II

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Começara o verão de 1855.
Uma manhã apareceu Geraldo em minha casa. Entrou, conforme o seu costume, estrepitosamente, e cantarolando não sei que ária do seu repertório italiano.
– Vai ver minha irmã! disse passando por mim e sumindo-se pelo interior da casa.
Voltou logo com o charuto aceso:
– Tua irmã? perguntei sem compreendê-lo.
– Sim, Mila, que amanheceu com uma febre danada.
– Ah! É como médico que me pedes para ir ver tua irmã?
– Pois então!... Vamos; veste-te; o carro está na porta à espera. – Mas, Geraldo... Foi tua família que mandou chamar-me? – Foi meu pai.
– A mim, designadamente?
– E esta!... Mandou-me chamar um médico; tu és um... logo! – Quem sabe! Talvez não lhe inspire confiança. – Ora Deus!... Ele não entende disso! Ao entrar no carro, Geraldo despediu-se: – Não vens?
– Para quê? Não faço falta lá. Até logo!
Geraldo pertencia à classe dos homens a quem lateja a moleira toda a vida, e velhos já, são ainda meninos de cabelos brancos. Não te admire portanto a leviandade desse moço.
Cheguei à chácara do Sr. Duarte à uma hora da tarde.
A família estava na maior aflição. A menina ardia em febre desde a véspera, queixando-se de fortes pontadas sobre o coração. Todos os sintomas pareciam indicar uma afecção pulmonar.
No aposento reinava uma frouxa claridade que mal deixava distinguir os objetos. Emília prostrada no leito, sob as coberturas de lã, parecia inteiramente sopitada no letargo da febre. Sua tia, D. Leocádia, que fazia-lhe agora as vezes de mãe, estava sentada à cabeceira.
– Minha senhora, disse eu, é necessário auscultar-lhe o peito.
– Então, Sr. doutor, aproveite enquanto ela dorme. Se acordar, nada a fará consentir.
A senhora afastou a ponta da cobertura, deixando o seio da menina envolto com as roupagens de linho.
Mal encostei o ouvido ao seu corpo, teve ela um forte sobressalto, e eu não pude erguer a cabeça tão depressa, que não sentisse no meu rosto a doce pressão de seu colo ofegante.
O que passou depois foi rápido como o pensamento.
Ouvi um grito. Senti nos ombros choque tão brusco e violento, que me repeliu da borda do leito. Sobre este, sentada, de busto erguido, hirta e horrivelmente pálida, surgira Emília. Os olhos esbraseados cintilavam na sombra: conchegando ao seio com uma das mãos crispadas as longas coberturas, com a outra estendida sob as amplas dobras dessa espécie de túnica, ela apontava para a porta.
– Atrevido!... clamou o lábio eriçado de cólera e indignação.
Fiquei atônito. D. Leocádia pediu-me que saísse um momento. Ao retirar-me,
o olhar da menina, repassado de um ódio profundo, acompanhou-me até que desapareci na porta.
Com pouco o Sr. Duarte veio à sala.
– Peço-lhe mil desculpas, Sr. doutor, pelo que acaba de acontecer. Mila teve uma educação muito severa... Minha falecida mulher era nesse ponto de um rigor excessivo; muitas vezes fiz-lhe ver o inconveniente disso... Mas, Sr. doutor, V.S. bem sabe quanto as mães são zelosas de sua autoridade.
– Não se aflija, Sr. Duarte. Eu compreendi logo a razão do que se passou. Sua filha não estava prevenida... acordou sobressaltada...
– É verdade!
– Demais, eu sou para ela quase um estranho. Havia, portanto, motivos de sobra para o seu vexame. O recato é tão bela virtude em uma menina!
– Mas em minha filha é em tal excesso, que já parece vício.
– Mudará com a idade. Agora convém que V. S. a convença da necessidade de consentir...
– Tanto que lhe pedi já e roguei! Não quer ouvir falar de semelhante coisa. – É dos casos em que um pai deve interpor a sua autoridade.
