XV

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Ao nascer do sol, já eu esperava Emília. Que longa noite!
Sofria horrivelmente, mas como um enfermo desacordado. O estupor do espírito, que me fulminou ouvindo a cruel revelação, continuava. Não podia compreender Emília, o anjo do celeste pudor, a altiva rainha das minhas adorações, transformada de súbito numa desprezível namoradeira de sala.
Havia momentos em que eu achava dentro em mim a imagem de duas Emílias, uma para o meu desprezo, outra para o meu amor. E minha alma, ora exaltava-se em seu orgulho para cuspir a baba da indignação às faces daquela, ora ajoelhava humilde e dolente para chorar seu infortúnio aos pés desta.
Passara uma parte da noite a reler os versos do Álvares; ainda os tenho de cor apesar dos esforços que faço para esquecê-los. Eles por aí correm num volume de poesias, recentemente publicado por esse moço. Tem por epígrafe – A ela.
Quando o sol espancou as trevas, não sei que serenidade derramou-se em meu seio. Era talvez a saciedade do sofrimento.
Emília veio meiga e serena, como a tinha deixado na véspera. O baile longe de fatigar, repousava sempre essa incompreensível criatura. Havia no sorriso dos lábios, no cetim das faces e na irradiação do olhar, o primor de virgindade que têm as flores recentemente desabrochadas. Quem visse essas límpidas auroras de sua beleza, julgaria que ela acabava de nascer moça, ao despontar do sol, como as rosas e as borboletas. Tal era o frescor e o viço da sua formosura.
Quando a percebi de longe, senti que o meu coração exauria-se; a indignação que o enchera até aquele momento fugiu dele. Temia que o primeiro olhar de Emília dissipasse a minha cólera, e que sua primeira palavra me curvasse a seus pés humilhado ainda por um amor já indigno.
me. – D. Emília – disse-lhe eu – receio ofendê-la... Talvez o melhor fosse calar-
– O que mais me pode ofender de sua parte é o silêncio, quando o senhor tem um ressentimento de mim. Fale, não tenha receio. Bem vê que eu estou tranquila.
– Pois então ouça-me e desculpe. Sem dúvida a senhora julgará pouco nobre meu procedimento, surpreendendo um segredo alheio; mas lembre-se de que eu a amava!... E a amava tanto, que tive a coragem de aviltar-me ao meu amor.
Sinto este orgulho!
Pela primeira vez Emília pareceu surpresa: – Não compreendo! Que fez o senhor?
Mostrei-lhe os versos e contei-lhe tudo quanto soubera na véspera, durante o baile; tímido e balbuciante em princípio, ia-me reanimando à medida que a evocação daquelas cruéis recordações magoava minha alma ulcerada; o desespero prorrompeu afinal.
Emília me ouvira impassível.
– Bem vê que eu sei tudo, D. Emília! Ela não me respondeu.
– Ouviria eu mal? Não compreenderia as suas palavras? – Ora! O senhor é tão perspicaz!
– Assim não me iludi? Esses homens a amam, e a senhora lhes corresponde? – O senhor o diz!
– Meu Deus! Mas a senhora não sabe que nome tem isso?...
Emília ergueu-se de um ímpeto. Seus olhos tinham raios lívidos, e sua fronte um luzimento de mármore.
– O nome?... exclamou ela. – O nome que isso tem? Eu lhe digo! É a indiferença... Não! É o desprezo, que me inspiram todas estas paixões ridículas que tenho encontrado em meu caminho! Ah! Pensa que amo a algum deles? Tanto como ao senhor!... O amor, eu bem o procuro, mas não o acho. Ninguém ainda mo soube inspirar. Meu coração está virgem! Tenho eu a culpa?... Oh! Que ente injusto e egoísta que é o homem! Quando nos ama, dá-nos apenas os sobejos de suas paixões e as ruínas de sua alma; e entretanto julga-se com direito a exigir de nós um coração não só puro, mas também ignorante! Devemos amá- los sem saber ainda o que é o amor; a eles compete ensinar-nos... educar a mulher... como dizem em seu orgulho! E ai da mísera escrava que mais tarde conheceu que não amava!... Seu senhor é inexorável e não perdoa!... Basta-lhe um aceno, e a multidão apedreja!
Eu assistia, deslumbrado, às erupções que produzia o orgulho ofendido naquela alma inteligente. Emília parou um instante para respirar; e a palavra sarcástica frisou outra vez seu lábio mimoso:
– Os homens... Felizmente aprendi cedo a conhecê-los; e os desprezo a todos; os desprezo, sim, com a indignação do amor imenso que eu sinto em mim, e que nem um deles merece!... Cuida o senhor que é a minha vaidade que me arrasta pelas salas, como tantas mulheres, pelo prazer de se verem admiradas e ouvirem elogios à sua beleza?... Oh! não, meu Deus!... Vós sabeis quanta humilhação tenho tragado, eu que tenho orgulho de merecer um nobre amor, vendo-me objeto de paixões mentidas e interesseiras!...
– Refere-se a mim, D. Emília?...
– Ao senhor?... Se eu tivesse um tal pensamento a seu respeito, julga que esperaria tanto tempo para lho declarar? Os outros têm o direito de mentir-me porque me são indiferentes... O senhor, a quem eu dei minha amizade e confiança, não!... Seria uma indignidade!... Os outros podem me fazer a vida amarga e triste sem que eu me queixe. Mas o senhor...
