APARTAMENTO

57 0 1
                                    

No começo de 1974, morando em Santos, a família Rubens Paiva já não tinha qualquer
esperança de que o homem da casa estivesse vivo. Os boinas-verdes desse país continuavam
afirmando que ele fugira.
E como diz a música: “Começar de novo...”
Santos não afunda porque merda boia. Então viemos morar em São Paulo definitivamente (de
onde nunca devíamos ter saído). Minha mãe conseguiu transferência pra Faculdade de Direito
do Mackenzie. Eu fiz um vestibulinho pro colégio da burguesia paulista e passei (muito mais
pela influência do meu tio, que era advogado do colégio, do que por meus dotes). Veroca já
estava na USP. Nalu e Big foram pro Colégio Bandeirantes, e a Eliana fazia cursinho.
Era a época da febre imobiliária no Brasil, e a melhor maneira de investir dinheiro era
comprar imóveis. O que meu pai deixara deu para comprarmos um “Gomes Almeida
Fernandes”, no Jardim Paulista. Só que, devido à falta de grana, compramos o apartamento na
planta, isto é, o prédio ia começar a ser construído.
Alugamos um apartamento a duas quadras do “Gomes” e esperamos a eficiência dos
trabalhadores, pedindo pelo amor de deus que não atrasassem as obras.
Lembro-me de ficar horas e horas em frente à construção, vigiando, orgulhoso por ter a
primeira casa própria da minha vida (até então, pagávamos aluguel).
— Prega bem essa tábua aí, ô meu — ficava alertando, imaginariamente. Um dia, quando tudo
estava pronto, subi os nove andares a pé, pra curtir a nova toca.
O prazo foi cumprido, e, antes mesmo de mudarmos, ia lá todos os dias com um livro debaixo
do braço e ficava lendo no meu futuro quarto (é uma delícia apartamento sem móvel nenhum).
Era um prédio típico da época em que vivíamos, a ascensão da classe média no Brasil (para
nós, a decadência da burguesia). Fachada em estilo colonial, como outros quinhentos em São
Paulo. Tinha até uma piscina no térreo (de meio metro, mas tinha). Salão de festas, salão de
jogos (com uma mesa minúscula de snooker). O apartamento era grande: quatro quartos, uma
sala espaçosa que tinha até terraço (só cabiam duas pessoas, mas era terraço). Enfim, tinha
todos os elementos de um edifício chique, pra gente com uma renda não muito chique.
Morei três anos nesse apê, depois fui pra Campinas e passava alguns fins de semana nele.
Agora, estava de volta, meio contra a minha vontade, mas o que poderia fazer? Morar em
república campineira, do jeito que estava, nem por pensamento.
Acordei antes do anoitecer. A porta do quarto estava aberta. Percebi que tinha uma multidão
na sala, mas não chamei ninguém. Precisava de um tempinho só, para raciocinar direito sobre
minha nova condição.
Incrível a diferença do meu novo mundinho. O teto parecia encostar no meu nariz, de tão baixo
que era. Erro meu, o teto estava na altura normal. É que três meses de hospital, onde o pé-
direito era altíssimo, tinham me acostumado mal. A impressão que tinha é que estava dentro
duma caixa de sapato. Tudo branco, pequeno, bem aconchegante. O som abafadíssimo (chão acarpetado). Dava pra ouvir o barulho do trânsito da rua, apesar de estar no nono andar.
Lembrei-me de que, bem em frente ao prédio, tinha um sinal. Fazia barulho de carros parados
com motor ligado.
Gostei da sensação de normalidade que dava aquele barulho de trânsito. Realmente eu estava
em casa, apesar da altíssima cama de hospital. Minha mãe fazia jus à sua fama de caprichosa.
Colocou uma cortininha cheia de flores, comprou um abajur bonitão (desses que parecem de
ficção científica). Havia uma poltrona forrada com o mesmo tecido da cortina (estava
começando a me sentir numa floricultura).
As paredes, limpíssimas, mais brancas que dente bem-escovado. A televisãozinha da Teté
estava em cima de uma típica mesa de doente. Meu potente e supersônico gravador, ao lado da
cama. Levantei o lençol e pude ver que estava tudo em ordem com a borracha que entrava
dentro do meu pinto (a terrível sonda). Acompanhei o caninho até a borda da cama. Não
conseguia ver onde aquele xixi desaguava (ou melhor, xixiaguava). Devia ter uma garrafinha
pendurada na cama, como no hospital.