– Oh! sinto que não teria ânimo! Nunca até hoje ralhei com minha filha. Como
o faria agora que a vejo tão doente?
– Não será talvez necessário recorrer a esse extremo. Por meios brandos!... Duarte voltou ao quarto da filha.
Esse homem, que representa na família um papel importante pela sua nulidade, é negociante; trabalhou toda a vida para enriquecer; depois de rico só vive para ser milionário.
Essa febre nele não é ambição, mas destino. Quer a riqueza para seus filhos, parentes e amigos; para ele conserva a antiga mediocridade. Nunca até hoje o Sr. Duarte admitiu a menor alteração em seu sistema de vida, e nos hábitos do homem pobre e laborioso, que fora.
A riqueza não o fez melhor nem pior; mudou de fortuna, não mudou de caráter, nem de sentimentos. O luxo, que desde muito tempo batia à porta de sua velha habitação, devia penetrá-la enfim, um belo dia, sem que ele tivesse consciência disso. Quase se pode afirmar que o não percebeu. Para ele essa grande revolução doméstica não passava de uma questão de pagamento, e portanto da competência do seu caixa.
Em resumo, tem Duarte uma dessas naturezas essencialmente mercantis, que nascem predestinadas para o negócio, e só respiram livremente na atmosfera do armazém. De resto, uma boa alma, metódica e fria, como deve ser uma alma aclimatada ao balcão desde a infância, e educada exclusivamente para o juro e a conta corrente.
Nessa alma, como nos canteiros regulares de um jardim, não brota a urze das paixões, mas vem bem e com simetria a flor cultivada dos afetos calmos. Duarte ama sua família e estima seus amigos com sinceridade, mas passivamente, sem iniciativa. Capaz de qualquer sacrifício que exijam dele, nunca teve a espontaneidade do mais insignificante favor. Não oferece, mas também não recusa seu dinheiro, como sua amizade.
O negociante voltou acabrunhado: – Ela recusa! murmurou.
– Deste modo não sei o que faça. Entretanto a moléstia é grave. – Por que não receita já?
– Não posso indicar um tratamento sem conhecer a moléstia.
– Pois, Sr. doutor, eu também não posso usar de rigor com Mila, porque sei que isso seria matá-la mais depressa.
Duarte deixou-se cair sobre uma cadeira, e sucumbiu à dor: as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
– O que me parece mais acertado, é chamar V. S. um médico de sua confiança, habituado a tratar na família.
– Já não existe! exclamou com um soluço. Qualquer outro que venha me responderá o mesmo que o senhor! Meu Deus! Condenado a ver morrer minha filha, sem poder salvá-la.
– Bem, Sr. Duarte. Eu tratarei de sua filha.
A moléstia era realmente grave; nada menos do que uma pneumonia dupla. Tive de lutar contra a enfermidade rebelde e a tenacidade inflexível de um caráter singular de menina, habituada a ver satisfeitas todas as suas vontades, como ordens imperiosas.
Emília tomara-me tal rancor, que não me deixou mais penetrar em seu aposento. Se adormecia, e eu advertido por Julinha ou por D. Leocádia me chegava ao leito, mal lhe tocava o pulso, ela acordava com sobressaltos, volvendo os olhos inquietos pelo aposento.
Ocultava-me então do lado da cabeceira, entre a parede e o cortinado, e daí esgueirava-me pela porta. Uma ocasião um olhar de Julinha traiu-nos; ela surpreendeu-me e gritou cobrindo o rosto:
– Deitem fora este homem!
D. Leocádia e o irmão se afligiam muito com os caprichos de Emília; mas não tinham nem a força nem a vontade de contrariá-la, embora temessem a cada instante que a minha susceptibilidade se ofendesse com aqueles modos ríspidos.
Mas o meu orgulho de médico principiante estava empenhado nessa cura. Era ela que devia me dar a consciência da minha força ou talvez o desengano de uma carreira. Foi ela que decidiu do meu futuro.
