PRÓLOGO

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     A estrada adentrava a escura floresta e se perdia em meio as grandes árvores. Grossos troncos se erguiam como pilares imponentes fazendo a escassa luz brigar por algum espaço entre a vegetação espessa. Junto ao silêncio amedrontador, uma cortante brisa gelada emanava da floresta. Era final de tarde e um tom escuro preenchia o céu, no oeste, além das colinas ao longe, o sol se encolhia vagarosamente.
     Um súbito arrepio fez o garoto estremecer e a sensação angustiante que aquele lugar exalava o aterrorizou. Preocupado, o garoto olhou ao redor, não era lugar para se mostrar fraco. Ao seu lado, pequenos corpos exaustos se apoiavam na lateral da velha carroça encarando o destino desconhecido que os aguardava, ele esperou ter disfarçado melhor o seu próprio terror.
    Um bando de gralhas alçou vôo em algum lugar entre as árvores. Aquela confusa e desvairada cacofonia eriçou os pelos de sua nuca, e em olhadela rápida para o lado viu que os outros rostos, quase tão imundos quanto o seu, estavam pálidos. Achou graça daquilo tudo, talvez os deuses tivessem tirado o dia para aterriza-los. Por um momento um sorriso se formou e o simples fato de eles estarem prestando atenção em alguns órfãos encolhidos em farrapos e jogados em uma carroça suja, o confortou.
    Tūani se virou para dentro e recostando-se na lateral escorregou até se sentar. Se encolheu em seu canto e ficou ouvindo o palpitar acelerado do seu coração por um tempo. Histórias sobre aquele lugar começaram a invadir sua cabeça trazendo junto um desespero quase incontrolável. Em um momento lúcido olhou ao redor e avaliou suas chances de fuga. Não se deram ao trabalho de algema-los ou muito menos amarra-los a carroça. Isso já era alguma coisa. Deixou alguns minutos se passar e sentiu-se esperançosa ao ver que os dois homens estavam atentos ao caminho a frente e não se viraram nenhuma vez naquele tempo. Talvez se não não fizesse nenhum barulho ao pular e corresse direto para a plantação de trigo ela teria alguma chance. Depois seria o que os deuses quisessem, correria até cair exausta ou ser pega. Fechando os olhos ela reuniu as últimas forças que ainda restavam, avaliou suas chanches e procurou algo que lhe desse uma perspectiva melhor para seu futuro, não achando nada que a convencesse, apoiou as mãos na lateral e impulsionou-se para fora.
   - O que você está fazendo? - Sussurou o garoto ao segurar sua blusa e a puxar para dentro.
   - O que você pensa que eu estou fazendo, piolhento? -  Cuspiu de volta furiosa, bateu na mão que ainda a segurava e desejou ainda estar com sua faca.
   - E depois ia fazer o que? Correr para os trigos e torcer para que ninguém a veja? - O garoto riu de seu rosto contorcido de raiva.
   Ela não respondeu.
   - Acha que é a primeira a pensar nisso? Logo você? - Falou o garoto, apontando para o lado. Ela olhou ao seu redor e viu que os outros a encarava.
   - Você fala como se eu não fosse uma órfã de merda igual vocês.
   - Pode até ser uma orfã de mer como nós, mas uma surra de vez enquando, talvez os restos das refeições e um lugar para dormir. - Falou, fingindo pensar. - Bom, eu trocaria contigo se tivesse me pedido, lindinha.
   Ela se virou descontrolada, poderia suportar uma zombaria ou outra mas falar que sua vida tinha sido fácil era demais. Com o punho fechado tentou acertar o rosto do garoto. Quando ele desviou, fazendo-a somente o acertar de raspão, ela rapidamente puxou o braço magro e enfiou os dentes com todas as forças. O garoto quase uivou de dor ao sentir líquido quente escorrer no mesmo instante e só se segurou para evitar que os homens se virassem bravos com alvoroço. Recusando-se a usar os punhos, começou a puxar o cabelo gorduroso e emaranhado da garota. E quanto mais forte ele o puxava para trás, ela o encarava com os olhos felinos, a boca coberta de sangue enquanto ele escorria pelo pescoço e encharcava seus trapos. Seu rosto se contorceu em uma careta e na tentativa de faze-la soltar acabava arrancando tufos de cabelos a cada puxão. Ela, vendo o sofrimento do enxerido, deixou um sorriso se formar a medida que o mordia com mais força. Aproveitando as mãos livres, o empurrou e o derrubando no chão da carroça começou a esmurra-lo. Para os outros meninos maltrapilhos, em algum outro momento, aquela cena provocaria risos e zombarias, agora demostravam nada mais que olhares distantes.
   - Mas que merda vocês estão fazendo, seus pirralhos desgraçados? - Xingou um dos homens se virando e encarando a cena. - Anda garota, solta ele.
   Contra sua vontade ela o soltou e encarou o homem que os transportava, tentou limpar o sangue da boca com as costas da mão, o que só o fez se espalhar em uma linha uniforme pelo seu rosto. Sem forças para levantar, ela se virou e continuou jogada na madeira molhada. O garoto, olhando os buracos de dente em seu braço, a xingou e tapou o sangramento com a mão cheia de cabelos. Olhou para ela jogada ao seu lado e rapidamente desviou o olhar.
   - Mas que monstrinha. - Murmurou o homem para seu companheiro ao se virar e voltar a conversa murmurada que estavam tendo.
   Por um longo instante ficaram jogados naquele chão encharcado de sangue. O céu se escurecia conforme o tempo passava, um gavião passou como um ponto escuro no céu e ambos desejaram ser aquele pássaro, livre e com o mundo inteiro ao alcance. Se o gavião olhasse para baixo naquele momento poderia ver a velha carroça na estrada lamacenta seguindo ao lado da floresta; os dois homens impacientes cuspindo insultos para a égua que se recusava a andar mais rápido; veria algumas crianças sentadas cabisbaixas e também os dois jogados no chão vermelho o olhando e desejando sua vida. Quem sabe tenha olhado e os visto, talvez por isso, orgulhoso, começou a traçar voltas e mergulhos e subidas até se dar por satisfeito desaparecendo de vista naquele céu de inverno.
   - Você nunca iria muito longe. - Disse depois de um tempo. - Sabe essas vilas que passamos nesses dois dias? Pessoas tão pobres e maltrapilhas, talvez vivendo pior que nós mesmos nas ruas de Szilia. Elas nos olhavam e eu podia ver a simpatia e compaixão nos seus rostos. Não somos os primeiros que esse homens trazem. Talvez você não seria a primeira a tentar fugir.
   - Acho que chegamos. - Ela se deu ao trabalhador de responder quando a carroça parou. - Aonde quer que seja.

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