A cabeceira da cama dava pra porta do quarto, deixando-me a visão da janela livre. Ficava de
costas pro armário embutido. O ruim é que não via a porta, não podia controlar a entrada das
pessoas no meu quarto. Tinha até um vaso de samambaias numa mesinha redonda. Que
bonito...
— Filhinho, está acordado? — era minha mãe cochichando no meu ouvido.
— Ah, mais ou menos.
— Está aí a tua nova enfermeira. Ela quer te ver.
— Ah!
— É uma alemãzona bonita, loira de olhos azuis.
— HUUUUMMMM!
— Posso deixar entrar?
— Não!
— Por que não?
— Hoje não estou “afins”.
— Tá bom, então amanhã ela começa a trabalhar bem cedo. Se prepara, que ela é pontual.
— Tá.
Loira de olhos azuis, uau! Será que arrumei uma Farrah Fawcett? Que tesão, hein? Já imaginou
se for uma tremenda gatona quem vai me dar banho?
— Hora de papá — entrou a Nana com um prato saindo fumaça.
— Gracinha.
— Chuchuzinho.
— Gostosinha.
— Tico-tico (a Nana sempre me chamou assim, tico-tico, não sei por quê).
Ah, comida caseira... que saudade. Temperada, salgada, acebolada, já não aguentava mais o
rango do hospital. AAAHHH feijão, a grande curtição nacional. Há três meses não via feijão.
Sobremesa, podia escolher. Vejam só, escolher a comida que quisesse. Que luxo, que
liberdade. Tinha até cafezinho.
Havia umas visitinhas na sala, mas, em respeito ao meu dia agitado, deixaram-me descansar.
Nana, Gorda e Big já eram suficientes pro meu sossego. Iam todas dormir comigo. Portanto,
vimos TV até mais tarde e tchan-tchan-tchan-tchan...
Chegou a hora. Que será, será? Marcelo vai ou não vai conseguir dormir?
VAAAI!
Vai ou não vai?
VAAAI!
Por precaução, tomei um Diempax inteiro. A casa em silêncio, minha mãe deixara minha porta
aberta. Qualquer problema, era só gritar. Consegui convencer a Nana a dormir com a Big.
— Tudo bem, eu tô louco pra dormir sozinho, não vou passar o resto da minha vida com uma
babá ao meu lado.
Veroca fez o relaxamento e se despediu. Todos saíram, as portas do quarto se fecharam, as
luzes apagadas. Silêncio absoluto. Rua sem trânsito.
“E agora...”
“Que quarto abafado.”
Da rua, ouvia o barulho do sinal. “Deve ter mudado agora pra vermelho.”
Plec, plec: verde agora.
O teto fazia “cosquinha” no meu nariz.
Chuáááá, barulho do colchão d’água.
Ouvia com nitidez o som da minha respiração.
Inspira, expira, inspira, expira...
Dormi feito um cocô.
— Bom dia, João Grandão.
Era a Nana me acordando com uma bandeja na mão (sempre que me acordava, ela cantava
esse “bom dia, João Grandão”, vai saber por quê).
Suquinho de laranja, café com leite, pão com queijo de Minas e um pedaço de mamão.
Chocante, nunca tivera tanta mordomia na vida. Atrás dela entrou uma loirinha toda de branco.
Sem dúvida era a Stella, minha enfermeira: minha mãe não tinha exagerado quando se referira
à alemãzona. Era a própria. Um brutamontes com ombros de nadadora russa. Braços brancos e
fortes. Usava uma calça justa, dando pra perceber a largura das coxas musculosas. Um
cabelinho boboca, desses oxigenados, com um cortezinho redondo saltitante. Os peitos
pequenos, duros, arrebitados, aliás tudo nela era duro. Os olhos azuis e bem fundos. Era feia,
muito feia, e com um corpo de macho. Mas era exótica e, afinal de contas, loira de olhos azuis
(não sei quem inventou essa de que loira de olhos azuis é bonita por definição).