– D. Emília!... balbuciei comovido.
– Não me queixo, não; nem preciso que me consolem! exclamou arrebatada. – Para quê? O que eu sofro agora, Deus mo levará em conta para o meu amor, quando eu amar um dia, na terra ou no céu.
Emília afastou-se; e eu a segui involuntariamente. Esperei debalde que voltasse
o rosto; por fim a chamei; ela parou.
– Ao menos, D. Emília, não consinta mais que esses homens lhe falem de sua paixão. Promete-me?
– Não, senhor! – Bem!
– Se me quer amar como eu sou, com os meus caprichos... – Não posso!
– Tem razão! É melhor assim! respondeu sorrindo. – Então adeus, D. Emília!
Ela derramou sobre mim num só olhar todo o seu desdém, dizendo com voz pausada:
– E me tinha amor!... Pois eu, se o amasse, me desprezasse o senhor embora, eu o acompanharia até aos pés da minha rival para suplicar-lhe as migalhas de seu amor! Eu sim! Mas felizmente para nós ambos, não o amo, e creio agora que não o amarei nunca!
Desatando o passo augusto, deixou-me sepultado naquele desengano cruel.
Não me retirei completamente da casa de Duarte; porém as minhas visitas a pouco e pouco foram sendo mais raras. Era outra vez em casa de D. Matilde que eu me encontrava agora mais frequentemente com Emília.
Ela, ou de propósito ou porque não tivesse mais reservas a guardar comigo, atirou-se com sofreguidão aos cortejos de sala. Todas as noites a cercava a grande roda dos seus apaixonados, aos quais ela de repente despedia com um gesto ou uma palavra, para atrair novos, que eram logo substituídos.
Eu sofria, assistindo a essa profanação de meu belo ideal, um suplício cruel. Era meu amor que a pouco e pouco se despegava do coração, arrancando-lhe as fibras e escalpelando-o. Quando esse amor fugir de todo, o que me restará de coração? Uma úlcera apenas!..
Julinha me compreendera e me consolava. A boa menina, vendo-me infeliz, começou ingenuamente a amar-me, mas sem consciência e sem egoísmo, unicamente por uma força invencível de sua extrema sensibilidade. Cheguei a iludir-me; pensei que também amava essa menina, mas o que eu amei em Júlia foi só o que vinha de Emília, o que ela conversava comigo a respeito de sua prima.
– Não se aflija! Mila gosta do senhor, eu sei! dizia-me Julinha. – Ela confessou-lhe alguma vez?
– Não; ela nunca me fez confidências; mas eu a conheço muito!
– Gosta de mim, como daqueles que a cercam neste momento. Olhe!... – Não acredite! Zomba de todos eles.
Emília viu a minha assiduidade junto à prima. Mas percebeu ela o que se passava em mim, apesar dos meus esforços para simular indiferença?
Não sei.
Uma noite aproximou-se para dizer-me com um sorriso ameno:
– Os seus novos amores não toleram nem mesmo as antigas amizades?
Confesso-te a minha vergonha, Paulo. Nunca o império dessa mulher sobre mim foi tão tirânico como nesse tempo em que me violentava para arrancar minha alma à sua funesta influência.
Emília tinha seduções tão poderosas, que era impossível resistir. Eu chegava;
vinha com uma resolução firme de mostrar-lhe minha completa indiferença, e fazê-la acreditar que realmente amava Julinha.
Pois quando estava mais entregue a esse jogo do coração, e à força de falar de amor, eu me atordoava a ponto de supor que o sentia pela filha de D. Matilde; pois justamente nessa ocasião, Emília, não sei como, arrancava-me de perto da prima e arrastava-me a seus pés.
Bastava-lhe para isso um nada, um sorriso, uma doce inflexão do seu colo, um gesto gracioso da mão afilada brincando com um anel dos cabelos ou com uma fita do vestido.
Oh! Essa mão gentil, quando ela a despia da luva, tinha uma alma; movia-se em torno de sua beleza, como um anjo que descera do céu para acariciá-la. Aos toques suaves dos dedos mágicos parecia que sua lindeza debuxava-se mais brilhante.
E eu ficava sem palavra e sem movimento, todo olhar, a contemplá-la de longe.
Afinal, quando ela me via assim alheio de mim e cativo de sua graça, chamava-me com uma imperceptível vibração de fronte.
De ordinário, vendo-me chegar obediente, se demudava por tal forma que estupidava-me; era então fria e glacial, como uma estátua de gelo. Já não me via, nem me ouvia: eu voltava tragando em silêncio a minha vergonha.
Outras vezes, não: recebia-me risonha e amável.
– Julinha está zangada! Vá dançar com ela! dizia-me então.
Enfim, Paulo, essa mulher escarnecia de mim, a fazer pena. Tratava-me como ao cão da Terra Nova que havia em sua chácara, e com o qual a vira tantas vezes brincar. Enxotava-me com a ponta do pé, para ter o prazer de me fazer voltar, lambendo o chão por onde ela passava.
E eu vivia espremendo em minha alma o fel dessas humilhações, a ver se irritava aí a dignidade abatida.

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