Vida roubada

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Quando o último episódio da primeira temporada da nova space opera acabou, os pais desligaram a TV e foram pros seus quartos coçando os olhos, mandando os meninos fazerem o mesmo. As crianças saíram da sala comentando rapidamente a respeito do que viram e do que queriam ver, adiantando a conversa do café na próxima manhã.

O homem levantou-se da cama cinco minutos depois que sua mulher adormecera, dirigindo-se até os quartos das crianças na expectativa de flagrar qualquer uma delas no celular ou no PC, e aplicar seu ensaiado sermão. Mas olhando embaixo da porta não viu nenhuma luz. Nem ouviu ruído algum quando seu ouvido tocou a madeira. Elas dormiam como combinado, cansadas da maratona.

Ao passar pela cozinha voltando pro seu quarto sentiu o costumeiro arrepio que agora o acompanhava sempre. Arrepio que começou no dia em que, sozinho em casa, foi ao banheiro mijar, e, ao entrar e fechar a porta, imediatamente a viu e a ouviu tremer inteira, como se alguém do outro lado a esmurrasse desesperadamente com as palmas das duas mãos. De imediato abriu novamente a porta, em choque, mas não havia ninguém fora. Ninguém em toda residência. Resolveu não contar aquilo para a família ou amigos, nem quando estivesse bêbado, nem para o psicólogo.

Frustrado o flagrante nas crianças, o homem voltou pro seu quarto com a sensação de que havia ladrão em casa, observando e aguardando. Tentou tirar da cabeça este medo que, afinal, se tornava mais cotidiano na vida de todos e causava pânico nos mais suscetíveis. Não queria ser suscetível. Deitou em sua cama, abraçou sua esposa e adormeceu rápido. Amanhã seria Segunda.

Mesmo que não houvesse a luz do abajur de tomada acessa no quarto seria possível ver a sombra se adensando ao lado daquela cama. Emergindo debaixo dela para formar o semblante vago e escuro, quase sem contornos, de um homem velho e alto, porém ainda forte, que ficou a observar o casal por aproximadamente uma hora, até finalmente sair da casa num deslizar lento. Enquanto ali, resistira, recolhendo a própria mão sempre que esta, atrevida, tentava tocar uma parte do corpo da mulher. Ou o pescoço do homem. Era uma sombra triste e abatida que lutava contra si mesma.

***

Ainda madrugada, um bar estava aberto. Poucos conhecem o suficiente para acreditar naqueles frequentadores e no próprio bar. Menos ainda são capazes de enxergá-lo. Nele uma escada interna leva à lage, com mesas e cadeiras. Ali em cima, onde o céu é imprensado por longos prédios burocráticos, a sombra negra — ainda mais abatida — conversa com uma mulher.

— Você precisa saber que aquela vida não mais voltará. Disse a dona. Mas isso ele sabia bem. Bebeu outro gole, inconformado.
— Já fazem anos aqui, décadas lá. — respondeu — Nunca a esquecerei. Foi dela que lembrei quando estava... Sua memória me manteve minimamente são, me ajudou a fugir. Ele tem filhos com ela! Meus filhos que nunca tive! Como é possível?
— Se eu soubesse estaria no Conselho vivendo bem. Ouça, a Corte precisa ser informada que as crianças existem, você sabe os riscos...
— Se avisarmos somente agora seremos exilados, ou coisa pior.
— Podemos mentir. Sempre podemos.

Beberam mais um gole. Passaram alguns minutos em silêncio. Em seguida a sombra abandonou o copo ainda meio cheio na mesinha. Virou o rosto para o lado e chorou um pouco, sem fazer barulho. Contra a luz dos prédios seu rosto era humano, muito parecido com a do arrepiado pai que visitara há pouco. Porém mais velho, mais sulcado e embrutecido. Reunia aquela dor temporal que se inscreve na pele depois de anos de sofrimento e privação, que normalmente vemos apenas nas pessoas dos documentários.

— Eu vou matá-lo —anunciou em voz vacilante — e não importa o que o Juízo faça ou diga! Ele roubou toda minha vida, meu emprego,se casou com minha mulher! Tem o diploma que é meu, meus amigos! E ele é só um pedaço arrancado da minha réstia, eu quem sou de verdade! Eu, inteiro! Vou acabar com aquela aberração!

E chorou novamente. Acalentado pela amiga, que sempre o acalentava quando dizia estas mesmas palavras. Mesmo se o matasse, não recuperaria a vida que lhe tiraram. Sabia que seria irreconhecível depois de tantas décadas de pesadelo. Sabia porque sua namorada foi a primeira pessoa a quem procurou quando retornou do cativeiro. Só para encontrá-la com outro homem: ele mesmo.

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⏰ Last updated: Apr 22, 2018 ⏰

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