Sorridente, quis me dar o café da manhã, mas, olhando pra minha pernambucaninha loira de
olhos verdes, pele queimada, seios grandes, magra, mas bunduda e muito fofinha, dispensei a atleta.
— Tudo bem, deixa a Nana me dar, que ela já está acostumada.
— É, mas eu tenho que me acostumar.
Iiiih, não aguento essa intimidade comigo. Muito menos esse sorrisinho forçado de quem está
querendo ser minha babá.
A Nana me deu o rango sob os olhares invejosos da outra.
Hora do banho. Aceitei a tese de que a outra precisava se acostumar e deixei a coitada me
banhar. Ela não sabia direito as técnicas, mas fomos lhe ensinando.
Tiraram minha roupa.
Peladão, molhou um paninho com água quente misturada com sabonete e, primeiro, passou no
meu rosto.
Enxugou o rosto e foi pro peito. Molhou, enxugou. Depois os braços. Molhou e enxugou.
Depois, é lá mesmo... Vamos, mulher, sem acanhamento, afinal eu sou um pobre doente.
Vamos, coragem...
Ela respirou fundo, contou até três e pimpa, passou a toalha no meu pinto.
Esfregou bem, passou entre as pernas e, de repente, fez uma cara assustada, perdendo
imediatamente todo risinho cínico. Percebi que meu pinto ficara duríssimo. Era normal, afinal,
esfregando uma toalha, mesmo que eu quisesse, não dava pra deixar de endurecer.
— Vamos, mulher, tudo bem.
Voltou a me limpar. Molhou bem as pernas, os pés e enxugou.
— A frente está pronta, agora vamos passar pras costas.
Ensinamos como me virar, tomando o máximo de cuidado com o pescoço. Virado, ela passou
água nas costas. Imediatamente, o quarto ficou com um odor inconfundível. Seja rico, seja
pobre, preto ou branco, terráqueo ou marciano, cocô em qualquer lugar do universo tem o
mesmo cheiro.
A loira boboca me limpou e me enxugou. Pronto. Tudo em ordem.
Ao meio-dia chegou o Osório. Estava tudo combinado: segundas, quartas e sextas ele me faria
uma hora de fisioterapia. Claro que não era o suficiente, mas é que o cara cobrava caro à
beça. Nos outros dias, deveria ser feita pelas minhas assistentes, inclusive pela Stella, não
deixando de fazer à noite também.
Ele veio todo de branco. Nos cumprimentou com um “bom dia, dormiu bem? Ótimo”, e,
depois de lavar as mãos, veio me tratar, sob os olhares curiosos da loirosa.
Fez uma série de recomendações: mudar sempre de posição, pra evitar as abomináveis
escaras, sentar no mínimo quatro horas por dia na cadeira de rodas, só que com uma espuma
por baixo. Duas horas, à tarde, descansar na cama, e duas horas, à noite. Tomar cuidado pra
não entupir a sonda.
Fez os mesmos exercícios de antes, só que dessa vez finalizou com um exercício de
respiração. Inspirar bem forte e soltar devagar pela boca. Enquanto soltava, ele vibrava meu
tórax, simulando uma respiração torácica (eu só respirava pela barriga, respiração diafragmática, em virtude da falta de movimentação também do tórax).
Acabou a fisio, ele olhou pra Stella e... Pronto! Bateu os dentes, pôs o queixo pra frente,
fechou os olhos, respirou ofegantemente (ressuscitou o monstro tarado) e falou, quase
gemendo:
— Boa tarde...
Voltou a si, balançando a cabeça, e se foi, deixando a loirosa assustada.
— Não liga não, vez em quando dá isso — acalmou a Nana, como quem já fora olhada desse
jeito.
Hora do almoço. Decidi pôr o colete e almoçar sentado na cama. Com a ajuda da Nana,
ensinamos à Stella a difícil tarefa de encaixar os ferros no pescoço. Agora quem queria dar o
almoço era a Vècchia. A outra ficou enciumada, mas, coitada, não tinha o menor poder de
decisão sobre mim. Restava ficar com a cara emburrada sentada no sofá, vendo minha avó dar
a comida.
Decidi sentar. Encosta a cadeira e, com a forte da Stella pegando atrás, mais a Gorda e a
Nana, pimba! Estava sentado.
