A Contadora

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Ela trabalhava em uma grande empresa. Tinha um emprego simples, de colocar números em ordem, que ela, dentro dessa ordem, via os detalhes que aprendeu no curso noturno de contabilidade. Gostava da forma redonda que os números sempre faziam, e como ramificavam-se como vinhas sobre o papel quando ordenados. Números, como ela, gostavam de círculos. Fazia mágica ordenando-os por cores; azuis à esquerda, vermelhos à direita. Mas era uma boa empresa e ela quase nunca precisava lidar com os vermelhos.

Ela era silenciosa na maior parte do tempo. Rosto ovalado e branco como porcelana, cabelos curtos de um tom estranho de vermelho. Ponta do nariz minúsculo sempre reluzente, como a lâmpada de um cômodo onde se revelam fotos. Sempre acesa e cor-de-rosa, como um alerta à aproximação dos outros. Os óculos? Uma marca registrada. Ela os trazia pendentes na pontinha do nariz redondo e pequeno - tal nariz, tal óculos. E ela trabalhava sempre em silêncio.

Mais muda que uma planta, diziam os colegas, e ela balançava a cabeça. Que uma planta? Santa ignorância.

Costumava se curvar sobre as planilhas e só levantava quando o estômago roncava. Ignorava a algazarra alegre dos colegas do escritório, das risadinhas e vínculos transitórios. Observava, às vezes detrás das pequenas lentes, como alguns falavam mal dos outros, inventavam intrigas e também se apaixonavam. Quando se apaixonavam, riam mais. Se em segredo, riam menos.

Foi mais ou menos isso que aconteceu com a doce secretária. Ela passou a sorrir menos quando o chefe começou a ignorá-la. Viu de sua mesa, detrás das planilhas, como a moça perdeu medidas e a roupa começou a dançar sobre o corpo. Nesse dia Margô se levantou no meio da planilha e se uniu à turma barulhenta, estacionada ao lado do cafezinho. Eles não eram tão barulhentos ao seu redor, eram até bem silenciosos. Com o mais tímido dos sorrisos, Margô disputou com os colegas um espaço na bancada, ferveu a água e a adicionou o pozinho verde que trouxe embrulhado em um lencinho. O cheiro atraiu os curiosos:

— Parece orégano — disse um. — Não, é estragão — falou outro.

Ela deixou que tentassem adivinhar. Não seria fácil descobrir, dentre as 390.954 espécies de plantas no mundo, quais havia misturado ali.

O chazinho amarelo, mais cheiroso que a camomila, foi oferecido à outrora sorridente secretária. Um sorriso selou a oferta, e a partir daí o amor deixou de escapar da moça como suor pelos poros. Uma plantinha mirrada, chamada Fecha-Corpo garantiu que ele, esse sentimento gasoso, ficasse ali, guardadinho no organismo ferido, parando de transbordar por quem não a quis. E naquele dia, antes de deixar a sala, ela ajeitou o óculos e desligou o computador. Da secretária recebeu um abraço.

No ônibus ela foi vendo o céu tornar-se da cor da ameixa, até o fundo do mar azul. Ao contrário da Grande Mãe, que tossia raios e ameaçava o mundo com uma tempestade, Margô seguia em paz. Preocupava-se, no entanto, com o cansaço da Mãe. De ônibus, sentadinha na janela, se perguntava em que pedaço desse Globo azul feminino surgiria aquela que um dia falaria por Ela. Duas coisas ela sabia:
1) seria uma mulher,
2) essa mulher uniria a alcateia.

A ela, simples bruxa urbana, restava a espera.

Margô se levanta, ergue o braço e dá sinal. Gentilmente atravessa o mar de gente segurando a bolsinha simples ao lado do corpo. É cuspida do coletivo lotado na frente do velho edifício de cinco andares. Aperta o casaco de lã ao corpo, alisando as lhamas coloridas que enfeitam a cintura arredondada. Não apressa o passo com medo da chuva que vem, na verdade sente pena que dessa vez chegou cedo demais.

Na portaria cumprimenta o porteiro. Velhinho, o senhor pousa a mão sobre a dela quando ela para para perguntar sobre a sua dor nas pernas.

— Ah, dona Margô, a dor tá forte demais. É esse corpo que tá ficando velho...

— Tenho um unguento para o senhor — ela diz — Trago aqui daqui a pouco.

—  Eu busco lá em cima, se preocupa não.

— Imagina, Seu Isaías. O Sr. sabe que eu sempre trago.

Ele sabe. Tem sido assim pelos últimos vinte anos.

Margô sobe as escadas de madeira. Para no terceiro andar, na frente do 301. Ouve, enquanto procura as chaves na bolsa, o rapaz do 302 se mexer atrás da porta. Ele a olha pelo olho mágico. Assim que a chave dela se encaixa na fechadura, a porta dele se abre.

— Ah, Dona Margô. Queria mesmo falar com a senhora.

Ela fecha a porta.

— Sim, Sr. Fernando?

—  Estava de saída, olha a coincidência. Nunca nos encontramos por aqui.

Margô sabe que não é verdade. Ele sempre está lá, atrás da porta.

— Quer ajuda com a sacola? — ele pergunta.

Margô olha para o bornal murcho e responde:

—  Tá leve, precisa não.

Fernando olha para a porta, e ela ajeita o óculos sobre o nariz.

—  Está com visitas? — Ele chega mais perto. —  Achei ter ouvido um ruído durante o dia.

— Será? — ela continua com uma mão na maçaneta.

— Não quer que eu dê uma olhadinha para assegurar que está tudo bem?

— Deve ter sido o meu gato.

— A senhora tem gatos?

— Três. São de estimação.

Como ele não arreda o pé, ela sugere: — Se você se sentir melhor, pode ver que não estou mentindo.

A porta abre devagarinho. A penumbra revela o hall bem arrumado e cinzento, de paredes lisas e peladas. Fernando entra com ela, olhando atentamente para o estranho e barulhento apartamento da vizinha. Um gato surge de um dos cômodo, seguidos de dois outros. Eles se acomodam na frente da porta, postura de esfinge e rabos delicadamente descansados ao lado do corpo.

Fernando tenta decifrar o apartamento. O que ali poderia ter esse cheiro pungente de mato? Tudo o que vê é um hall, três gatos e uma senhorinha que gosta de andar olhando para baixo. Ele se desculpa e sai de ré. Entra no 302 e fecha a porta.

Lentamente ela fecha a sua também. Por segurança, passa a chave.

— Ok, ele já foi — diz para os gatos.

E o hall, tão bem construído na mente do vizinho, se desfaz. Samambaias frondosas voltam a despencar do teto, árvores robustas ressurgem nos cantos e o mato toma o chão até as canelas. Margô tira as sapatilhas e exala, aliviada. Estava sentindo falta da terra.

Um caminho de pedras brilhantes demarca a trilha até a cozinha. Os três lobos, ainda deitados, observam Margô pendurar o bornal em um tronco e o casaco sobre o arbusto espinhoso, o que restou do último pedaço da parede cinza do que um dia foi — ou nunca foi — um apartamento.

— Desculpe — diz quando passa pelos lobos. — Mais um curioso.

Desinteressados, os lobos se levantam e desaparecem na planície. Margô toma a trilha em direção à horta, onde a planta certa será colhida, socada no pilão e transformada em unguento. Tadinho do seu Isaías, pensa sumindo em uma curva na floresta. Tadinho.

Contos da Jornada - A ContadoraOnde histórias criam vida. Descubra agora