha só o que temos aqui... – rindo sadicamente da minha aparência acabada e indefesa – aquele que se achava o machão e dono da porra toda. E então, senhor todo-poderoso, como se sentes?– Quem é você? – A tontura e o enjoo tornaram minha pergunta quase irreconhecível, como se fosse um sussurro bem baixo, quase inaudível.
– Ora, ora, ora, não me reconheces? – Ela se aproxima ainda mais, tão perto que posso sentir seus cabelos longos tocarem minha testa – Aquela que te fez chegar aonde chegou. Não acredito que depois de tudo que fiz por ti, o senhor ainda me tratas como se eu fosse uma total desconhecida?
Ela me dá um tapa bem forte na cara. A dor foi tanta que ela me acordou do transe no qual estava. Minha visão, um pouco mais cristalina, me mostra uma mulher linda, daquelas que seriam consideradas inalcançáveis por muitos homens. Seu vestido vermelho carmesim parecia enaltecer suas curvas mortais e sedutoras, e seu rosto, de perfeição e beleza admiráveis, tinha aquele toque que deixaria qualquer um louco de amor por ela instantaneamente. Cá entre nós, se ela existisse no mundo real, teríamos rios e mais rios de marmanjos querendo tirar uma casquinha desse pedaço de mau caminho.
– Acordaste, Bela Adormecida? Que bom saber que estás bem e alerta. Continuando – Ela pausa seu discurso para respirar fundo. – Você tem sido um fardo, pior, um estorvo para seus pais e seus amigos. Chegaste tu aos trinta anos e ainda agarrado às saias de seus parentes? Eu, na sua idade, já estaria casada, com filhos, família e um bom emprego. Você é uma vergonha! Você é um perdedor sem remédio, um completo idiota que não será nada na vida. Você realmente merece adormecer e nunca mais acordar...– Chega.
A dama de vermelho percebe que eu queria me comunicar com ela. Contudo, qualquer reação minha é motivo para ela tirar ainda mais sarro. – Hum? Como é que é? Ouvi você falar comigo? O que houve, seu merdinha, você quer me contar alguma coisa? Fale mais alto!
– CHEGA! – Urrei a plenos pulmões. – Você não sabe o quão difícil minha vida está. – Por um momento, eu pude sentir minha garganta arder intensamente, como se alguém tivesse tocado minhas cordas vocais com um pedaço de ferro incandescente, fazendo-me desejar não ter usado tudo que havia sobrado de mim para gritar. Apesar do volume, minha anfitriã não se abalou com o grito, apenas riu baixinho da minha tentativa falha de intimidá-la.
– Eu não sei? Ora, queridinho – Pude perceber um tom de deboche em sua voz. – Eu sei sim. Eu sei de tudo. Eu sei como pessoas falhas como você desmoronam. Eu sei de todos os seus defeitos e posso lê-los como se fossem a palma da minha mão, gracinha. Você pode aparentar ser uma pessoa forte e determinada por fora. Todo mundo, porém, sabe que qualquer ser humano é um ser tão frágil quanto o sapatinho de cristal daquela inútil da Cinderella.
Sem mais nem menos, o seu discurso muda de tom, passando da predominância da raiva e brutalidade para um tom mais doce e suave. É como se ela tivesse trocado subitamente de personalidade ao simples toque de um botão.
– Olha só para você... Quando você era jovem, você era tão alegre e cheio de vida. Mas conforme foi crescendo, as expectativas das pessoas a sua volta foram corroendo sua alma, não é? – Ela se ajoelha e segura gentilmente minha cabeça e tinha seu olhar fixo em mim, como se aquela pessoa passasse a ter um pouco de compaixão. – Coitadinho. Como você conseguiu aguentar por tanto tempo?Passando a sua mão, de pele suave, aveludada e branca como o mais puro marfim, pelo meu braço, como se fizesse um carinho, ela me dizia que era a única solução para o problema que dominava minha mente, que ela era a única que poderia me tirar daquele estado. Ela para por um momento para admirar a face de sua companhia. Seus olhos tinham um tom de esmeralda bem desbotado. Apesar de sua aparência mundana, seu olhar era bem penetrante.
– Sabe, meu docinho de coco, você poderia vir comigo – dizia ela. – Poderíamos fazer coisas bem mais divertidas fora dessa prisão. Vamos, venha... Liberte-se dessas amarras, livre-se desse peso. Eu posso te ajudar.
Enquanto ela me desamarrava, seus lábios avermelhados e sua voz melodiosa cantavam a última estrofe... Com todo cuidado, ela me ajudava a levantar. O toque suave de suas mãos era como um remédio para minha alma, era como se ela tornasse aquele ambiente frio e sem vida um pouco mais acolhedor.
"And if that dog named Rover won't bark,
Momma's going to buy you a horse and cart.
And if that horse and cart fall down,
Well, you'll still be the sweetest little baby in town.
Hush little baby, don't you cry,
Momma's gonna sing you a lullaby."Ela me dá um caloroso abraço, desvencilhando todas as minhas últimas defesas, e quando menos esperava,ela puxa uma faca e corta minha garganta com um único movimento. Caio de joelhos, segurando meu pescoço, tentando em vão conter o sangramento... E no último momento da minha vida eu percebi que a verdadeira identidade daquela mulher era a morte. E ao me observar gemendo e contorcendo de dor, ela empurra meu torso com um chute dizendo-me as seguintes palavras:
– Descanse em paz, tolinho... Obrigado pela diversão.
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Viúva Carmesim
ContoDizem por aí que a depressão é apenas tristeza, mas não é. Quando a vida perde o sentido e você se sente estático no mundo, como lidar com o desejo de dar um ponto final em tudo? Como silenciar e bloquear os impulsos destrutivos? Me contaram uma vez...