Antes de ir pra sala, porém, fui dar um passeio pelos quartos. O da minha mãe, igualzinho ao
de antes. Pedi pra Stella abrir a porta do banheiro dela e pude ver que não dava pra entrar
com a cadeira de rodas. Tudo bem, pra que vou precisar do banheiro, se não posso tomar
banho? No banheiro dos filhos, no final do corredor, também não entrava a cadeira. As portas
dos banheiros são bem menores que as outras.
Só então entrei na sala e pude ver que estava tudo igual. E que saudade desses móveis. De um
lado, uma bruta estante com livros (minha mãe sempre gostou de mostrar o quão culta é sua
família). É uma sala carregada de móveis. Pra quem tinha morado numa casa enorme no Rio,
era difícil colocar tudo num apartamento, e mais difícil ainda desfazer-se de alguns móveis
caros (tinha um avô, o milionário, que ia quase todo ano pra China, Índia, e sempre trazia
vasos, tapetes caríssimos). A parede, forrada de quadros. Sempre achei o maior barato encher
a parede de quadros, um em cima do outro.
Meu pai tinha uma fazenda que vendera pro seu irmão colecionador em troca de quadros. Não
é que tínhamos na parede três gravuras do Portinari, um Bonadei, um Lazarinne? Mas a
maioria era da Renina Katz, amicíssima dos meus pais e uma artista genial.
Na sala tinha uma poltrona grande, bem confortável. Imediatamente, chegando lá, pedi para a
Stella me sentar nela. Era mais gostosa que a cadeira, e, com a altura do encosto, minhas
costas não ficavam tão pendentes como na cadeira de rodas.
Colocaram uma mesinha com tampa na minha frente de tal maneira que desse pra ler o jornal.
Nana ligou o rádio, na Bandeirantes FM. Chato, porque de cada cinco músicas que tocam
nessas FM, uma eu gosto, outra, mais ou menos, e três eu odeio. Mas uma coisa me chamou a
atenção, já tinha reparado nisso no meu supersônico rádio: o novo disco do Caetano, Cinema
Transcendental, estava tocando bastante nas rádios. Finalmente descobriram esse cara,
coitado, já era o décimo disco dele e só agora estavam dando o devido valor. Abertura no país da Transamazônica. Não que o Caetano fosse um subversivo revolucionário que não
tocasse antes nas rádios. Mas tudo o que é novo e diferente como o som de Caetano deixa
paranoicos os meios de comunicação de massa. Não é só autocensura, mas também uma
mentalidade conservadora da cultura (nossa, estou falando bonito). É muito mais cômodo pras
rádios, isso é, cria muito menos problemas prum país repressivo tocar coisas tipo Benito de
Paula (Meu Amigo Charlie Brown), ou aquela duplinha reacionária, Dom e Ravel (“Eu te
amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco e azul anil...”).
Li o jornal, ouvi músicas bundas e me cansei. Fui de novo pra cama tirar a minha saudável
sonequinha.
Acordei antes do entardecer e, aproveitando a força da Stella, sentei novamente na cadeira de
rodas e, na sala, passei pra poltrona. Estavam chegando as primeiras visitinhas. Por vaidade
minha, pedi pra Stella colocar a garrafinha de xixi que sempre me acompanhava debaixo da
poltrona, e pus o jornal no caninho. É que só agora percebia que devia ser meio chato pras
pessoas conversarem comigo e, ao mesmo tempo, verem aquela garrafinha cheia de xixi do
meu lado. Era fedorento e feio, por isso escondi.
Quase noite, a casa já estava cheia. Muito melhor receber gente num apartamento que num
quarto de hospital. Aqui não incomodava ninguém, tinha som na vitrola, fumo no terraço,
cafezinho, telefone. Só na hora do rango que o pessoal, sacando que tinha muita gente, desceu
pra padaria em frente e depois voltou.
Mas, à noite, caminha pra ver a novela e, depois do Diempax, bau, bau.
Primeiro fim de semana. Livre da Stella, mas, em compensação, casa cheia. Era o último fim
de semana das férias. Toda a turminha campineira, inclusive a Nana, só viria pra São Paulo
pros fins de semana próximos. Os amiguinhos paulistas, com aula e trabalho, me veriam com
menos frequência. Big iria pra PUC à tarde. A Nalu trabalhava de dia, e à noite, USP.