Nunca, até então, eu assumira a tremenda responsabilidade da conservação de uma vida, que um erro meu, um instante de hesitação, podiam sacrificar. E não era uma vida indiferente... Essa menina caprichosa, calma e impassível à dor, velando-se como as virgens mártires do cristianismo para morrer pudicamente... Essa menina inspirava-me não sei que estranho e vivo interesse.
Eu sentia, combatendo sua enfermidade, o que devem sentir os grandes artistas tratando um assunto difícil; raiva e desespero, quando a consciência da minha fraqueza contra as leis da natureza me acabrunhava; júbilos imensos, quando meu espírito, tirando forças da ciência e da vontade, arcava com a moléstia e a subjugava por instantes.
Uma vez perdi a esperança.
D. Leocádia dormitava extenuada à cabeceira do leito. Emília não dava mais acordo de si.
Aproximei-me; a máscara da morte cobria já aquele rosto diáfano. Sentei-me à borda do leito, e não pude reter as lágrimas que me saltaram em bagas dos olhos.
Santa virgindade das emoções, primeiros orvalhos do coração, que a aridez do mundo tão depressa estanca! A quantos espetáculos pungentes não tenho eu assistido depois com os olhos enxutos e o espírito sereno!
D. Leocádia abriu os olhos:
– Não há mais esperança, doutor?
Enxuguei as lágrimas envergonhado, e achei em mim uma energia nova. Lancei mão dos últimos recursos. Um mês arquei com a dissolução que invadia esse corpo frágil, disputando às garras da morte os sobejos de vida, que lhe faltava devorar. Tinha, a pedido do Sr. Duarte, ficado em sua casa; e a isso, a esse cuidado incessante de todas as horas e de todos os momentos, devo o resultado que obtive.
Venci afinal. Mal sabia eu da influência que devia ter no meu destino essa existência, cujos frouxos clarões, prestes a se apagarem, eu reanimara com os lumes de minha alma.
Emília entrou em convalescença. A gratidão do pai foi sincera; sua
recompensa generosa. Aceitei a primeira e recusei a última.
– Por quê? me perguntarias talvez.
Era como te disse o meu primeiro triunfo em medicina; trabalhei para ele como o sacerdote de minha nova religião. Por um desses movimentos misteriosos do coração que não se explicam, quis sagrá-lo unicamente à ciência, extreme e puro de todo o interesse pecuniário. Tal foi o motivo de minha recusa, e não mal-entendido pudor de receber a justa remuneração de tão nobre serviço.
Escrevi ao Sr. Duarte pouco mais ou menos o seguinte:
"Foi Deus quem salvou D. Emília; a ele devemos agradecer, o senhor a vida de sua filha, eu minha felicidade.
Meu primeiro doente foi para mim como um primeiro filho. As emoções que senti lutando com a moléstia, as angústias por que passei nas suas recrudescências, o desespero de minha fraqueza nesses momentos, um pai o deve compreender.
Essas emoções só podiam ter uma recompensa. Já a recebi do meu coração. Foi a pura e santa alegria de restituir a vida querida, que me fora confiada. Substituí-la por outra, não seria generoso de sua parte, Sr. Duarte."
O negociante ainda me procurou, e insistiu, mas inutilmente. Afinal lhe disse :
– Eu conheço, Sr. Duarte, que faço uma violência à sua generosidade. Mas, em compensação lhe prometo... Começo a minha vida; é possível que alguma vez me veja em embaraços. Nesse caso recorrerei ao senhor!
– Promete-me?
– Dou-lhe minha palavra.
Pouco tempo depois sabes que fui à Europa, onde me demorei perto de dois anos. Fizemos juntos até Pernambuco a viagem, de que nasceu a nossa boa e sincera amizade. Se não me engano, em nossas conversas íntimas a bordo falei- te alguma vez dessa família, mas sem as particularidades que refiro agora.
Então ainda a luz intensa da paixão, que veio depois, não tinha debuxado, como estereótipo nas lâminas do coração, a imagem viva dessa menina.

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