Fiquei com medo de ficar só, mas, pra comemorar a despedida, nada como um passeio de
carro.
Genial, descemos pra garagem. O Bunds e a Gorda me puseram no Corcel azul da minha mãe.
— Tudo bem?
— É, mais ou menos. Eu fico menos firme, mas se alguém for me segurando atrás, dá pra ir
numa boa.
Tchan-tchan-tchan-tchan. Abre-se a porta da garagem. Bunds guiando. Nana atrás e a Gorda
me segurando as costas.
Pé na tábua. Finalmente estava vendo a rua. Era um sábado lindo, céu azul. Pouco movimento
nas ruas.
A ladeira da Eugênio de Lima foi suave. Cada esquina, cada poste era uma curtição. Entramos
na Estados Unidos. Tomamos a direção de Pinheiros, onde a maioria dos meus amigos
morava. As pessoas se assustavam um pouco com aqueles ferros no meu pescoço, e em cada
sinal vermelho era aquele festival de curiosos (imaginem se eles soubessem como eu estava).
Fomos até a casa da Laurinha (a risada mais gostosa do mundo). Emocionada, entrou no carro.
Pegamos o Cassy e fomos pra casa do Carca, no Alto da Lapa. Todos queriam passear
comigo, não teve jeito. Nana no meu colo, Bunds guiando, e quatro atrás. Conheci a nova
avenida Sumaré. Esplêndida.
Uma coisa que me chamava a atenção era a quantidade de pichações de muro. Havia umas
engraçadíssimas como: Rendam-se, terráqueos. O Cassy nos mostrou a que ele tinha feito, na
Vila Madalena, bairro da intelectualidade-pop-esquerdizante-uspiana de São Paulo: Liberte o
Ivan Lins que há dentro de você.
Achei um barato essa conquista do espaço urbano. Na realidade, os muros não são de
ninguém. A propriedade é uma forma de capitalizar a natureza que o imbecil do ser humano
inventou. Os muros, então, pra que servem os muros? Pra impedir ladrões? Sim. Pra garantir a
privacidade? Sim. Mas servem também pra acabar com o direito natural do ser humano animal
de ir e vir (um direito inclusive constitucional).
Já imaginou se a onda de construir muros pega também na zona rural? Nós acabaremos por
conhecer somente as ruas e as estradas. Que direito tem um cidadão de tapar a visão e o
usufruto da natureza? É, Marcelo, você é um bobo sonhador. Está mais que óbvio para a
humanidade que a natureza se compra e passa a ser particular. Os marcianos rirão de nós um
dia, ao saberem que nosso planeta é um grande quebra-cabeças de proprietários. Restam-nos
os parques e praças públicas.
Em Campinas tem uma cachoeira linda na qual o dono colocou cercas pra ninguém ver. Legal,
né?
Por isso, pichem. Invadam o espaço, xinguem a mãe do presidente, declarem amor à sua
prostituta preferida. É a imprensa popular e democrática.
Lucy in the sky with diamonds
Não adianta, dona Lucy, você pinta, nós picha
Beatles 4 Ever
Esse muro tava tão branquinho...
Atenção, atenção. Entramos na avenida Paulista. Ah... não esqueci da minha promessa. Pedi
pra Nana abrir a janela e recebi o ventinho na cara. Não era um CMTC, mas era ventinho da
Paulista, dois terços do meu sonho. Que delícia essa gente toda aí, andando, bundando,
amando, esperando o ônibus, indo prum cinema. Ah, que inveja de vocês todos. Adoraria estar
trocando uns passos nessa calçada, dançando com esses postes, correndo pela contramão no
meio da avenida.
Um dia eu venho, querida Paulista, e te amarei sozinho, te farei gozar como a mais mulher das
mulheres, porque você é minha, só minha. Ninguém te curte mais do que eu, gatona.
Chegando em casa, emocionado, fui direto pra cama tirar o colete, que já estava doendo.
Estava em êxtase. Fiquei com vontade de compor uma música, mas não dava. Eu tinha um
monte de coisas pra falar, sei lá, uma poesia, uma carta de amor. Viva a vida.
— Nana, pega um lápis e papel que eu vou ditar um negócio aí.

Feliz ano velhoOnde histórias criam vida. Descubra agora